Perseguição, morte e direito à terra: a retomada xokleng traz à tona a história da etnia no RS

Luciano Velleda, no Sul21

A retomada xokleng na Floresta Nacional de São Francisco de Paula (Flona), nos últimos dias de dezembro de 2020, deu visibilidade para um tema que andava adormecido. A ancestral presença dessa etnia indígena no Rio Grande do Sul não vinha sendo objeto de debate nos últimos tempos, ao menos na mídia, pois internamente, nos tortuosos caminhos dos órgãos públicos do Brasil, a reivindicação dos xokleng por seu território está na pauta há muitos anos.

A intenção do governo do presidente Jair Bolsonaro em ceder à iniciativa privada a exploração da Flona de São Francisco de Paula, no entanto, foi a gota d’água para os indígenas. Sem respostas dos órgãos competentes sobre o direito ao território que consideram como seu, nos campos de cima da serra, a opção foi pela ação de retomada para dar visibilidade ao tema, composta por cerca de dez famílias xokleng que vieram de Santa Catarina.

A Justiça Federal acabou determinando a reintegração de posse solicitada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão federal que faz a gestão de unidades de conservação no País. Os xokleng obedeceram, saíram da Flona e agora cerca de cinco famílias permanecem acampadas à margem da estrada diante da entrada do território.   

“Os xokleng são do grande grupo linguístico Macro Jê, parentes próximos dos kaingangs, e cuja territorialidade histórica e temporal sempre se deu em relação as terras altas, aos campos de cima da serra, muito em função dos recursos naturais”, explica o historiador Rafael Frizzo, autor de um documento sobre a presença dessa etnia na região e a luta pelo reconhecimento ao direito do território. “São indígenas dos campos de cima da serra e que têm direitos originários de estarem hoje reivindicando seu território ao sul do Brasil.”

Nessa entrevista ao Sul21, Frizzo reconstituí a história dos xokleng no estado e conta como foram brutalmente caçados, mortos e expulsos de suas terras nas primeiras décadas do século 20. O historiador detalha o movimento de diálogo feito nos últimos anos pelos indígenas junto ao ICMBio, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Ministério Público Federal (MPF), um esforço para obter o reconhecimento ao direito à terra onde se localiza a Flona de São Francisco de Paula, criada na década de 1940. Um esforço de diálogo em vão até o momento.

“Esses grupos estão num contexto nacional de repressão e falta de diálogo, estão no pior momento da história recente do país pra querer um requerimento de grupo de trabalho da Funai”, explica Frizzo. “Não é exagero dizer que há um certo fascismo ambiental no Brasil atualmente, mas acredito nas instituições, a gente precisa acreditar nelas porque são os únicos caminhos, e muito especificamente o Ministério Público Federal. Não vai resolver do dia pra noite. Esses grupos estão lá pra dialogar, não querem o que é do ICMBio, eles querem parte do seu território e da sua ‘mãe’ que não querem ver privatizada”, enfatiza.

Sul21: O que despertou a recente retomada dos indígenas da etnia xokleng em São Francisco de Paula?

Rafael Frizzo: A gente precisa entender isso como uma questão social muito séria, que remete a uma reparação histórica. Não podemos entender como um simples movimento de ocupação, como temos visto em alguns meios. É um movimento profundo, um processo que sempre houve na história dos povos ameríndios de toda a América, que são processos de retomada de seus territórios ancestrais. Num primeiro momento são movimentos entre os próprios povos indígenas, em períodos pré-coloniais, mas no presente contemporâneo isso tem se realizado contra a sociedade ocidental, contra o mundo não-indígena.

É preciso deixar claro que esses povos sempre retomaram seus territórios, não é um processo de ocupação de índio sem-terra. É importante destacar que essa retomada xoglneg está relacionada com outras retomadas nos últimos anos, como a dos Guaranis nos territórios da antiga Fepagro, fechada pelo governo Sartori, em terras públicas do estado, e também a retomada dos kaingangs na Floresta Nacional de Canela, e agora a dos xokleng, que está retornando aos seus territórios ancestrais no Rio Grande do Sul.

Sul21: Era uma etnia que não estava mais presente no estado, certo?

Rafael Frizzo: É importante rebater o mito que se criou no último século de que os xokleng não são indígenas do Rio Grande do Sul, são de Santa Catarina. Isso é algo que precisa ser desconstruído. Os xokleng são do grande grupo linguístico Macro Jê, parentes próximos dos kaingangs, e cuja territorialidade histórica e temporal sempre se deu em relação as terras altas, aos campos de cima da serra, muito em função dos recursos naturais. Temos que entender que para esses povos, o seu território é um bioma, não é uma divisão de um estado, como no caso Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde se pega o rio Mampituba e divide um bioma no meio. A gente segue sobre erros arbitrários de entendimento que esses grupos não entendem. Para eles é o bioma dos campos de cima da serra e, obviamente, eles circulavam entre o Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. São indígenas dos campos de cima da serra e que têm direitos originários de estarem hoje reivindicando seu território ao sul do Brasil.

