Wendy Brown, filósofa feminista, provoca: fracassa, em meio à pandemia, ideia de organizar a sociedade a partir do individualismo e mercados. Está evidente a necessidade do Comum. Mas contra a direita, é preciso ressignificar a liberdade
Wendy Brown, entrevistada por Verónica Gago, no Le Monde Diplomatique Cono Sur / Outras Palavras / Tradução: Simone Paz
A filósofa, cientista política e professora Wendy Brown conversou com Verónica Gago no ciclo de debates feministas “Conversas Latino-Americanas”, poucos dias após a derrota de Trump, e na véspera do lançamento de seu livro “Nas ruínas do neoliberalismo. A ascensão da política antidemocrática no Ocidente”. Na palestra, Brown abordou a sobrevivência do trumpismo, a demonização da democracia pelo neoliberalismo e a necessidade de redefinirmos o conceito de liberdade para a esquerda, a fim de separá-lo da carga agressiva e antiestatal que lhe é atribuída pela direita.
A derrota de Trump, mas não do trumpismo, os desafios da esquerda e dos movimentos sociais, as maneiras de entender o devir reacionário dos setores populares e o conceito de liberdade em disputa. Essas são algumas das chaves da conversa entre Wendy Brown e Verónica Gago que vão muito além da conjuntura estadunidense, para interrogar, também, a vida e seu cotidiano.
Você começou a escrever o livro “Nas ruínas do neoliberalismo. A ascensão da política antidemocrática no Ocidente” no início do governo Trump; e hoje estamos traduzindo e editando o texto no final desse ciclo político — embora saibamos que dificilmente tenha chegado ao seu fim. O que significa a ideia das ruínas do neoliberalismo?
Temos que pensar que a expressão “ruínas” se refere a algo que já é antigo mas que, no entanto, não morreu. Uso o termo “ruínas” porque ainda vivemos no neoliberalismo, o neoliberalismo não acabou, mas ele está em decadência. Muitas coisas estão desmoronando ou se arruinando. No âmbito econômico, o neoliberalismo dispersou e deslocou comunidades, as regulamentações estatais desapareceram e muitas empresas locais foram substituídas por empresas globais. Tudo isso fez com que milhões de pessoas no mundo todo tivessem sua situação deteriorada, ficassem na precariedade. Nunca, desde a Grande Depressão, a classe trabalhadora americana esteve em uma posição tão vulnerável e com um futuro tão difícil. Essas são as ruínas econômicas do neoliberalismo.
Mas a ruína vai para muito além da economia. É a ruína de uma forma de organizar e governar que valorizava a moralidade tradicional como única forma possível de organização: os mercados e a moralidade tradicional. As formas livres e espontâneas de associação, a soberania dos povos, os projetos de justiça social e igualdade, tudo isso é demonizado pelo neoliberalismo, que não busca a liberdade, mas a imposição de um modelo de engenharia social. O neoliberalismo é uma forma de totalitarismo. Assim, depois de quarenta anos dessas políticas econômicas e forma de raciocínio, temos, em muitas sociedades industrializadas, uma classe trabalhadora que se reconverteu a formas mais baratas de trabalho, os salários foram reduzidos. O mesmo acontece com a educação ou infraestrutura, que estão em frangalhos. Mas o neoliberalismo também é responsável pela perda da confiança na democracia. É um ataque à democracia em termos de justiça social, redistribuição, igualdade. Enquanto isso, os mercados são subsidiados e a moralidade tradicional continua sendo promovida.
