Amazônia como “ativo problemático” e o despotismo quase perfeito. Por Luis Fernando Novoa Garzon

No Correio da Cidadania

A in­cor­po­ração da Amazônia, tal como vem sendo pro­ces­sada nas úl­timas dé­cadas, im­plica na cris­ta­li­zação da con­dição de su­ple­men­ta­ri­dade econô­mica do país como um fim em si mesmo. O des­fa­zi­mento pro­gra­mado da Amazônia só pode acon­tecer em um país feito aces­sório e posto pre­me­di­ta­da­mente à de­riva.

Essa se­le­ti­vi­dade re­versa, em favor da pri­ma­ri­zação e en­xu­ga­mento das ca­deias pro­du­tivas aqui ins­ta­ladas, re­pre­senta uma poda pre­ven­tiva de ca­deias de valor po­ten­ciais ou in­com­pletas. Re­pre­senta uma ab­di­cação de tri­lhar ha­bi­li­ta­ções pós-in­dus­triais e uma au­to­con­de­nação a de­mandas exó­genas de curto prazo.

Ga­nhar pela es­cala e pelo vo­lume sig­ni­fica perder o halo es­sen­cial que ga­rante au­to­nomia e tra­je­tória cons­ci­ente de uma co­le­ti­vi­dade. Eis o que sig­ni­fica o li­miar da Amazônia, a sua ne­gação como campo in­findo de al­ter­na­tivas, ou seja, de re­per­tó­rios de au­to­nomia so­cial, cul­tural e econô­mica.

O ar­ranjo ter­ri­to­rial con­ce­bido para a re­gião amazô­nica, como um mo­saico de terras pro­te­gidas em meio a cor­re­dores de ocu­pação que res­pei­tassem o marco do zo­ne­a­mento econô­mico-eco­ló­gico, já não cabe nem mesmo como marco ló­gico que valha ci­ni­ca­mente cor­tejar. Do ci­nismo am­bi­ental, com pleno res­paldo das ins­ti­tui­ções mul­ti­la­te­rais, passou-se à apo­logia do crime e da tru­cu­lência dos agentes econô­micos cuja ex­pansão de­pende da im­pu­ni­dade frente a prá­ticas de de­vas­tação am­bi­ental, de gri­lagem de terras e da lim­peza so­cial dos ter­ri­tó­rios.

Esse mo­delo [de] in­cor­po­ração ter­ri­to­rial em larga es­cala atra­vessou di­versos pe­ríodos his­tó­ricos e formas go­ver­na­men­tais. Em li­nhas ge­rais, pode-se afirmar que vi­gorou, na di­ta­dura mi­litar, um pla­ne­ja­mento ter­ri­to­rial cen­tra­li­zado por es­ta­tais e re­cursos pú­blicos com par­ce­rias pri­vadas pre­fe­ren­ciais – por meio de grandes pro­jetos mul­ti­se­to­riais, com o Pro­jeto Grande Ca­rajás e a UHE de Tu­curuí.

A partir dos anos 1990, es­pe­ci­al­mente nos anos FHC, vi­gorou, na es­fera econô­mica, um maior pro­ta­go­nismo dos agentes pri­vados que pas­saram a ser con­tro­la­dores pri­meiros das ge­ra­doras elé­tricas e in­dús­trias ex­tra­tivas, o que re­dun­daria em uma maior es­pe­ci­a­li­zação e fle­xi­bi­li­zação dos eixos es­pa­ciais. Nos Go­vernos Lula e Dilma, o Pro­grama de Ace­le­ração do Cres­ci­mento (PAC 1 e PAC 2) foi sendo ero­dido no que tinha de in­jun­ções cha­madas “es­tru­tu­rantes” do de­sen­vol­vi­mento re­gi­onal e ter­ri­to­rial em função dos re­qui­sitos de má­ximo re­torno dos in­ves­ti­dores pri­vados.

Ini­ci­a­tivas pa­ra­lelas, lan­çadas em 2011, como o PIL – Pro­grama In­te­grado de Lo­gís­tica, já de­no­tavam a de­manda em­pre­sa­rial por um papel menos re­gu­lador e me­di­ador das agên­cias pú­blicas para uma função de su­porte in­con­di­ci­onal para a re­a­li­zação do in­ves­ti­mento pri­vado. O ob­je­tivo era fa­tiar e ofertar aos in­ves­ti­dores pri­vados os cor­re­dores e equi­pa­mentos lo­gís­ticos mais ren­tá­veis com ga­ran­tias ili­mi­tadas do BNDES.

