Um grave retrocesso no combate à tortura no Brasil. Por Valdete Souto Severo e Simone Schreiber

A violência policial contra pessoas presas é tolerada e naturalizada. Não se trata de fatos isolados, desvios de comportamento eventualmente observados, mas de conduta institucionalizada e até mesmo incentivada dentro das corporações policiais. Confira no quarto e último artigo da série especial sobre a realização de audiências de custódia por videoconferência

Le Monde Diplomatique

Que ninguém se engane. O episódio de espancamento até a morte de João Alberto Silveira Freitas pelos seguranças do supermercado Carrefour tem muito a ver com a recente decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que permitiu as audiências de custódia por videoconferência. Ambos os eventos estão relacionados com a violência institucional praticada por agentes de segurança, sejam públicos ou particulares, contra a população negra do país, o quanto isso nos toca, e o que estamos dispostos a fazer para enfrentar o problema. 

No Brasil há prática corriqueira de violência por agentes do Estado contra pessoas custodiadas, pessoas pretas, quase pretas e quase brancas, tratadas como pretas de tão pobres, como diria Caetano. 

Após a ditadura não houve apuração e responsabilização de agentes pela prática de tortura. Tal decorreu de uma escolha política de não enfrentamento, referendada até o momento pelo Supremo Tribunal Federal, que considerou os crimes de tortura e desaparecimento forçado praticados durante o regime militar anistiados e prescritos. Esse posicionamento já rendeu ao Brasil duas condenações pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos casos Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), em 2010, e Herzog, em 2018. 

O regime militar terminou em 1985. A Constituição de 1988 é o marco de refundação da democracia brasileira. Porém nada mudou. Estão disponíveis na internet diversos relatórios produzidos por órgãos públicos e entidades de defesa de direitos humanos sobre a prática disseminada e sistemática de tortura no Brasil ao longo das três últimas décadas. 

Relatório sobre Tortura no Brasil, produzido pela Comissão de Direitos Humanos e Direito de Minorias da Câmara dos Deputados, em 2005, traz relatos detalhados de tortura praticada principalmente por policiais e agentes de custódia sobre corpos de pessoas encarceradas em diversos estados do país. Dentre as medidas recomendadas para combate à tortura já naquele Relatório constava “a apresentação imediata do preso a uma autoridade judicial no momento da detenção, conforme proposição da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto San Jose da Costa Rica” (Recomendação 12, p.78). 

De fato, o art. 7.5 da CADH assegura ao preso o direito de ser conduzido à presença de um juiz no momento de sua detenção. Nessa audiência, o juiz verificará a legalidade da prisão, as circunstâncias em que ocorreu e se foi praticada violência contra o preso, devendo tomar as providências cabíveis. 

A Convenção data de 1969, mas o Brasil só aderiu a ela em 1992, após o regime militar. Contudo, ainda foram necessários 23 anos (!) para que a audiência de custódia fosse adotada no Brasil. Tal demora diz muito sobre como as autoridades brasileiras lidam com violações de direitos humanos, mesmo em período democrático. A violência policial contra pessoas presas é tolerada e naturalizada. Não se trata de fatos isolados, desvios de comportamento eventualmente observados, mas de conduta institucionalizada e até mesmo incentivada dentro das corporações policiais. 

Apenas em 2015 foi editada a Resolução 213 pelo CNJ, sob presidência do ministro Ricardo Lewandowski, estabelecendo a obrigatoriedade de adoção das audiências de custódia por todos os tribunais brasileiros. 

A realização das audiências de custódia representou um avanço significativo no controle efetivo pelo judiciário de eventual violência cometida contra o preso no momento da sua detenção. Até então, o juiz avaliava a legalidade da prisão através da leitura do auto de prisão em flagrante, não havia qualquer contato do acusado com o juiz até a audiência de instrução e julgamento, geralmente realizada meses após sua prisão. A condução do preso à presença do juiz sem demora tem inclusive efeito dissuasório. A possibilidade de o policial ser responsabilizado inibe a ação violenta. 

