A história da ‘Casa da Morte’ contada pela única sobrevivente

Por André Bernardo, para a BBC News Brasil

Noventa e seis dias. Esse foi o tempo que durou o “calvário” de Inês Etienne Romeu (1942-2015) na “Casa da Morte”, em Petrópolis, na região serrana do Rio.

O termo é empregado pela historiadora Isabel Cristina Leite, doutora em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para descrever o período em que a militante política esteve presa no aparelho clandestino montado pelo Centro de Informações do Exército (CIE) para torturar e matar guerrilheiros com papel de destaque em suas respectivas organizações — no caso dela, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), um dos grupos que lutaram contra a ditadura militar.

De oito de maio a 11 de agosto de 1971, Inês sofreu tortura, estupro e humilhação de agentes do governo. Dos ativistas levados para a “Casa da Morte”, foi a única que conseguiu sobreviver para contar a história. Pelo menos 22 adversários do regime, segundo estimativas oficiais, não resistiram às torturas e foram executados. O advogado goiano Paulo de Tarso Celestino da Silva, capturado em 12 de julho de 1971, foi um deles.

Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), Inês contou que Paulo de Tarso foi colocado no pau de arara e, durante quase 30 horas ininterruptas, torturado com choques elétricos. “Obrigaram-no a ingerir uma grande quantidade de sal”, diz um trecho do depoimento de Inês. “Durante muitas horas, eu o ouvi suplicando por um pouco d’água”. Até hoje, o corpo de Paulo de Tarso não foi localizado.

Em julho de 2020, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou três militares pelo sequestro e tortura do ex-militante Paulo de Tarso, da Ação Libertadora Nacional (ALN): os sargentos Rubens Gomes Carneiro, o “Boamorte”, e Ubirajara Ribeiro de Souza, o “Zezão”, e o soldado Antônio Waneir Pinheiro Lima, o “Camarão”. Além da condenação dos denunciados, o MPF pede a perda de cargo público, o cancelamento da aposentadoria e uma indenização de R$ 111,3 mil à família.

“Estou na expectativa de que, à semelhança do que ocorreu em outros países do mundo, inclusive na América Latina, o Judiciário brasileiro reveja a posição que vem prevalecendo em suas decisões e julgue criminalmente os responsáveis pelas graves violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura militar”, afirma o advogado Pedro Dallari, ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

“São crimes terríveis, praticados por funcionários públicos no exercício de sua função. Não podem, portanto, ser qualificados como crimes políticos ou conexos, estes, sim, suscetíveis de proteção pela Lei da Anistia”.

Violência sexual

Além de participação nos crimes de tortura, execução e ocultação de cadáver de Paulo de Tarso, entre outros presos políticos, Antônio Waneir Pinheiro Lima, o “Camarão”, é apontado por Inês como o homem que a estuprou duas vezes durante os quase três meses em que esteve presa na “Casa da Morte”. Aos 77 anos, o ex-paraquedista, que ganhou o apelido pelo tom avermelhado da pele, é o único militar que responde por violência sexual na ditadura militar.

“Inês sobreviveu aos horrores daquela casa e, apesar de ter sido vítima de todo tipo de tortura e humilhação, nunca entregou ninguém”, afirma a historiadora Isabel Cristina Leite. “Na saída, foi atrás de seus algozes, obteve êxito ao denunciá-los e virou símbolo da luta contra os anos de chumbo. Conseguiu tanta visibilidade que a ditadura se sentiu perdendo o controle da situação. Os militares chegaram a pensar em revogar a Lei da Anistia por causa de Inês e do movimento que ela liderou”.

Inês Etienne Romeu sendo libertada em 29 de agosto de 1979. Foto: Arquivo Estadão

Espião nazista

A denúncia do MPF é apenas mais um capítulo de uma história macabra: a da “Casa da Morte”.

Muito antes de ser usado como aparelho clandestino de tortura pelo regime militar, o antigo número 668 da Arthur Barbosa, no bairro de Caxambu, pertenceu ao alemão Ricardo Lodders, preso pelo menos duas vezes por suspeita de espionagem durante a Segunda Guerra. No local, existe outra casa, também de propriedade de Lodders.

No início da década de 1970, o filho de Ricardo, Mário Lodders, cedeu o sobrado para o general José Luiz Coelho Neto (1921-1986), subcomandante do CIE, mas continuou morando, com a irmã Magdalena Júlia Lodders, na casa que faz parte do terreno. Por diversas vezes, Mário Lodders visitou a “Casa da Morte”. Numa dessas ocasiões, chegou a oferecer uma barra de chocolate para Inês Etienne Romeu.

“O sobrado da Arthur Barbosa foi escolhido por ser um lugar isolado. Os agentes podiam circular livremente, sem chamar a atenção de ninguém”, explica Eduardo Schnoor, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

“Houve muitas casas como a de Petrópolis na época da ditadura. Herdada do exército francês, essa metodologia visava desestruturar o prisioneiro. Eles nunca sabiam onde estavam. Eram trocados de lugar o tempo inteiro para evitar o reconhecimento do seu paradeiro”.