O lan­ça­mento do Pro­grama Par­ceria de In­ves­ti­mentos (PPI) em 2016, feito por um go­verno ile­gí­timo (Go­verno Temer) e em busca de sub­se­quente res­paldo em­pre­sa­rial, re­pre­sentou um pro­grama-ponte em que o apa­relho do Es­tado as­su­miria de forma inequí­voca seu papel im­pul­si­o­nador do setor pri­vado. As con­di­ci­o­na­li­dades se tornam re­versas, as con­tra­par­tidas vêm sempre do setor pú­blico em termos de sa­cri­fí­cios de re­gu­la­men­tação e tri­butos que di­mi­nuam o cha­mado “custo-país”. Isso torna im­pro­vável a pos­si­bi­li­dade de frus­tração de lu­cros pre­su­midos e de ní­veis de ca­pi­ta­li­zação das ações e de­bên­tures por meio de marcos re­gu­la­tó­rios e es­quemas de fi­nan­ci­a­mento re­al­mente muito “amis­tosos”.

O Go­verno Bol­so­naro herda o PPI e pro­cura torná-lo exequível em um ce­nário de ar­rocho fiscal di­ri­gido pelo teto li­near de gastos não fi­nan­ceiros, pro­cu­rando co­brir riscos e in­cer­tezas não ge­ren­ciá­veis com um maior en­qua­dra­mento dos pro­jetos e a mais com­pleta se­gre­gação de riscos so­ciais e am­bi­en­tais. As pri­va­ti­za­ções, nessa ótica, se­riam uma “de­vo­lução” de “ativos re­cu­pe­rados”. Em ou­tros termos, o Go­verno Bol­so­naro teria obri­gação de pri­o­rizar “ativos pro­ble­má­ticos” para que ve­nham a ser atra­entes e fun­ci­o­nais.

O que está li­te­ral­mente na ordem do dia em re­lação à Amazônia, esse imenso “ativo pro­ble­má­tico”, é a cri­ação pa­ra­es­tatal e pa­ra­mi­litar de dis­po­si­tivos per­pe­tra­dores de ge­no­cí­dios e de eco­cí­dios con­ti­nu­ados. Não se trata aqui de eventos iso­lados, mas de um mé­todo go­ver­na­mental-em­pre­sa­rial que re­or­ga­niza os pro­cessos pro­du­tivos sob im­pulso da má­xima ren­ta­bi­li­zação, ape­lando para a sin­te­ti­zação de povos e ter­ri­tó­rios na forma de custos e riscos fi­nan­ceiros.

Sin­te­ti­zação, re­dução, su­pe­rex­plo­ração que nunca bastam. A ine­vi­tável cor­rosão dos re­sul­tados dessas es­tra­té­gias de ex­pansão não produz qual­quer “cons­ci­ência sú­bita” dos li­mites na­tu­rais do ca­pi­ta­lismo. Ao con­trário, a des­tru­ti­vi­dade cri­a­dora como úl­timo re­curso de um ca­pi­ta­lismo em fase ne­cró­faga faz com que a fron­teira não seja apenas uma margem fí­sica para acu­mu­lação am­pliada, mas sim uma forma de me­ta­bo­lismo: o es­tertor como mé­todo.

A Amazônia se tornou palco pre­fe­ren­cial de sa­cri­fí­cios de longo prazo que servem para so­li­di­ficar acordos econô­mico-po­lí­ticos de curto prazo. En­quanto en­tram em ope­ração todos os gra­di­entes de uma guerra total e as­si­mé­trica contra povos e co­mu­ni­dades in­dis­so­ciá­veis de seus ter­ri­tó­rios, as Forças Ar­madas dis­si­mulam sua ir­re­le­vância ou mos­tram o má­ximo de es­forço para de­mons­trar sua pas­si­vi­dade frente a des­co­mu­nais sub­tra­ções. Te­atro de ope­ra­ções verde-ama­relas para nor­ma­lizar ope­ra­ções vende-pá­tria das ca­deias trans­na­ci­o­nais de carne, soja, energia e mi­nério que pre­sidem os ci­clos de ex­pansão/de­vas­tação na Amazônia. Veja que o des­ma­ta­mento não passa de um in­di­cador dessa bar­bárie pla­ne­jada. Não basta medi-lo, men­surá-lo, mo­ni­torá-lo. Tam­pouco basta li­mitar o des­ma­ta­mento para obter uma es­pécie de moeda de troca, um sinal ou selo verde para a vinda de in­ves­ti­mentos “di­fe­ren­ci­ados”.