Sul21: Como ocorreu a perda desse território?

Rafael Frizzo: Primeiro tivemos o processo de colonização com colonos portugueses e espanhóis, depois a colonização alemã e italiana, e essas duas últimas colonização fazem um enfrentamento bastante drástico pra sobrevivência desses povos. Através dos bugreiros, milícias armadas, muitas vezes formadas por indígenas cooptados, se especializaram em fazer a captura dos xolkengs nas bordas do planalto. Primeiramente tivemos a herança do latifúndio, das sesmarias, é assim que o território se cria, e quando se começa a abrir os primeiros caminhos de tropa e também de colonização até Caxias do Sul e Gravataí, esses bugreiros intensificam os ataques, matam esses homens e retiram suas orelhas como troféus. Eles (os xokleng) ainda tem essa memória dos ataques que sofreram, com suas mulheres raptadas, pegas por cachorros no mato e depois distribuídas entre as instâncias, as oligarquias, nas cidades próximas de Taquara, Santo Antonio da Patrulha, Osório e nas colônias de Caxias. Temos muitas estórias de crianças entregues pra adoção e que crescem, se miscigenam, estão aí entre nós, e outras ainda sobrevivem nos matos e precisam se refugiar em outros vales, como em Itajaí, que teve uma ocupação mais tardia, mas que a partir de 1910 chega de uma maneira bastante forte. E hoje é uma parte da comunidade xokleng de Ibirama que volta ao Rio Grande do Sul. É uma comunidade que não tem resposta sobre os seus direitos.

Sul21: Antes da retomada feita agora em dezembro, houve tentativa de diálogo com o governo federal?

Rafael Frizzo: Eles estão tentando contato com a Funai. Em 2010, 2016 e 2018 houve pedidos formais ao Ministério Público Federal, com abertura de inquérito civil, para que grupos de trabalho na Funai deem continuidade aos estudos de seus territórios no estado.

Sul21: Então a retomada de agora não tem relação com a proposta do governo federal de concessão à iniciativa privada da Floresta Nacional de São Francisco de Paula?

Rafael Frizzo: Está sim relacionado, mas é um universo muito mais profundo do que uma judicialização pode dar conta. Esse aspecto do Programa Nacional de Concessão dos serviços nas unidades de conservação do Brasil, das unidades que estão sob a gestão do ICMBio e do Instituto Chico Mendes, é a gota d’água desse processo. A privatização desses espaços tem papel muito importante nesses movimentos. E por que? Porque esses movimentos são ancestrais pra esses grupos, porém eles não encontram meios de se fazer entender, eles vão na Funai e nada acontece, procuram os órgãos competentes e ninguém os ouve.

O ministro Sales acelerou esse processo de concessão dos serviços nesses espaços, ou seja, em outras palavras, privatização. Então os grupos não têm sido ouvidos e, quando veem, seus territórios estão sendo privatizados. Isso por si só já é a justificativa para o processo de retomada, eles estão vendo suas vozes silenciadas e seu território privatizado.  Desde 2010, a FLONA de São Francisco de Paula tem conhecimento, através dos seus gestores, de que esse território está para ter um conflito desencadeado a qualquer momento. Inclusive houve seminário promovido pelo ICMBio pra tentar fazer um mapeamento e discutir políticas de gestão pra possíveis conflitos como esse.

O entendimento de especialistas é de que há um conflito que precisa ser resolvido, há sobreposição de territórios, unidades de conservação sobre áreas indígenas. A partir disso, políticas públicas envolvendo os órgãos competentes e estados e municípios, podem fazer gestão compartilhada e é isso que eles estão requerendo, eles estão abertos ao diálogo, mas querem ser reconhecidos.

Sul21: Como você avalia a decisão de reintegração de posse?

Rafael Frizzo: Penso que foi arbitrária. Eles estavam dentro de uma área de pinos, uma espécie exótica invasora, onde o plano de manejo da unidade de conservação permite a presença humana, inclusive de acampamento e fogueira no local. A decisão foi arbitrária, o grupo não estava dentro das instalações do ICMBio, não estava dentro de área de conservação restrita, estavam na entrada, na sede administrativa, onde o plano de manejo permite a ocupação humana. Se qualquer pessoa fosse lá, como turista, seria recebida no espaço. Mas os indígenas foram classificados, inclusive, como esbulho possessório, ou seja, eles sofreram esbulho sobre seus territórios e corpos a vida inteira, são sobreviventes nessa estória, e hoje são eles que estão fazendo ‘esbulho possessório’ na sua terra. Então temos infelizmente entendimentos muito arbitrários que prejudicam o diálogo, e eles querem o diálogo, estavam ali justamente pra tensionar os órgãos a dialogar. Eles não têm outras alternativas, já tentaram todos os meios possíveis.