Ao mesmo tempo, o neoliberalismo trouxe novas formas de desigualdade social que antes não existiam. Há muitas maneiras de medir esse fenômeno, mas a que melhor ilustra tudo isso é o fato de que uma única pessoa possui mais riqueza do que outras 5 bilhões. Em outras palavras, 22 homens têm mais dinheiro do que todas as mulheres da África. Isso indica que algo diferente do que estava nos planos originais está acontecendo: o ataque plutocrático às instituições. Essa classe plutocrática, que agrediu os poderes institucionais, constitui um poder antagônico à democracia e usa esse poder político para garantir sua própria posição. Porém, ao mesmo tempo em que se vale dela, o poder plutocrático quer suprimir a democracia — à primeira vista, algo contrário ao que [os criadores do neoliberalismo] tinham em mente no início. O que a plutocracia faz hoje é criar uma economia que lhes garanta o monopólio do poder sem ter que recorrer às instituições da democracia. Isso acontece no Brasil e em outras partes da América Latina, mas também nos Estados Unidos. Os valores da democracia são substituídos por uma vontade agressiva de poder. Os plutocratas, em coligação com as igrejas evangélicas, demonizam a democracia e o estado social em nome de uma ideia muito particular de liberdade, agressiva e antissocial.
A promessa de recuperar um mundo que não existe mais cria uma base extraordinária para o autoritarismo. Um mundo estável, seguro, homogêneo, organizado por valores cristãos e patriarcais. Meu argumento é que o neoliberalismo é um dos berços das formas fascistas e autoritárias.
Como funciona essa articulação entre neoliberalismo e conservadorismo? Como você mesma diz, não era algo que estava nos planos originais dos pais fundadores do neoliberalismo. Como surge essa combinação, que vemos se desenvolver em escala global e que tem seu momento de laboratório político na era Trump? Qual é a particularidade conjuntural da junção entre neoliberalismo e conservadorismo? É algo que você passou a notar principalmente a partir da era Trump?
O conservadorismo faz parte da arquitetura original do neoliberalismo. Os neoliberais argumentam que a moralidade tradicional deve ser a base da legislação social; que deve se pautar em valores de família, propriedade privada e autoridade. Se há primazia do indivíduo, é sempre em um quadro hierárquico, não em um modelo igualitário. O que chamamos de conservadorismo esteve presente desde o início, o que não se previa era que passaria de uma forma de organizar a ordem das coisas, a uma abordagem tão agressiva e demagógica, para se tornar uma verdadeira formação neofascista. E acho que isso deve ser explicado pela falha original do neoliberalismo em entender que as populações não podiam ser pacificadas pelos mercados nem pela moralidade, mas que podiam ser ativadas de forma agressiva — forma que eu chamo de “não-exaltada” — e que alude a uma certa perda das inibições, ao surgimento de um caráter antissocial e agressivo que se manifesta publicamente em ataques abertos aos outros. É só isso que não existia no início do neoliberalismo. Os mercados e a moral tinham que organizar a sociedade, mas de forma silenciosa e com calma, e não operando em um plano tão decididamente político.
Quanto à aliança entre o moralismo de mercado e o conservadorismo cristão no trumpismo, os evangélicos dos EUA estão bem cientes de que Trump não é cristão, não é uma pessoa virtuosa, não é alguém que opta pelos mesmos valores que eles. Mas estão convencidos de que Deus o enviou como agente de sua missão na Terra, que é cristianizar a nação, reintroduzir o ensino religioso nas escolas, acabar com o aborto e erradicar o feminismo. Eles acreditam em tudo isso e acham que Trump é o agente do projeto, embora não seja um deles. E ele trabalhou nisso com muito cuidado. Finge rezar, por exemplo, mesmo com todos sabendo que Trump não é uma pessoa piedosa. Acho que Bolsonaro também tem muito disso, assim como outras figuras da Europa, como Le Pen na França, e outras personalidades da extrema-direita alemã. Mesmo na Hungria, onde o cristianismo faz parte do conservadorismo, os líderes da extrema-direita não são necessariamente líderes cristãos.
Levando em consideração essa caracterização do conservadorismo como um ativismo político, como podemos pensar sua expansão numa escala massiva, mesmo em setores populares de nossas sociedades? Como esse conservadorismo consegue combinar-se com uma afetividade das classes populares e trabalhadoras, enquanto assume esse ativismo político em termos conservadores.
