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“Um forte estresse sobre os mecanismos de governança no Brasil fez com que o nosso federalismo institucional, pactuado, democrático e participativo não desse conta de enfrentar uma situação que junta a pandemia e o pandemônio, um autoritarismo exacerbado por um lado e uma situação que exige agilidade para tomadas de decisão de outro”, explica a cientista política Sonia Fleury, pesquisadora do CEE-Fiocruz, ao falar da pesquisa Novo Federalismo no Brasil? Tensões em Tempos de Pandemia de COVID-19, desenvolvida pelo Centro.
Sonia e um grupo de pesquisadores, liderado pelo secretário executivo do CEE, o economista Assis Mafort, concluíram que esse modelo constitucional de federalismo, definido como cláusula pétrea na Constituição Federal de 1988 e caracterizado pela autonomia dos entes federados – União, Estados e Municípios – e pela responsabilidade compartilhada na articulação de políticas públicas em prol da saúde, assistência e combate à pobreza, assim como na defesa da democracia, foi substituído por um padrão de confrontação, que contribuiu para aumentar os riscos sanitários e produzir constantes ameaças à democracia em plena pandemia. O blog do CEE conversou com ambos os pesquisadores sobre os resultados da pesquisa, que estão sendo apresentados no próximo Congresso da Abrasco e que serão, posteriormente, reunidos em livro.
De acordo com a pesquisa, foi criado no Brasil, um vácuo federativo. “O governo federal recuou nas suas prerrogativas e nas suas possibilidades de editar normas, de divulgar informações, de colocar financiamento e estratégias para o combate à pandemia, de realizar apoio técnico aos estados e municípios e, também, de coordenar compras coletivas de insumos e exercer uma das principais funções que lhe são dadas pela Constituição e pelas leis orgânicas de saúde que é fomentar o Complexo Industrial da Saúde”, afirma Mafort. Como consequência da falta de incentivo e coordenação do Complexo Industrial da Saúde e desse vácuo federativo, a sociedade brasileira pode testemunhar uma grande dificuldade do país na aquisição de insumos e equipamentos no mercado internacional.
Para fazer frente aos desafios impostos pela pandemia, a pesquisa mostra, que os governadores assumiram o protagonismo das ações, atuando em quatro frentes de trabalho. A primeira, identificada pelos pesquisadores como normativa, destinou-se a regular a dinâmica social e econômica, orientando os municípios. “Coube aos governadores editar todas as normas relacionadas ao isolamento, flexibilização e orientação aos municípios. Todo regramento criado para orientar a população e municípios foi feito a partir de decretos dos governos estaduais, que editaram normas de funcionamento do comércio, de serviços essenciais, de regulação dos transportes rodoviários e de outras modalidades”, explica o pesquisador.
Outra frente de trabalho dos governadores, apontada pela pesquisa, ocorreu no plano institucional, com a criação de comitês de crise para conduzir as estratégias de combate à pandemia em seus primeiros meses. Esses comitês reuniam representantes de entidades empresariais, ligadas ao comércio, serviços e transporte; da academia; universidade; institutos de pesquisa e, em alguns casos, da mídia.
Mafort destaca ainda a importância da frente regulatória criada pelos estados, “uma tentativa de disciplinar melhor o uso da rede privada hospitalar e de média e alta complexidade”. Por meio de uma regulação de fila única no atendimento, buscou-se ampliar a oferta pública de leitos de UTI. Foram, também, editados decretos para que as secretarias estaduais e, em alguns casos, municipais assumissem a gestão dos serviços, inclusive a gestão de hospitais.
De acordo com os pesquisadores, os governadores buscaram, também, fazer articulação regional para realizar compras coletivas, intercâmbios de conhecimento, coordenar conjuntamente os serviços na fronteira, assim como a divulgação de informações epidemiológicas atualizadas para a mídia e a sociedade civil.
Nesse contexto, Fleury destaca o papel fundamental desempenhado pelo Conass. ”Quando o apagão do MS ocorre, ou seja, desmonta-se o sistema de informação que foi montado durante anos, as informações passam a ser feitas pelo consórcio entre a mídia, os secretários e o Conass”, explica.
