Apesar da última decisão do tribunal britânico no caso Assange, a ameaça à liberdade de imprensa no mundo segue vigente
Roxana Baspineiro, Agência Latino-americana de Informação (ALAI), no Brasil de Fato
Julian Assange não será extraditado para os Estados Unidos, de acordo com a sentença emitida na segunda-feira, 4 de janeiro, no tribunal de Westminster, em Londres ,pela juíza Vanessa Baraitser, uma vez que as condições carcerárias naquele país implicam um risco real de suicídio para o fundador e (ex-)editor-chefe do Wikileaks. No entanto, em sua sentença, a juíza apoiou a maioria dos argumentos da promotoria em relação aos fundamentos nos quais se baseia a acusação e rejeitou os argumentos da defesa.
Portanto, embora a sentença represente uma primeira vitória para Assange – além de ser uma condenação moral das condições terríveis do sistema penitenciário dos EUA –, a ameaça que este caso representa para a liberdade de imprensa no mundo permanece vigente e poderia ser reativada no tribunal de apelação.
Jornalismo sob ameaça
São muitos os especialistas e defensores dos direitos humanos que concordam que o que está em jogo neste caso jurídico não é apenas a extradição de Assange e seus direitos humanos individuais, mas que o que for decidido nos tribunais britânicos também terá um impacto direto na situação dos jornalistas do mundo inteiro, servindo, como eles afirmam, de exemplo para qualquer pessoa que ousasse vazar informações consideradas “classificadas” que, em princípio, questionam as ações de governos como os Estados Unidos, o que poderia levar à autocensura.
Eles concordam, portanto, que é a liberdade de imprensa que está sendo julgada em Londres, uma vez que seu papel é questionar e expor informações de interesse público, especialmente quando envolve graves violações dos direitos humanos.
“O que se conclui agora, para jornalistas e editores em geral, é que qualquer jornalista em qualquer país da Terra – na verdade, qualquer pessoa – que transmita segredos que não estejam de acordo com as posições políticas da administração dos EUA, poderia ser processado sob a Lei de Espionagem de 1917”, disse Carey Shenkman, um advogado estadunidense de direitos humanos que está escrevendo um livro sobre uma análise histórica da Lei de Espionagem de 1917, durante seu testemunho em setembro no tribunal de Londres.
De acordo com o Departamento de Justiça dos EUA, Assange teria conspirado com Chelsea Manning, uma ex-oficial militar dos EUA, para baixar ilegalmente centenas de milhares de registros das guerras do Iraque e Afeganistão, juntamente com uma grande coleção de cabos classificados (Cablegate) do Departamento de Estado dos EUA. Por isso, ele é acusado de 18 acusações, 17 das quais estão sob a controversa Lei de Espionagem, aprovada após a Primeira Guerra Mundial, há mais de um século, e usada para perseguir espiões e dissidentes políticos.
A lei tem sido criticada pelos advogados internacionais de direitos humanos, que a considerar inconstitucional por criminalizar o recebimento e a publicação de informações classificadas. O editor-chefe do WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson, a chamou de “arcaica”, observando que nunca antes havia sido usada contra um jornalista e editor.
A acusação contra Assange, com base neste lei, se centra quase exclusivamente no tipo de atividades que os jornalistas da área de segurança nacional realizam rotineiramente em relação às suas fontes, comunicando-se com elas confidencialmente, solicitando-lhes informações, protegendo suas identidades de divulgação e publicando informações classificadas.
“A decisão de acusar Julian Assange por alegações de uma ‘conspiração’ entre um editor e sua(s) fonte(s), e pela publicação de informações verdadeiras, viola liberdades fundamentais da imprensa”, disse Trevor Timm, da Fundação para a Liberdade de Imprensa, que defende os direitos dos jornalistas e monitora as violações da liberdade de imprensa nos Estados Unidos, durante seu apelo de setembro em Londres.
“Os materiais sobre os quais os jornalistas escrevem e imprimem geralmente não pousam magicamente em suas mesas […] Os jornalistas conversam com as fontes, pedem esclarecimentos, pedem mais informações. Ou seja, esta é uma prática padrão para os jornalistas”, ressaltou.
No entanto, a estratégia adotada pelos promotores estadunidenses foi processar Assange não como um editor, mas como um hacker, ou seja, acusá-lo de conspirar para invadir um computador do governo dos EUA, ao invés de acusá-lo de publicar informações confidenciais, muito provavelmente, dizem os especialistas, para camuflar o ataque direto à liberdade de imprensa consagrado na Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos.
A publicação de informações obtidas ilegalmente é protegida por lei nos Estados Unidos. Mas o ato de obter essas informações, por exemplo, através de roubo ou hacking, é um crime.
“É um caso claro de liberdade de imprensa. E as tentativas do Departamento de Justiça de mudar a questão para um caso de hacking, quando não há absolutamente nenhuma evidência deste ato da parte do Sr. Assange, acho que demonstra seu desejo de se afastar de questões importantes de liberdade de imprensa”, disse uma das advogadas de Assange, Jennifer Robinson, em uma entrevista ao Democracy Now!
O que está em jogo é o acesso dos cidadãos ao direito de informação
Em 2010, o WikiLeaks publicou duas série de reportagens em colaboração com os principais meios de comunicação do mundo (The New York Times, The Guardian e Der Spiegel), conhecidas como Diário de Guerra do Afeganistão e Registro de Guerra do Iraque. Nas reportagens, foram revelados diversos documentos oficiais dos EUA que representam graves violações dos direitos humanos e crimes de guerra cometidos pelas forças norte-americanas em ambos os países, bem como a tortura infligida a prisioneiros em centros de detenção clandestinos da CIA e abusos na prisão estadunidense na Baía de Guantánamo.