Biriba no cativeiro

Mineira de Pouso Alegre, a 373 km de Belo Horizonte (MG), Inês Etienne Romeu participou de grêmio estudantil, cursou História e trabalhou em banco. Em 1963, chegou a abrir um bar na capital mineira. Em homenagem ao guerrilheiro argentino Ernesto Che Guevara (1928-1967), resolveu batizá-lo de “Bucheco”.

Como integrante do VPR, participou do sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher (1913-1992) no dia 7 de dezembro de 1970. Em troca, o guerrilheiro Carlos Lamarca (1937-1971), ex-capitão do Exército e líder da operação, exigia a libertação de 70 presos políticos.

Durante a operação, o agente federal Hélio Carvalho Araújo, responsável pela escolta do embaixador, levou dois tiros e morreu no local. O sequestro, o mais longo realizado por um grupo de guerrilheiros na ditadura militar, durou 40 dias. No cativeiro, Bucher assistia à TV e jogava biriba com Lamarca. “O sequestro durou mais que o necessário”, avalia a historiadora Isabel Cristina Leite. “Foi um dos últimos suspiros da guerrilha urbana no país”. Em 16 de janeiro de 1971, o embaixador suíço foi libertado.

Com o fim do sequestro, Inês decidiu abandonar a luta armada e exilar-se no Chile. Mas era tarde demais. Em 5 de maio de 1971, ela foi capturada por agentes do delegado Sérgio Paranhos Fleury (1933-1979) em São Paulo, sob acusação de integrar o comando do VPR. Depois de ser levada para o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS), onde sofreu as primeiras sessões de tortura, foi transferida para a “Casa da Morte”, em Petrópolis. Tinha 29 anos.

Descida aos infernos

Ao chegar ao Rio, Inês ainda tentou atirar-se debaixo de um ônibus. Escapou com vida. No cativeiro, foi submetida a uma rotina de violência e humilhação. “Era obrigada a limpar a cozinha nua, ouvindo gracejos e obscenidades”, contou em depoimento à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 1979.

A qualquer hora do dia ou da noite, estava sujeita a sofrer tortura física ou psicológica, como choques elétricos ou injeções de pentatol sódico, o “soro da verdade”. “Um dos mais brutais torturadores arrastou-me pelo chão, segurando pelos cabelos. Depois, tentou estrangular-me e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e me deram pancadas na cabeça”.

No inverno, quando a temperatura na serra podia chegar a menos de 10ºC, Inês era obrigada pelos carcereiros a tomar banhos gelados de madrugada ou a se deitar nua no cimento molhado. Em três ocasiões ela tentou o suicídio. Numa delas, engoliu vidro moído. Noutra, cortou os pulsos. “Eu estava arrasada, doente, reduzida a um verme e obedecia como um autômato”, contou à OAB.

‘Queima de arquivo’

O objetivo dos interrogatórios, admitiu o coronel reformado Paulo Malhães (1938-20/14), o “Doutor Pablo”, era “virar o preso”. Ou seja: pressioná-lo a mudar de lado e, em seguida, delatar os companheiros de luta. Inês só escapou viva porque enganou o coronel Cyro Guedes Etchegoyen (1929-2012), o “Doutor Bruno”. Ela conseguiu convencer o militar de mais alta patente dentro da casa de que tinha virado uma “RX” — ou “infiltrada”, no jargão militar. Mas era um blefe.

Em 25 de abril de 2014, um mês depois de prestar depoimento à CNV, Paulo Malhães foi encontrado morto, com sinais de asfixia, em seu sítio em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Em depoimento, assumiu ter participado de torturas, mortes e desaparecimentos de presos políticos. Para evitar a identificação de suas vítimas, arrancava os dedos e as arcadas dentárias delas. Em seguida, esquartejava seus corpos e os incinerava em uma usina de açúcar, em Campos dos Goytacazes (RJ).

“O depoimento de Paulo Malhães foi de extrema importância”, avalia Dallari. “Tendo sido assassinado em abril do mesmo ano, aparentemente em um caso de latrocínio, até hoje persiste a dúvida sobre a causa de sua morte, se não teria sido uma ‘queima de arquivo'”.

Inês Etienne e Celina Romeu, em foto de 2014. Foto: CNV

Bordado no xadrez

Pesando 32 quilos, Inês foi deixada na casa de uma irmã, Geralda, em Belo Horizonte. Debilitada, foi levada para um hospital. Lá, os advogados optaram por oficializar sua prisão. Era uma forma de protegê-la de seus algozes. Condenada à prisão perpétua — com base no artigo 28 da Lei de Segurança Nacional (LSN) —, cumpriu pena de oito anos, de 1971 a 1979, no presídio Talavera Bruce, em Bangu, no Rio, por ter participado do sequestro do embaixador suíço.