O Conselho Nacional de Saúde, representando as posições mais avançadas da sociedade civil, segundo a pesquisadora, também marcou posição, muito embora “as medidas do governo federal tenham sido tomadas de forma completamente arbitrária passando por cima de todos os mecanismos de governança na área de saúde”, lembra.
Por trás dos embates dos governadores com o presidente, a pesquisa identificou uma disputa simbólica “destruindo a ciência e as medidas tomadas pelos governadores”, cujo objetivo foi “minar a autoridade sanitária e criar uma narrativa que estamos vencendo, que isso é uma gripezinha, que é coisa de fracote“, explica Fleury. Mas, segundo a pesquisadora, a disputa não ocorreu apenas no nível simbólico. Ela se materializou. “Nossa presidência tem o poder de demitir ministros, vetar legislações como aquelas que tentaram proteger o pessoal de saúde que ficou incapacitado por causa da Covid, permitir a entrada nas terras indígenas, vetar medidas protecionistas para atenção à saúde indígena, ficar com os recursos no Ministério da Saúde para a pandemia sem gastá-los como o Conselho Nacional de Saúde denunciou, não tomar medidas necessárias para compra de seringas, e gerar tensões em relações internacionais a respeito da aquisição de insumos”, diz Fleury.
Os resultados da pesquisa apontam, também, para limitações das estratégias utilizadas pelos governadores no enfrentamento da pandemia. Uma delas foi a ausência de articulação da Atenção Básica com a Vigilância, de forma a fortalecer o programa de Saúde da Família, enfatizando medidas de isolamento e prevenção, e com isso reduzindo a necessidade de hospitalização.
Mafort cita, ainda, a predominância nos comitês de crise da burocracia e do empresariado. “Um ponto importantíssimo que observamos na análise dos comitês estaduais é que as entidades da sociedade civil em geral não estavam presentes. Isso de certa forma colocou os governadores reféns do empresariado e com pouca articulação com as entidades da sociedade civil, principalmente aquelas que atuam nos municípios, como associação de bairro, e outras entidades que coordenam ações no âmbito local”, explica.
Essa pressão de entidades empresariais, segundo Mafort, extrapolou os limites estaduais, chegando ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso e contando com o apoio do presidente da República e do ministro da Economia. Tal situação, somada “às medidas de postergação de apoio aos estados e municípios, além da má gestão do auxílio emergencial à população levou a uma flexibilização extremamente antecipada, em um momento da pandemia, que os dados mostravam níveis de difusão muito elevada, e levou, também, a uma flexibilização descoordenada, com poucas regras e, onde havia regras, a um descumprimento delas com abertura antecipada do comércio, shoppings etc.”, avalia Mafort.
Embora reconheça a importância do papel dos governadores durante a pandemia, a pesquisa critica a opção de alguns centrada na construção de hospitais de campanha em detrimento à falta de prioridade para a atenção primária. “Muitas unidades de atenção primária à saúde foram fechadas durante a pandemia, porque se tratava das pessoas em um nível estritamente hospitalar”, explica Fleury. Esse deslocamento das pessoas da atenção primária para a atenção hospital, na avaliação da pesquisa, “foi um grande equívoco porque deixou as populações mais vulneráveis, que são as populações das favelas e periferias, sem uma atenção pública de saúde”, continua Fleury.
Para essas populações, ela ressalta que deveria ter sido pensada uma estratégia específica, pois as medidas propostas de trabalhar em casa, lavar a mão e passar álcool gel e não usar transporte público, em sua opinião, não são viáveis para grande parte dos trabalhadores. “Como a gente demonstrou, em um artigo que está publicado na revista Saúde em Debate e na plataforma virtual Dicionário de Favelas Marielle Franco, essas pessoas tiveram que se organizar no nós por nós. E mostraram não só a carência, mas uma potência enorme das favelas em fazer um controle epidemiológico, vigilância, produzir dados, organizar abastecimento, doações e tudo mais”, diz a pesquisadora.
Contudo, mesmo com a capacidade mostrada pelas favelas de se organizar durante a pandemia, ela argumenta que essa situação não pode durar um ano. “É um abandono do poder público que mereceria nessa segunda onda ser totalmente revisto, é preciso atender principalmente essa população e não aqueles que chegam já muito doentes nos hospitais e nas UTIS”.