Mas é imperativo que o ato seja presencial! É intuitivo que a audiência de custódia perde sua razão de ser quando realizada por videoconferência. O preso mantido no estabelecimento prisional, sob custódia muitas vezes das próprias pessoas que realizaram sua detenção, não se sentirá seguro para reportar eventual violência que tenha sofrido. O juiz não terá meios de verificar o real estado físico e emocional do preso através de uma tela de computador. 

O Supremo Tribunal Federal já afirmou que o direito de presença do acusado às audiências integra a ampla defesa. Curioso que tal direito tenha sido afirmado em habeas corpus concedido a Fernando Beira-Mar (HC 86634), significando que, não importa a gravidade dos crimes imputados, direitos fundamentais são para todas e todos. 

O uso de videoconferência só se justifica em situações excepcionais, pois indiscutivelmente presença e videoconferência são coisas distintas. Ainda que se admita a realização de audiências judiciais por videoconferência durante a pandemia Covid-19, essa modalidade não deve ser aplicada a processos com réus presos. Principalmente tratando-se de audiências de custódia. 

Não por outro motivo, o CNJ, sob a presidência do ministro Dias Toffoli, vedou expressamente a realização de audiências de custódia por videoconferência, mesmo no ambiente de pandemia (art. 19 da Resolução 329). Contudo, no dia 24 de novembro, tal entendimento foi revisto pelo Conselho com apoio de duas importantes associações de juízes, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação dos Juízes Federais (Ajufe). 

Nesse cenário, é que nós, juízas e juízes da Associação Juízes para a Democracia (AJD), estamos nos posicionando, esclarecendo porque somos contrários à realização de audiências de custódia por videoconferência mesmo durante a pandemia.

Entendemos que se trata de serviço essencial, e por isso deve ser realizado de forma presencial, adotados os cuidados e protocolos necessários para evitar a contaminação dos atores envolvidos. Embora estejamos em ambiente de pandemia, em nenhum momento foi decretado lockdown no Brasil. Serviços essenciais continuam funcionando com as adaptações necessárias e, diga-se de passagem, serviços nem tão essenciais assim também não foram interrompidos. 

A juíza presidente da AMB, na sessão do CNJ em que foi aprovada a audiência de custódia por videoconferência, afirmou que as audiências criminais virtuais vinham sendo realizadas de forma exitosa, tratando-se de um case de sucesso. Ressaltou que não havia nenhuma notícia de problemas na realização dessas audiências. Ponderou ainda que nas audiências de custódia virtuais haveria possibilidade de aferição de maus tratos, pelo fato de ser garantida a presença de defensores públicos e advogados ao lado dos presos. 

Por sua vez, ao acolher o argumento, o ministro Luiz Fux afirmou que seriam instaladas câmeras de 360 graus nos estabelecimentos prisionais, câmeras externas para monitorar a entrada dos presos nas salas de custódia, e que ficaria facultada a presença de advogados, podendo ainda o preso pedir a presença de promotores de justiça para reportar abusos.

Discordamos da viabilidade e eficácia dessas medidas. Em primeiro lugar, é de se ponderar que a situação excepcional que justificaria a realização da audiência de custódia por videoconferência é a pandemia. A ideia é evitar a circulação de pessoas. Chegou-se a argumentar que havia risco de os juízes contaminarem as pessoas encarceradas e que a medida visava assim assegurar a integridade física dos próprios presos.

Mas a sugerida presença física de defensores, advogados e promotores nos locais de custódia, como forma de minimizar os riscos de tortura contra presos, implica na circulação de pessoas nos presídios. Ao que parece, garantida mesmo a presença de defensores e promotores no ambiente prisional, apenas os juízes seriam poupados e poderiam realizar o ato no conforto de suas casas. 