No presídio, relembra uma ex-companheira de cela, Inês gostava de contar histórias, bordar tapetes e ver novelas. “Na prisão, Inês suportou o isolamento do convívio com as demais presas, que a acusavam de delatora. Para elas, a delação era a única justificativa para Inês ter saído com vida da ‘Casa da Morte'”, explica a historiadora Isabel Cristina Leite.

No período em que esteve presa, Inês foi sabatinada por jornalistas, como Lilian Newlands e Elias Fajardo da Fonseca, por sugestão de sua irmã, Lúcia. Numa dessas entrevistas, conheceu e fez amizade com Márcia de Almeida, que trabalhava como repórter “freelancer”. Contou, entre outras coisas, que conheceu o líder camponês Mariano Joaquim da Silva (1930-1971), da Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), no cativeiro. “Eu achava que ia morrer e fiquei viva. Ele achava que ia ficar vivo e morreu”, contou Inês à edição do jornal Pasquim de agosto de 1979.

“Ao voltar para casa, tive uma crise de choro e fiquei três dias sem dormir”, recorda Márcia, hoje diretora da ONG Inês Etienne Romeu, que luta para transformar a “Casa da Morte” em um memorial, o Centro de Verdade, Justiça e Memória. “Devemos a Inês tudo o que sabemos sobre a ‘Casa da Morte’. Ela foi um exemplo de coragem, perseverança e determinação”.

Memória privilegiada

A história da “Casa da Morte” não teria sido contada se não fosse Inês. Ela conseguiu memorizar tanto os nomes de nove presos políticos que foram supostamente executados lá — como Carlos Alberto Soares de Freitas, o “Beto”, que comandou Dilma Rousseff nos tempos da VAR-Palmares — quanto os codinomes de 19 torturadores e de alguns de seus colaboradores — entre eles, o médico Amílcar Lobo (1939-1997), o “Doutor Cordeiro”.

Segundo denúncias, a função de Lobo era examinar os presos políticos para avaliar se eles ainda tinham condições de continuar a ser torturados. Ele teve seu registro médico cassado pelo Conselho Federal de Medicina em 1989.

Última presa política a ser libertada no Brasil — não pela anistia, mas sim em liberdade condicional —, Inês resolveu denunciar a existência da “Casa da Morte” de Petrópolis. Mais que memorizar os nomes de torturados e torturadores, ela conseguiu descrever a planta da casa: um imóvel de três quartos, sala, banheiro e garagem subterrânea.

Também recordava o número de telefone do lugar: 4090. Com a ajuda do jornalista Antônio Henrique Lago, pesquisou catálogos da companhia telefônica de Petrópolis. Demorou, mas achou. O número levou ao assinante e, dali, ao endereço da “Casa da Morte”: Rua Arthur Barbosa, 668.

Acidente ou atentado?

O sofrimento de Inês não terminou com a soltura da prisão, em 1979. Em 11 de setembro de 2003, sua diarista a encontrou, caída e ensanguentada, em seu apartamento no bairro da Consolação, em São Paulo. Na véspera, ela tinha pedido ao porteiro que deixasse subir um marceneiro para fazer um reparo em sua casa. O traumatismo craniano a deixou com sequelas na fala e nos movimentos. O caso nunca foi elucidado. Na delegacia, foi registrado como “acidente doméstico”.

“Sempre me impressionei com sua memória”, observa a jornalista Juliana Dal Piva, que entrevistou Inês diversas vezes, entre 2012 e 2015. “Lembrava detalhadamente de muita coisa. Tanto que fez um relatório minucioso que estudo até hoje. É um documento muito duro de ler. Como mulher, desde a primeira vez que li, tive que parar e, ainda hoje, paro no meio da leitura por causa da crueldade descrita”, diz a repórter do jornal O Globo, que pretende transformar a história da “Casa da Morte” em livro, ainda sem previsão de lançamento.

Seis anos depois do misterioso “acidente doméstico”, Inês recebeu, durante cerimônia em Brasília, em 2009, um prêmio de direitos humanos, na categoria de Direito à Memória e à Verdade, das mãos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Minha querida Inês, só queria lhe dizer uma coisa: valeu a pena cada gesto que vocês fizeram, cada choque que vocês tomaram, cada apertão que vocês tiveram”, declarou Lula. A cerimônia contou com um discurso emocionado de Dilma Rousseff, ex-companheira na VAR-Palmares e então ministra do governo.

Inês Etienne Romeu morreu na madrugada de 27 de abril de 2015, aos 72 anos, enquanto dormia em sua casa em Niterói, município vizinho ao Rio.

Fachada da Casa da Morte, em Petrópolis, que foi de esconderijo de espião nazista a centro clandestino de tortura. Foto: CNV

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