Mesmo sendo no­tório o es­trago pro­du­zido por dé­cadas de des­re­gu­la­men­tação dos se­tores es­pe­ci­a­li­zados em re­cursos na­tu­rais, re­verter esse “apagão” da gestão está fora de pauta no país das com­mo­di­ties. Ainda que com en­tre­veros cir­cuns­tan­ciais, acerca da “go­ver­na­bi­li­dade am­bi­ental” do país, pa­rece não haver di­ver­gência entre os três po­deres no brinde e na re­ve­rência aos in­ves­ti­dores que sus­tentam o país pelo can­gote. Ao final, tem-se um bloco de poder in­te­res­calar móvel, des­co­lado e de­sa­fo­rado que é re­sul­tante das ali­anças entre seg­mentos de con­glo­me­rados em com­pe­tição e bu­ro­cra­cias po­lí­ticas cap­tu­rá­veis, tal como foi ex­posto na obs­cena reu­nião mi­nis­te­rial em que se ofe­receu dar de “ba­ciada” sim­pli­fi­ca­ções e fle­xi­bi­li­za­ções re­gu­la­tó­rias.

A pan­demia de Covid-19 ra­di­ca­lizou os efeitos dessas po­lí­ticas de ma­le­a­bi­li­dade re­gu­la­tória e de aber­tura de novas fron­teiras de acu­mu­lação. As con­di­ções de­si­guais de vida, apro­fun­dadas com a COVID, re­dun­daram em con­di­ções de­si­guais de so­bre­vi­vência. Am­plos seg­mentos so­ciais nas ci­dades e co­mu­ni­dades do campo e da flo­resta foram en­tre­gues à sua pró­pria sorte, sem ex­pansão pro­por­ci­onal das redes de aten­di­mento, sem adap­tação e es­pe­ci­fi­cação dos pro­cessos de di­ag­nós­tico, con­trole e tra­ta­mento se­gundo suas es­pe­ci­fi­ci­dades cul­tu­rais. Co­e­ren­te­mente, um lema adi­ci­onal de­veria ser aposto ao li­be­ra­lismo que vira ne­cro­li­be­ra­lismo: de­pois de “deixai fazer e deixai passar”, deixar morrer.

É o vo­lume e a ve­lo­ci­dade das pi­lha­gens, das des­re­gu­la­men­ta­ções, das con­ces­sões e pri­va­ti­za­ções que ga­rantem bônus-per­ma­nência para Bol­so­naro até 2022. Blin­dagem con­di­ci­onal contra im­pe­a­ch­ments par­la­men­tares ou in­ves­ti­ga­ções cri­mi­nais der­ra­deiras sobre seus fa­mi­li­ares. As pautas in­to­cadas do ren­tismo e do pri­va­tismo ex­pressam como se na­tu­ra­liza e se es­praia um “bol­so­na­rismo sem Bol­so­naro”. O viés dos mer­cados fi­nan­ceiros e dos grandes con­glo­me­rados con­torna os “ex­cessos ide­o­ló­gicos” do Go­verno Bol­so­naro para que se efe­tivem todas as es­po­li­a­ções, pri­va­ti­za­ções e re­formas li­be­ra­li­zantes pre­vistas, man­tendo as apa­rên­cias de­mo­crá­ticas. Sem dés­pota efe­tivo, um des­po­tismo quase per­feito.

Luis Fer­nando Novoa Garzon, so­ció­logo, pro­fessor da Uni­ver­si­dade Fe­deral de Rondônia.

Áreas protegidas no Pará estão entre as mais ameaçadas e pressionadas da Amazônia. Foto: Felipe Werneck /Ibama


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