Sul21: A Flona de São Francisco de Paula quando foi criada, na década de 1940, ignorou a anterior presença indígena no local?

Rafael Frizzo: Temos duas questões constitucionais que são dever do Estado e de fundamental importância para a conservação da nossa biodiversidade e da nossa sociodiversidade. A Flona, como unidade de conservação, é direito de todo povo brasileiro em ter seus recursos naturais preservados para as futuras gerações; e o reconhecimento e a demarcação de territórios indígenas também é um direito fundamental, originário e constitucional. Então os dois territórios são complementares, porém, infelizmente, nas últimas décadas, sobretudo a partir da Constituinte de 1988, houve uma ruptura, como todo pensamento ocidental em dividir cultura e natureza, homem e natureza, mitos criados de que a natureza só vai se desenvolver isolada e de que o homem só tem a destruir. Infelizmente esse é o ideal de modernidade, onde realmente o homem destrói a natureza. Só que quem sai perdendo são os povos tradicionais, sobretudo indígenas.

E nessa dicotomia homem e natureza, povos indígenas e unidades de conservação, criou-se essa separação. Quando a Flona foi criada, nos anos 40, esse diálogo não existia, era ainda a época do Serviço de Proteção Indígena, de integração dos sobreviventes à comunidade nacional. A gente vinha tendo uma evolução muito clara no país e que, infelizmente, nos últimos três ou quatro anos teve uma ruptura drástica, que era o reconhecimento da diversidade humana, toda essa política construída a duras penas.

Sobre a Flona, atualmente há dois documentos técnicos recentes, que é a revisão do plano de manejo, em 2020, que é o documento que faz o zoneamento e diz como esse território funciona, quais são os animais, as plantas, os recursos hídricos, enfim, qual a função dessa floresta nacional pra sociedade do entorno e também pra reserva da biosfera da Mata Atlântica. E dentro desse território encontramos esses erros que não podem mais ser permitidos, que é a gente não se ater a Organização Internacional do Trabalho quando diz em ouvir as comunidades indígenas em todo o processo de constituição dos planos de manejo e sobretudo os planos de uso público. O plano de manejo talvez possa ser mais resguardado, agora o plano de uso público, quando é revisado, em 2020, a gente não pode mais denegar a situação. Então quando, desde 2010, tem um evento do ICMBio que já declara a possibilidade de conflito por sobreposição do território xokleng e a unidade de conservação, no mínimo essas comunidades precisam ser ouvidas, o plano de uso público precisa reconhecer.

Sul21: O que deve acontecer a partir de agora?

Rafael Frizzo: Esses grupos estão num contexto nacional de repressão e falta de diálogo, estão no pior momento da história recente do país pra querer um requerimento de grupo de trabalho da Funai. A Funai está completamente inoperante. O ICMBio tem muitos servidores bons, assim como a Funai, mas a gestão acaba fazendo um aparelhamento contra essas comunidades. Não é exagero dizer que há um certo fascismo ambiental no Brasil atualmente, mas acredito nas instituições, a gente precisa acreditar nelas porque são os únicos caminhos, e muito especificamente o Ministério Público Federal. Não vai resolver do dia pra noite. Esses grupos estão lá pra dialogar, não querem o que é do ICMBio, eles querem parte do seu território e da sua ‘mãe’ que não querem ver privatizada. As instituições precisam funcionar. Talvez a Flona fosse o caso de gestão compartilhada, com espaços de pinos de uso sustentável para inicialmente acomodar essas comunidades, mas no sentido de que esses territórios precisam ser ampliados. A conservação da natureza é fundamental, e se reconhece que é preciso a conservação da vida e da identidade dos territórios, e os xokleng são parte desse território.

Se quer, por exemplo, privatizar o serviço, criar uma rota turística. Esses grupos poderiam assumir as trilhas. Imagina fazer uma trilha guiada por indígenas? Não que não se tenha também o guia tradicional, mas as pessoas podem querer ouvir a etnobotânica, a etnoecologia das coisas. Infelizmente a briga entre indigenistas e ambientalistas se dicotomizou muito, estamos brigando pelo mesmo bem comum, que são as áreas protegidas e os territórios tradicionais. É preciso encontrar diálogo, mediado pelo Ministério Público Federal e por instituições como ICMBio e Funai. A gente sabe que a realidade é difícil, mas falta muitas vezes boa vontade política e administrativa. Os xokleng o tempo todo dizem que querem recuperar o território deles, mas querem  trabalhar junto, querem fazer parte do processo, não é simplesmente terra por mais terra.

Imagem: Os xokleng sempre ocuparam os campos de cima da serra no sul do Brasil. Expulsos do RS, buscam agora a retomada do território na região de São Francisco de Paula. Foto: Alass Derivas/Deriva Jornalismo

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