Manaus enfrenta uma sindemia, pior que uma pandemia

Estudo da Fiocruz e Ufam aponta que, até novembro, menos de 35% dos manauaras tiveram contato com coronavírus; as mais atingidas são pessoas mais velhas e de baixa renda.

Por Eduardo Nunomura, Amazônia Real

Menos de 35% dos manauaras tiveram contato com o novo coronavírus entre outubro e novembro, segundo pesquisa da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e do Instituto Fiocruz-Amazônia. O número é um pouco maior do que os 29,1% estimados pelo projeto DETECTCoV-19, como foi batizado o estudo, entre agosto e setembro. Com base nos dados preliminares, entregues no dia 17 de janeiro ao secretário estadual de saúde do Amazonas, Marcellus Campelo, os coordenadores da pesquisa Jaila Dias Borges Lalwani, da Ufam, e Pritesh Lalwani, da Fiocruz Amazônia, recomendam que o estado do Amazonas enfrente a Covid-19 não como uma pandemia, mas uma sindemia, na qual problemas de saúde se somam e provocam uma situação fora de controle.

O termo “sindemia” veio à tona quando o mundo se aproximava do 1 milhão de mortes e a revista científica Lancet publicou, em 26 de setembro, artigo sob o título “Covid-19 não é pandêmica”. “É uma sindemia. A natureza sindêmica da ameaça que enfrentamos significa que uma abordagem mais sutil é necessária se quisermos proteger a saúde de nossas comunidades”, descreve o artigo.

O projeto DETECTCoV-19 estima a prevalência de anticorpos IgG anti-SARS-CoV-2 na população do Amazonas. Os anticorpos só estarão presentes se a pessoa teve contato com o vírus. Mas ela não mede a taxa de imunidade da população, até porque esta é uma variável que a própria ciência ainda tem dificuldades de calcular. Para um conjunto de voluntários da população, os pesquisadores puderam calcular a distribuição das pessoas que tinham anticorpos durante a realização dos testes (foram coletadas amostras para realizar o método de PCR para diagnóstico). E as descobertas reforçam a necessidade de encarar mais a sério o combate à Covid-19. 

No estudo realizado com 3.046 pessoas de Manaus, o novo coronavírus atinge com maior força pessoas mais velhas, de baixa renda ou que tiveram algum contato com uma vítima fatal. Outros municípios do estado também foram incorporados. Os principais resultados do projeto DETECTCoV-19 até agora foram:

  • O total de casos de pessoas (prevalência) com IgG anti-SARS-Cov-2 passou de 29,1% entre agosto e setembro para 34,22% entre outubro e novembro;
  • Pessoas de 50 a 59 anos têm mais risco de serem infectadas;
  • Os mais pobres tiveram prevalência de 35,5% ante os 24,5% dos mais ricos;
  • Homens apresentaram maior prevalência que as mulheres;
  • Casas com quatro ou mais adultos ou três ou mais crianças têm mais chance de serem infectadas pelo vírus;
  • Nas casas em que houve um óbito de Covid-19, a prevalência encontrada foi de 56%;
  • Nas casas em que houve um infectado, o índice é de 44,9%;
  • Na zona leste de Manaus, o número de infectados chegou a 39,8% ante os 28,3% do centro-sul da capital.

“Os dados acima apontam para o fato de que a Covid-19 em Manaus tem relação com desigualdade social”, resumem os coordenadores. A carta aberta, que a Amazônia Real teve acesso, foi enviada oficialmente para autoridades públicas, incluindo Marcellus Campelo, prefeitura, Ministério da Saúde e presidente Jair Bolsonaro, deixa claro o fracasso do isolamento social praticado na capital do Amazonas e reforça que o governo deveria encontrar meios para frear os casos de transmissão intrafamiliar. Os autores, contudo, ainda não divulgaram publicamente o estudo.

Isso só aconteceria se houvesse o cumprimento do isolamento social e o governo estadual fizesse testagem com acompanhamento dos contaminados. Nenhuma das duas medidas foi posta efetivamente em prática em Manaus ou nos demais municípios do Amazonas. Como isso jamais foi pautado pelo governo de Wilson Lima (PSC), outros fatores históricos têm impulsionado a proliferação do novo coronavírus e permite explicar por que o estado tem sofrido mais que outros, fato visível no colapso do sistema hospitalar das primeira e segunda ondas.

“Recomendamos que a Covid-19 em nossa cidade e Estado seja tratada como uma sindemia, uma vez que o SARS-CoV-2 interage com outros elementos como comorbidades, determinantes sociais e ambientais”, finalizam os pesquisadores. Não é novidade que o novo coronavírus condena os mais desfavorecidos na sociedade, mas o que os números do DETECTCoV-19 deixam claro é que qualquer solução só surgirá se os demais problemas forem enfrentados.

O cientista Lucas Ferrante, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), é um dos pesquisadores que vem alertando para o risco de não se tomar atitudes mais drásticas no combate à doença. Ele explica que saber a taxa de prevalência é importante para orientar a tomada de decisões, se houvesse governantes dispostos a fazer isso. Mas enquanto a vacinação não chega para quem precisa, Manaus e o resto do Brasil terão de criar estratégias que levem em conta como o vírus tem se propagado.

Ferrante chama de “falaciosa” a ideia de imunidade de rebanho, que induziria a pensar que naturalmente o vírus perderia sua força. O estudo da Ufam e da Fiocruz adverte que, possivelmente, estejamos longe dessa taxa de imunização coletiva e ainda assim ela seria temporária. Um dos motivos é que mesmo a taxa de prevalência de IgG na população é flutuante, já que pessoas que tiveram contato natural com a Covid-19 estão voltando a se contaminar entre três e cinco meses depois. “Estimamos que 50% da população de Manaus teve contato com a primeira linhagem do SARS-CoV-2. Num outro estudo nosso, 20% desses 50% já perderam a imunidade”, diz.

(Colaborou Elaíze Farias)

Imagem: A foto acima mostra doentes de Covid-19 em busca de atendimento na Unidade Básica de Saúde Nilton Lins, em Manaus (Foto: Raphael Alves/Amazônia Real)

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