Embora este material tenha sido vazado sob gestão jornalística legal, como alega sua defesa, e protegido pela Primeira Emenda, além do fato de que o maior vazamento de documentos do Cablegate não foi publicado inicialmente pelo WikiLeaks, mas pelo Cryptome, um site de vazamento com sede nos Estados Unidos bem conhecido na comunidade informática, o sistema de justiça dos Estados Unidos se empenhou em conduzir um processo criminal sem precedentes contra Assange. De fato, lançou um impensável processo extraterritorial contra um meio de comunicação e um cidadão estrangeiro, seu editor.
John Sloboda, cofundador do Iraq Body Count, uma ONG independente dedicada a contar continuamente as mortes de civis no Iraque, testemunhou em setembro sobre a importância dos vazamentos do WikiLeaks e do trabalho com Assange nos registros da Guerra do Iraque divulgados em outubro de 2010. Ele destacou que, dez anos depois, os Registros de Guerra do Iraque “continuam sendo a única fonte de informação sobre as centenas de milhares de mortes violentas de civis no Iraque entre 2004 e 2009”.
“Os dados sobre vítimas civis devem ser sempre tornados públicos”, acrescentou, observando que os EUA “nunca foram capazes de provar que um único indivíduo tenha sido significativamente prejudicado pela divulgação dessas informações”, referindo-se às alegações do governo dos EUA de que a divulgação poderia ter colocado em perigo a vida de iraquianos ou estadunidenses.
Enquanto isso, desde novembro de 2010, de acordo com vários defensores dos direitos humanos, Julian Assange tem sido vítima de um processo tortuoso por parte dos EUA e de países que têm sido vistos como aliados (Reino Unido, Equador e Suécia), o que deixa claro para muitos a sua perseguição política, pois tem sido evidente a insistência em vincular atividades jornalísticas totalmente legítimas com supostas pirataria ilegal ou espionagem.
“O WikiLeaks fez o que todos os jornalistas deveriam fazer, que é disponibilizar ao público informações importantes que permitem às pessoas fazer julgamentos baseados em evidências sobre o mundo ao seu redor e, em particular, sobre as ações de seus governos que revelam crimes graves de estado”, disse Patrick Cockburn, jornalista investigativo do The Independent, durante seu testemunho em setembro.
Assim, embora os promotores estadunidenses insistam em argumentar que Assange não é um jornalista, mas um hacker ou espião, o que os especialistas advertem contra é que, se ele for extraditado e julgado, seria a porta de entrada que permitiria aos Estados Unidos processar e investigar uma ampla gama de jornalistas globalmente, fazendo com que editores e jornalistas se autocensurem por medo de represálias.
“Se a imprensa não publicasse informações classificadas sem autorização, o debate público sobre guerra e segurança ocorreria em um ambiente de informação controlado quase que inteiramente por funcionários do Poder Executivo”, disse Jameel Jaffer, diretor executivo do Instituto Knight da Primeira Emenda na Universidade de Columbia, durante sua argumentação na Corte Britânica de Westminster.
Trata-se então do direito dos cidadãos de serem informados sobre o que os governos estão fazendo em seu nome.
Atirar no mensageiro
Assange tem estado em isolamento quase completo na prisão de alta segurança de Belmarsh, em Londres, desde sua prisão em abril de 2019, depois de ter sido removido à força da embaixada do Equador, quando o presidente dessa nação, Lenin Moreno, terminou ilegalmente seu asilo.
Se o Reino Unido o extraditasse, ele enfrentaria 175 anos de prisão, uma sentença à qual se somariam os 10 anos de perseguição legal e policial que ele já tem. E possivelmente seria condenado em uma instalação reservada para prisioneiros de segurança máxima e submetido aos regimes mais rigorosos, incluindo o confinamento solitário prolongado.
“Julgar Assange por revelar informações verdadeiras sobre conduta oficial grave, seja nos Estados Unidos ou em outro lugar, seria equivalente a ‘atirar no mensageiro’ em vez de corrigir o problema que ele expôs. Isto seria incompatível com os valores fundamentais da justiça, do Estado de direito e da liberdade de imprensa, conforme estabelecido na Constituição dos EUA”, disse recentemente o especialista em tortura da ONU Nils Melzer em uma carta aberta ao Presidente dos EUA, Donald Trump, pedindo-lhe que perdoasse o fundador do WikiLeaks.
“Crimes terríveis foram cometidos no Iraque e no Afeganistão. Crimes terríveis foram cometidos na Baía de Guantanamo. Os perpetradores desses crimes não estão na prisão. Julian sim”, disse a companheira sentimental de Assange, Stella Moris.
O governo dos EUA pede que Assange seja mantido na prisão enquanto prepara seu apelo para a sentença, um processo que ainda não tem limite de tempo. Por sua vez, a justiça britânica negou a liberação de Assange sob fiança, pedido que foi feito por sua defesa argumentando, entre outras razões, as condições terríveis em que Assange está vivendo isolado na prisão de Belmarsh.
Os especialistas acreditam que o processo de extradição poderia acabar no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), portanto, a decisão sobre a extradição do jornalista para os EUA poderia tomar um rumo de alguns anos ainda.
*Texto publicado originalmente na ALAI.
Edição: ALAI
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Foto: Daniel Leal-Olivas /AFP