Políticas identitárias

O governo Bolsonaro tem nos dado a triste lição de que estamos perdendo essa luta ou disputa quando ele coloca as vítimas históricas para desempenharem o papel de nossos algozes. Damares e Camargo respectivamente machistas e racistas são a ponta de um iceberg bem mais complexo e que nos obriga, pelo menos assim percebo, a refinar nossos discursos e ampliar os nossos horizontes em face dos modos de lidar com a opressão

por Érico Andrade, no Le Monde Diplomatique Brasil

“o fascismo que está em todos nós,
que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas,
o fascismo que nos faz gostar do poder,
desejar essa coisa mesma que nos domina e nos explora”.
Foucault

Tentar inferir da condição de vítima a condição de um agente revolucionário parece-me ter sido um dos principais equívocos de Marx quando atribuiu ao proletariado (a classe explorada) uma vocação revolucionária e que parte da esquerda mimetiza agora sobre o formato das lutas identitárias. Essa passagem longe de estar dada tem que ser ainda construída. E não se trata, é o que gostaria de mostrar, de um exercício simplesmente de desalienação nos mesmo moldes de Marx; como se bastasse apenas descortinar o véu da alienação para que a classe trabalhadora tomasse consciência de classe e imprimisse a tão esperada revolução ou que as minorias tomassem consciência da opressão que sofrem e compusessem as condições sociais para a mudança. O destino que se dá à opressão não está definido.

Meu ponto é que o destino que se dá a processos de sujeição, como costuma dizer Butler, é motivo de disputa política. Isto é, estar sob condições opressivas não orienta a ação política necessariamente para um viés emancipatório. Pelo contrário: a política é convocada para que possamos conferir um viés emancipatório a processos de opressão ou sujeição. É preciso disputar, insisto, o legado político dos processos de sujeição.

E o governo Bolsonaro tem nos dado a triste lição de que estamos perdendo essa luta ou disputa quando ele coloca as vítimas históricas para desempenharem o papel de nossos algozes. Damares e Camargo respectivamente machistas e racistas são a ponta de um iceberg bem mais complexo e que nos obrigado, pelo menos assim percebo, a refinar nossos discursos e ampliar os nossos horizontes em face dos modos de lidar com a opressão.

Comecemos por algumas de nossas estratégias de luta que muitas vezes permanecem no registro do maniqueísmo. Início pelo nosso combate ao racismo. Só existe negro porque existe branco: fato. Aliás, foram os brancos que criaram a categoria de negros. Com efeito, a arbitrariedade de nascer branco confere à pessoa privilégios inegáveis, mas não a torna a priori racista, nem muito menos nascer negro garante que a pessoa mesmo sendo explorada por ser negra esteja disposta a romper com as amarras do discurso colonial.

Assim, precisamos levar à radicalidade o conceito de interseccionalidade, trazido pelas feministas negras e latino-americanas, para não tendermos a essencializar o branco como inimigo simplesmente por ser branco (como se todo branco fosse uma espécie de potencial senhor de engenho) e para não obliterar o caráter estrutural do racismo. Essas tendências, nas quais algumas vezes incorremos, não atingem o âmago do problema porque não se trata de exigir que o branco se deserde de sua cor em razão de vivermos numa sociedade que alguém por nascer branco já é privilegiado, mas de exigir das pessoas brancas que a sua empatia pela causa negra seja convertida numa luta contra seus próprios privilégios e, portanto, numa luta antirracista. Nem muito menos devemos tomar os negros e negras quase como bons selvagens e incapazes de agirem de modo autoritário, por serem incontestavelmente vítimas. Se está muito claro quem são as maiores vítimas: mulheres, negros, mulheres negras, indígenas e mulheres indígenas, não está dado quem serão nossos companheiros e companheiras de luta.

No que diz respeito às questões de gênero não é menos contraproducente, me parece, instanciar no homem apenas a condição de algoz, como se esse fosse o único papel que coubesse ao masculino. Novamente, as feministas que sustentam a interseccionalidade nos ensinam que é preciso pautar outras formas de masculinidade em cujo foco esteja também o combate ao privilégio masculino e à cultura do patriarcado. A origem inegavelmente masculina do patriarcado não torna o patriarcado uma estrutura de opressão restrita a um dos gêneros e, por conseguinte, não impede que mulheres possam reproduzir comportamentos machistas.

A opressão violenta à qual as mulheres são submetidas não elimina que elas possam também submeter outras mulheres à opressão, especialmente mulheres negras ou indígenas. Assim, não há problema a priori numa pessoa nascer com o sexo masculino e ter como orientação sexual a heterossexualidade, mas é grave não combater esse privilégio que lhe foi outorgado pela história sangrenta do machismo. Se como diz Angela Davis não basta não ser racista, numa sociedade racista, é necessário ser antirracista; é preciso dizer também que não basta não ser sexista numa sociedade sexista, é precisa ser antissexista.

Ora, a escolha cirúrgica do governo Bolsonaro de representantes de gênero e de raça reacionários não nos deixa mais espaço senão para iniciar um processo de despessoalização da nossa luta. É preciso mais do que nunca atacar a lógica de dominação e não raças ou gêneros específicos. Para combater o fascismo que nos ronda no cotidiano brasileiro é preciso entender que o fascínio que ele exerce não encontra morada apenas nos que foram historicamente responsáveis pelos processos de dominação. Ele pode estar no desejo por aquilo que nos explora: o poder.

*Érico Andrade é filósofo, psicanalista em formação, professor da Universidade Federal de Pernambuco.

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