Aqui é possível começar a perceber algumas diferenças entre as culturas de nossos diferentes países. Um dos legados da globalização neoliberal nos Estados Unidos é a profunda divisão cultural entre, por um lado, aqueles que se sentem conectados ao mundo, à cultura global, ao cosmopolitismo, à vida urbana — pessoas que se reconhecem como norte-americanos, mas também parte de um mundo musical, linguístico, artístico, laboral, econômico, que existe além das fronteiras do país — e, por outro lado, aqueles que eu chamaria de “a média do país”, que podem ser chamados de “suburbanos”, “exurbanos”, ou também “rurais”. Este grupo se sente profundamente alienado de todo esse aspecto da cultura contemporânea, mas também desse aspecto do que o neoliberalismo tem feito, que é quebrar as barreiras nacionais, provocar o movimento de pessoas ao redor do mundo através da migração e nos tornar um país com muito mais mistura — em alguns anos, os brancos serão uma minoria neste país, os Estados Unidos serão o que chamamos de um país de minoria majoritária. Isso é muito ameaçador para aqueles que se sentem terrivelmente abandonados de todas as maneiras que já falamos. Eles estão despencando economicamente, e se sentem social e culturalmente desprezados ou ridicularizados por seus modos de vida, seus hobbies, seus interesses ou sua falta de educação. E, é claro, o trumpismo cultivou esse sentimento. Ele se dirigia a eles como se sua ignorância e rejeição ao cosmopolitismo, inteligência, intelectualismo, ideias, cultura, fosse algo bom, algo valioso.
O próprio Trump incorporou esses valores. Com isso, ele reforçou aquele conservadorismo refratário a um mundo mais aberto, mais diverso, mais mutante; fortaleceu a ideia de que é possível se limitar àquelas vidas fechadas dos subúrbios brancos. Mesmo se colocarmos o cristianismo de lado, por uns instantes, podemos nos limitar apenas a essas vidas suburbanas brancas, fechadas, e chamar isso de “América” e rejeitar todo o resto. Esse sentimento foi fortemente intensificado, por um lado, pelo conservadorismo, mas também pelos efeitos da desvalorização da educação no neoliberalismo. Para o neoliberalismo, educação é formação para o trabalho; não o enxerga como uma formação que joga luz sobre a humanidade, o mundo, a natureza ou a cultura. Trata a educação simplesmente como forma de desenvolver o capital humano, e essa perspectiva foi concretizada por meio do desinvestimento na educação pública, especialmente no ensino superior, mas onde também as escolas foram afetadas e sua qualidade caiu drasticamente. Isso agrava o problema da população de classes trabalhadora e média que não vivem nos centros urbanos, que não conhecem o mundo, não querem conhecer o mundo e se sentem ameaçadas pelo mundo. E isso, por sua vez, exacerba o conservadorismo, o anti-intelectualismo, a xenofobia e tudo o mais.
Existe uma discussão em torno das expressões “fascismo”, “novos fascismos”, “tendências neofascistas”. Você acha que elas estão corretas, em termos sistemáticos e de uso político, para caracterizar a situação atual em relação a esse desenvolvimento que você acaba de fazer da relação conservadorismo-neoliberalismo?
Eu tenho uma contradição interna, comigo mesma, nesse quesito. Em parte, porque o termo “fascismo” é muito carregado de significado relacionado à Segunda Guerra Mundial. Acredito, sim, que vivemos em uma formação neofascista, se entendemos por isso a mobilização do poder do Estado para definir a nação e o povo de forma homogênea e arregimentá-los após um projeto específico que é discriminatório, violento, militarizado. Tudo isso está aí. Mas, ao mesmo tempo, o motivo pelo qual uso outro termo, “liberalismo autoritário”, é porque as liberdades civis nos EUA estão no centro do projeto neofascista neste momento. É muito importante que vejamos como a ideia de liberdade é mobilizada pela direita contra a esquerda, como forma de construir um apoio para este — que agora eu chamo assim — movimento neofascista. É complicado porque, quando falamos de fascismo, imaginamos um Estado muito forte e uma falta de liberdade individual; no entanto, aqui temos algo diferente. Por um lado, sim, temos um regime de propaganda no trumpismo; temos, também, a mobilização do etnonacionalismo branco para a construção de um projeto nacional muito específico. Mas, por outro lado, a liberdade é o cartão de visita deste projeto, e ela é usada para constranger a esquerda.