Fleury reitera que por maior que seja o esforço empreendido pelos governadores em lidar com os efeitos da crise sanitária, o nosso modelo federativo requer uma coordenação que deveria ser exercida pelo governo federal. “Os mecanismos de governança criados para o SUS não foram usados. Isso implicaria em pactuação, negociação, compras coordenadas, ou seja, um papel importante do nível federal”, explica. Os resultados das análises realizadas, continua a pesquisadora, mostraram que, “além da falta de pactuação social com todos os níveis de governo, os governadores tiveram sua autoridade deslegitimada pela presidência da República”.
Diante desse contexto, a pesquisa buscou responder uma questão teórica e jurídica importante: “O federalismo afinal atrapalha a combater a pandemia?”. Fleury diz que há quem pense que, diante de uma situação emergencial, seria muito mais fácil tomar medidas rapidamente quando a autoridade está concentrada num único local, não está dividida nem negociada e muito menos fragmentada. “Por outro lado, você já imaginou o que seria se nós não tivéssemos o federalismo e, como parte mais fundamental desse federalismo, o SUS, a expressão mais avançada do federalismo social e democrático brasileiro?”
De acordo com os resultados das análises realizadas, “o federalismo mostrou capacidade deter um contra poder, um poder que buscasse equilibrar o que estava acontecendo, um sistema de contrapesos capaz de frear medidas danosas para a saúde pública, explica Fleury. Segundo a pesquisadora, não foi só no Brasil que essa situação aconteceu, nos EUA também. “Isso mostrou que a questão federativa não se resolve com autoritarismo nem com a centralização. Ela se resolve aprofundando o nosso modelo federativo”, conclui.
Apesar das dificuldades enfrentadas durante a pandemia, Mafort sublinha que o federalismo conseguiu criar inovações que pode torná-lo mais robusto no médio e no longo prazo. Muitas dessas inovações, de acordo com a pesquisa, foram desenvolvidas no âmbito dos consórcios interestaduais. “O consórcio do Nordeste, por exemplo, criou inovações importantíssimas, que foram referência não só para os estados do Nordeste, mas também para vários outros”.
O pesquisador cita a criação do comitê científico do NE que articulou vários subcomitês, incluindo a participação de universidades e institutos de pesquisa, para estabelecer protocolos clínicos, incentivar discussões de inovação e pesquisa, criando uma espécie de grande rede de conhecimento, formulação e divulgação de informação ao longo da pandemia. Mafort ressalta, ainda, o papel dos consórcios na compra coletiva de medicamentos e equipamentos de proteção, fortalecendo a coordenação conjunta dos estados e dos municípios e aumentando seu poder de compra.
Na análise sobre as várias dimensões do federalismo durante a pandemia, a pesquisa abordou, também, o papel de dois atores fundamentais: o Legislativo e o Supremo Tribunal Federal. De acordo com Fleury, “o Supremo garantiu o direito constitucional que está no art. 23 da Constituição de que a saúde é uma competência concorrente para ser exercida pelos três níveis de governo. O governo federal tentou centralizarem dado momento e tirar dos níveis subnacionais a autonomia para decidir quais eram as funções essenciais. Governadores, prefeitos e partidos políticos que os representam recorreram ao Supremo e este“ garantiu a autonomia dos três níveis (de governo), que devem trabalhar de forma pactuada e não de forma concentrada, executando o que o governo central falou, porque não é esse o modelo que está na Constituição”, explica a pesquisadora.
O fato de o Supremo ter sido chamado com frequência para a resolução de conflitos entre os entes federados no período da pandemia, anulando determinadas medidas, como, por exemplo, a que o MEC determinava a obrigatoriedade do retorno às aulas presenciais pelas escolas e garantindo outras implementadas pelos governadores, indica, na opinião de Fleury, um aumento da judicialização de conflitos entre os entes federados e uma ameaça à democracia. No entanto, em sua avaliação, o STF cumpriu “um papel fundamental na garantia dos direitos, do direito à saúde, na garantia da autonomia e do próprio pacto federativo”.