A proposta é de que a fiscalização da situação do preso pelo juiz seja substituída pelo reporte do defensor. Contudo, é materialmente impossível que o juiz verifique, do outro lado da tela do computador, se eventual alegação de maus tratos, formulada pelo defensor ou pelo próprio preso, procede. Vê-se assim que a presença física do defensor na carceragem não substitui o contato pessoal do preso com o juiz. 

Além disso, “facultar” ao preso a presença de um defensor não é o mesmo que impor a presença de um defensor na carceragem para que o ato seja realizado. Não há absolutamente essa garantia, pelo contrário. A Resolução aprovada afirma que o preso permanecerá sozinho na sala, “ressalvada a possibilidade de presença física de seu advogado ou defensor no ambiente”. 

Contudo, as defensorias públicas de todo o Brasil não estão aparelhadas para estar presentes nos estabelecimentos prisionais para participação in loco das audiências de custódia. Na prática, a maioria dos presos não possui advogado e dificilmente haverá defensores suficientes para acompanhar o ato. O que se espera dos presos é que sozinhos, diante do computador, comunicando-se com defensores, promotores e juízes situados em outros ambientes, tenham expediente, segurança e iniciativa para reportarem as circunstâncias de sua prisão e se sofreram abusos. Acreditar que isso seja possível é, com todas as vênias, ignorar a realidade. 

A instalação de câmeras nos estabelecimentos prisionais e de equipamento suficiente para as audiências virtuais demanda investimentos. É muito mais econômico, racional e eficiente que todos os atores envolvidos no ato estejam na sala de audiência, separados por divisórias de acrílico, com máscaras e demais equipamentos de proteção para evitar o contágio.  

A assertiva de que as audiências virtuais são um “case” bem sucedido traz implícita a ideia de que, revelando-se uma experiência exitosa, poderá ser adotada de forma definitiva, e não apenas durante a pandemia. O discurso de que o Judiciário está adaptado aos meios digitais, funcionando bem e a pleno vapor, reforça a ideia de que o contato humano é dispensável.

Também a afirmação de que não há notícias de problemas na condução das audiências criminais virtuais deve ser recebida com cautela. A “não notícia” faz acender um sinal de alerta, justamente porque o método adotado não permite a identificação dos problemas. Como já se procurou demonstrar, a violência é institucionalizada. Não tomar conhecimento dela é a questão crucial aqui. 

Um dos efeitos deletérios dessa realidade é a banalização de práticas de tortura, por parte de agentes privados. João Alberto foi espancado por mais de 5 minutos até morrer asfixiado. A sessão de tortura foi praticada por dois trabalhadores contratados para atuarem como “leões de chácara” no supermercado. Algo, aliás, muito comum nesse tipo de estabelecimento. A tortura e a morte foram filmadas por uma terceira pessoa, uma trabalhadora do local, que em momento algum cogitou dar ordem para que parassem com o espancamento. 

A crise sanitária, econômica e humana que estamos vivendo não tem precedentes. A banalização da tortura, em larga medida determinada pela ausência de um verdadeiro acerto de contas com a experiência da ditadura civil-militar, faz com que situações como essa se multipliquem, dentro e fora das prisões.

A situação é emergencial, sem dúvida. Contudo, momentos excepcionais exigem a intensificação da proteção dos direitos fundamentais dos mais vulneráveis e não o inverso. 

É urgente que os mecanismos de controle para prevenção e repressão da prática de tortura no Brasil sejam aprimorados. A experiência das audiências de custódia é ainda muito recente, não se tem sequer exata dimensão dos resultados obtidos. Nesse contexto, é lamentável que tão rapidamente ocorra a desfiguração e esvaziamento do instituto, sob qualquer pretexto. 

Realizar audiências de custódia por videoconferência é retroceder no controle judicial da prática da tortura no Brasil. 

Valdete Souto Severo é professora de Direito e Processo do Trabalho, juíza do trabalho e presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Simone Schreiber é professora de Direito Processual Penal da UNIRIO, desembargadora federal e associada da AJD.

Crédito: Cau Gomez

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

treze + quinze =