Acho que se não prestarmos atenção nisso, nunca entenderemos o diferencial desse regime e o porquê de ser tão bem-sucedido. Especialmente nos EUA, onde a liberdade individual está há muito tempo na raiz de seu credo, mesmo que ela não tenha sido estendida às minorias subjugadas do país, mulheres ou pessoas LGBTI. Mesmo não tendo sido universalizada, está no cerne do credo norte-americano. Portanto, prefiro o termo “liberalismo autoritário” porque acho que descreve com maior precisão o que temos hoje e por que temos que lutar. Mas não estou dizendo que não haja dimensão fascista em tudo isso. Há e, de fato, estamos vendo isso na recusa de Trump em deixar o poder, em seus esforços de desinformação e propaganda, em seu esforço para incitar à violência, sem descartar que ele tente usar a força militar para permanecer no poder mais um pouco. Mas acho que o fascismo é apenas uma dimensão, não é tudo.
A palavra “derrota” é pertinente no caso de Trump, mas também parece grandiosa demais para nos referirmos ao trumpismo, correto?
O trumpismo não foi derrotado. Trump foi derrotado e temos que celebrar esse momento. E comemoramos. A dança nas ruas foi algo extraordinário. Nós, norte-americanos, não costumamos sair para dançar assim, mas dessa vez sim, fizemos uma coisa que é mais comum pra vocês [argentinos]: dançar na rua. Comemoramos e dançamos porque essa figura específica do neofascismo, do liberalismo autoritário, foi expulsa da presidência. Ele vai alegar e tentar de tudo, mas terá que deixar seu gabinete presidencial. No entanto, o trumpismo não foi derrotado, 70 milhões de pessoas ou mais votaram em Trump e muitos deles estão inconformados por não terem vencido. Eles estão com medo, estão convencidos de que o novo regime vai destruir suas vidas, seus valores, suas igrejas e se apegam ao pouco que têm. Toda a formação antidemocrática, racista e patriarcal que Trump ungiu e mobilizou ainda está bem viva. Ele ainda está vivo não apenas graças à sua base, mas também porque Trump agora tem um enorme controle sobre o partido da direita. E não posso mais chamá-lo simplesmente de “conservador”, é um partido de direita. O próprio partido é antidemocrático. Literalmente, eles estão tentando anular votos, estão tentando manipular os distritos, para poder manter o controle do país, mesmo com uma minoria dos votos. E eles estão em uma posição muito favorável para fazer tudo isso. Então, temos um partido trumpista e suas bases que não foram derrotadas. E há Trump. Estamos muito satisfeitos em tê-lo removido da presidência, mas não há muito que o governo Biden possa fazer, com um Senado e uma Suprema Corte republicanos nas mãos da extrema direita, então este não será o ensaio para uma alternativa. Além disso, há o problema de que o que Biden representa é um retorno ao centro, não uma saída para o caos do neoliberalismo.
Qual formato de articulação ou organização política você imagina que esse trumpismo social assuma sem a liderança presidencial de Trump?
Existem diferentes dimensões para abordar essa questão. O trumpismo não é uma formação unitária, de um único tipo. Existe a alt-right, que imagino que vai continuar atuando como de costume. São neonazistas, fascistas, racistas radicais que, sempre que puderem, tentarão provocar distúrbios e ataques. Eles têm estado surpreendentemente silenciosos nas últimas semanas e tenho certeza de que estão se reagrupando e repensando sua estratégia, mas não vão embora. Depois, há aqueles que Trump mobilizou para acreditar que a eleição foi roubada, mas que não são necessariamente da extrema-direita. Fico feliz em ver que esse número está diminuindo. Provavelmente, apenas metade do Partido Republicano acredite, atualmente, que a eleição foi fraudada, mas mesmo assim, ainda há muitos eleitores. E com isso me sinto meio paralisada, porque, sem dúvida, Trump vai mobilizá-los para recuperar a Casa Branca; com certeza, eles já têm vitórias no Senado e nas legislaturas locais — o quanto as vitórias republicanas alcançaram nas eleições locais foi impressionante — então eles já têm uma boa base para operar.