Mafort concorda, afirmando ainda que o STF, ao exercer seu papel de guardião da Constituição, garantiu o federalismo brasileiro, reforçando seu caráter cooperativo entre os três entes da Federação e garantindo as prerrogativas constitucionais dos estados e municípios para editar normas, simplificar a tramitação legislativa e limitar o poder da União, “exercendo alguma pressão sobre o governo federal em momentos críticos como agora, exigindo a divulgação do Programa Nacional de Vacinação e a supressão de algumas campanhas que o Ministério da Saúde chegou a tentar veicular”.
Em relação ao papel exercido pelo Legislativo, o pesquisador lembra que a iniciativa legislativa de apoio a estados e municípios durante a pandemia se deslocou para o Congresso. “Ao acompanhar a edição de normas do governo federal, observamos uma baixíssima iniciativa de legislação da Presidência da República”. O conjunto de medidas, segundo análise realizada pelos pesquisadores, foi de iniciativa do Legislativo, da Câmara e do Senado. “Todo esse processo, que em geral era editado pela Presidência da República, passou a ser exercido pelo Congresso Nacional”, explica Mafort.
A ampliação do papel do Congresso nessa pandemia, sublinha o pesquisador, se deu não só na edição de normas de apoio a estados e municípios como, também, na reversão ou na suavização do quadro fiscal. “Foi importantíssima a atuação do Congresso na flexibilização de algumas regras de responsabilidade fiscal para os municípios, principalmente para o cumprimento de resultados primários e na aprovação de um conjunto de medidas que ampliam a arrecadação e a transferência fiscais da União para os estados e para os municípios, colocando-os numa posição fiscal um pouco menos rígida e permitindo que eles tivessem um conjunto maior de recursos para conduzir suas estratégias de combate à pandemia”, explica.
Fleury diz que a pesquisa destaca, ainda, o papel desempenhado pelo SUS durante a pandemia. “O SUS mostrou resiliência ao desfinanciamento, à falta de prioridade política e ao avanço da militarização, à tentativa de desmontagem institucional do Ministério, da inteligência e da autoridade sanitária”.
Para finalizar, a pesquisadora ressalta que “a pandemia está sendo um grande revelador da sociedade brasileira e das autoridades brasileiras. Nós vamos ter que refletir muito sobre ela, o mundo inteiro vai ter que refletir, mas o nosso caso não é só dramático, é uma tragédia”.
Mafort acrescenta que o posicionamento “negacionista” do governo federal em relação à gravidade da pandemia contribuiu para agravar ainda mais as desigualdades regionais que caracterizam o federalismo brasileiro. “Na medida em que ele deixou de exercer seu papel de apoio técnico, fiscal aos estados e municípios em regiões onde a rede de saúde é frágil, observamos a tendência e a emergência de crise, como a que aconteceu em Manaus”, explica. Nesse sentido, ele destaca a importância do programa de apoio do Ministério da Saúde à região Norte, exercido continuamente, independente do posicionamento partidário do governo federal nos últimos 20, 30 anos como políticas de estado criadas no âmbito do SUS, e que “uma vez descontinuadas como se observa nesse governo”, diz o pesquisador, “ coloca a população numa situação muito frágil”.
Por fim, Mafort destaca como resultado da pesquisa a percepção de que os profissionais de saúde, embora tenham tido “uma atuação heróica” no enfrentamento da pandemia, “de certa forma, não foram devidamente reconhecidos e legitimados”, devido ao “discurso negacionista, que contribuiu para deslegitimar a atuação desses profissionais, levando em alguns casos à sua própria criminalização”.
- A equipe da pesquisa é composta por Assis Luiz Mafort Ouverney (CEE-Fiocruz e Ensp-Fiocruz); Sonia Maria Fleury (CEE-Fiocruz); André Luís Bonifácio de Carvalho (UFPB e CEE-Fiocruz); Edjavane da Rocha Rodrigues de Andrade (UFPB e CEE-Fiocruz); Fernando Manuel Bessa Fernandes (CEE-Fiocruz e Ensp-Fiocruz); Roberta Fonseca Sampaio (Casa Civil/Governo do Estado da Bahia), Vanessa Cintra (Secretaria de Saúde/Governo do Estado da Paraíba), e Virgínia Maria Dalfior Fava (CEE-Fiocruz).