Acho que a grande questão é se a ala de esquerda e a ala de centro dos democratas poderiam combinar-se para construir uma alternativa mais poderosa e atraente. Esta é a pedra angular de toda a situação atual. A esquerda não pode romper, mas o centro também não pode se dar ao luxo de empurrar a esquerda pra fora do trem. Porque é aí que estão os millennials, o Black Lives Matter, o ativismo LGBTI, o movimento MeToo… É onde está todo o ativismo. E se eles não ganharem nada com este governo, se forem ocultados, ou negados, como companhia vergonhosa, eles não voltarão a apoiar um candidato democrata, nem voltarão a participar da política eleitoral. Esta é a primeira vez em décadas que a esquerda participa tão ativamente. Muita gente da esquerda já tinha votado antes, mas esta é, provavelmente, a primeira vez desde os anos 1930 que a esquerda se engaja na política eleitoral como se tivesse futuro para um projeto de esquerda, social-democrata ou socialista. Se isso for subtraído do Partido Democrata, como se não fosse nada — que é o que eu acho que alguns centristas querem fazer — será o fim do Partido Democrata. Se esse acordo for quebrado, o Partido Democrata está acabado.
Como avaliar o impacto da mobilização mais recente do Black Lives Matter, mas também dos movimentos feministas e LGBTI? Sua capacidade de instaurar um termo como “racismo estrutural” na campanha trouxe que tipo de consequências? Como a sua força entra em jogo, de agora em diante?
No momento, essa é a grande questão. Temos, de um lado, o Black Lives Matter, as feministas, os movimentos pelos direitos dos migrantes, pela Justiça Climática, o Extinction Rebellion e muitos outros. Enfim, um grande leque de ativismos que se mobilizou para a eleição, mas que entendeu imediatamente que deveria voltar ao seu trabalho nos movimentos sociais. Não vamos conseguir nada vindo de dentro [do governo], a menos que os movimentos continuem crescendo. Os movimentos sociais de esquerda, os populismos de esquerda não podem permitir que toda a energia dos movimentos sociais seja desviada para a política legislativa e eleitoral, onde seria neutralizada e diluída. Em vez disso, os movimentos têm que voltar às ruas, têm que voltar à organização e a mobilizar as pessoas que ainda não participam. Por exemplo, a população latina ao longo da fronteira com o Texas, que apoiou fortemente Trump — em parte, porque são famílias de segunda e terceira geração que, em muitos casos, trabalham para o ICE, nossa agência de deportação, ou são pequenos empreendedores, ou têm pequenos comércios — foi organizada e mobilizada pelo Partido Republicano, que apelava à ideia de liberdade, a valores sociais conservadores e ao medo do que os democratas poderiam fazer com eles. Enquanto isso, os movimentos sociais e o Partido Democrata nem sequer se aproximaram deles. Os movimentos sociais precisam crescer, precisam sair das bolhas, sair para se organizar. Estou falando da organização convencional, o tipo de organização que sai do Facebook e das redes sociais e vai ao encontro do ser humano em seus bairros, em suas casas, em suas comunidades, onde essas pessoas vivem e, mobilizando-as por mundos melhores, torna-se parte dessas comunidades. Se isso não acontecer, os movimentos sociais continuarão sendo um estímulo efetivo para a política eleitoral, mas não terão o poder real de fazer cumprir suas reivindicações, nem crescerão para além da população basicamente urbana com a qual já dialogam hoje.
Você diria que o fantasma do socialismo, que rondou a campanha contra a ideia de liberdade, foi realmente eficaz, que ele tem capacidade real de interpelação, ou seria uma coisa mais midiática?
Acho que o discurso contra o socialismo foi usado de forma muito eficaz pela direita. Um dos presentes que o neoliberalismo deu ao conservadorismo foi o de continuar a demonizar o socialismo e a social-democracia, muito além do “espectro” do comunismo representado pela União Soviética e até pela China. A ideia, por exemplo, de uma política de estado responsável em torno da covid-19, que impusesse distanciamento social, o uso de máscaras e os fechamentos necessários para conter o vírus, foi acusada de ser socialista, totalitária. Reações semelhantes suscitaram esforços para estabelecer um Programa Nacional de Saúde que garantisse o acesso aos serviços para toda a população do país — este também foi qualificado como socialista e totalitário. Essas reações não vêm do velho discurso da Guerra Fria, vêm da demonização neoliberal do Estado de bem-estar. Penso nas sociedades onde o sentimento de precariedade já era muito grande, onde a ideia do estado força você a fechar o seu negócio por um mês, ou fechar a escola por três meses, para conter o vírus, parecia catastrófica. A direita chama essas ações do Estado de “socialismo” e responde dizendo: “precisamos de liberdade”, “precisamos abrir nossos negócios”, “todos temos direito de trabalhar”. Acho que tudo isso teve um grande poder de ressonância e mobilizou muito os eleitores de Trump.
No livro você fala sobre cultivarmos perspectivas de esquerda: como poderíamos repensar uma noção de liberdade que não seja conjugada nos termos de uma liberdade ingênua, ou rapidamente capturada em termos liberais, e que também não seja absorvida pela ideia de liberdade que o neoliberalismo conseguiu atrelar à ideia de segurança?
Qual seria, então, o conceito de liberdade capaz de fugir desses outros dois? O mais importante para os norte-americanos — e não acho que seja necessariamente o mesmo desafio que enfrentam os brasileiros, argentinos ou chilenos, porque vocês têm uma tradição mais robusta em termos de socialismo e social-democracia, tanto em termos intelectuais quanto num nível mais popular — é que a esquerda possa explicar e fazer circular, em termos muito simples, uma noção de liberdade que se conecte com o cerne do socialismo. Uma noção de liberdade que envolva o livrar-se da carência, ser livres do desespero e da precariedade, livres do desamparo de não ter moradia. “Liberdade de”, mas também “liberdade para”: liberdade para realizar nossos sonhos, e não apenas sobreviver; liberdade de escolher, não simplesmente de abortar ou de com quem dormir – que é importante –, mas também de construir vidas, construir comunidades e mundos nos quais todos tenhamos vontade de viver. Se não trabalharmos imediatamente na ressignificação da liberdade, para torná-la um conceito que afirme as visões da esquerda, para afastá-la desse tipo de reiteração libertária, agressiva, antissocial e antiestatal, perderemos essa batalha.
Porque muitas dessas pessoas das quais eu falo, que vivem na precariedade, sentem que a liberdade é a única coisa que lhes resta, é a única coisa que pensam que têm. Elas se sentem abandonadas e descartadas; com tanta coisa acontecendo no mundo, se sentem bombardeadas por poderes que não entendem; se sentem como objeto de desprezo por um mundo mais sofisticado — e se apegam ao que chamam de liberdade, mas nós temos que ressignificar essa liberdade. A liberdade deve criptografar não apenas a solidariedade e o bem-estar social, mas também a capacidade de vivermos em um ambiente sustentável e protegido que, atualmente, está sob enorme perigo. É assim que a liberdade nos envolve e atinge. E é inútil dizer que recuperar a liberdade é livrar-nos de algum peso, ou falar de liberdade apenas como abolicionismo, ou liberdade como sinônimo de livrar-nos da polícia. Tudo isso pode até ser verdade, mas não vai seduzir ninguém. O que seduz é a liberdade como algo com o que se constrói a vida.
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Wendy Brown. Imagem: Outras Palavras