Pai de Juscelino Sarkis, que vendeu mansão para Flávio Bolsonaro em Brasília, colecionou fazendas e investimentos imobiliários; ele chegou a comprar uma propriedade, em 1976, onde padres tinham sido torturados por militares, em São Félix do Araguaia (MT)
Por Alceu Luís Castilho, em De Olho nos Ruralistas
O empresário mineiro Juscelino Sarkis ganhou o primeiro nome em uma homenagem do pai ao conterrâneo Juscelino Kubitschek. Foi com o aval do ex-presidente que Simão Sarkis Simão erigiu um império imobiliário e agropecuário. A face imobiliária da família tornou-se mais conhecida após o filho vender a mansão onde morava, por R$ 6 milhões, para o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), o filho primogênito de Jair Bolsonaro.
De Olho nos Ruralistas foi atrás da face agropecuária do clã, até agora desconhecida. Ela vai de um flagrante de trabalho escravo em uma das fazendas de Simão, em Minas Gerais, à compra de uma propriedade onde militares agrediam padres e torturavam camponeses durante a ditadura.
Os relatos sobre Dom Pedro Casaldáliga, nomeado bispo de São Félix do Araguaia (MT) em 1971, mostram que ele foi um dos religiosos presos por militares, dois anos depois. Essas histórias, consolidadas em vários estudos acadêmicos e no relatório da Comissão Nacional da Verdade, mostram que os padres — acusados de serem comunistas, por defenderem os camponeses — eram torturados em fazendas da região, especialmente na Agropasa, dona de um latifúndio de 48 mil hectares no município.
Simão Sarkis não era o dono da Agropasa em 1973, quando a repressão atingiu o auge em São Félix e as agressões se sucediam na fazenda. Segundo o livro “Simão Sarkis 80 anos — Vida e Legado“, lançado no fim do ano passado, a Agropasa foi adquirida pelo empresário em 1976, em São Félix do Araguaia e Alto Boa Vista, município formado por posseiros retirados das fazendas da região. Mineiro de Uberlândia, Sarkis tinha 35 anos. Nos anos seguintes ele passou a investir em fazendas em Minas Gerais, onde foi parar na lista suja do trabalho escravo, e em Goiás, no município de Luziânia, no entorno de Brasília.
FAZENDA FUNCIONOU COMO QUARTEL DURANTE A DITADURA
A Suiá era vizinha
do caracol e Agropasa
aonde elas chegaram
não sobrou nenhuma casa
nem roça de posseiro tudo virou fogo e brasa
e além de explorar o peão
são igual a correição,
onde passa elas arrasa.
Os versos de Zé Diluca, em “Peleja das piaba do Araguaia“, mostram como era a situação no Mato Grosso em fazendas como a Agropasa e a Suiá-Missu, contíguas. Esta última foi objeto de desintrusão — expulsão de invasores — durante o governo Dilma Rousseff, e se tornou a Terra Indígena Marãiwatsédé, um território devolvido para os Xavante. E era o maior latifúndio entre aqueles com incentivos fiscais da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) na região do Rio Araguaia, com 696 mil hectares.
Um documento de 1973, da Prelazia de São Félix, traz depoimento do padre Antônio Canuto, em meio à informação de que as abordagens dos militares e da PM costumavam acontecer na fazenda da Agropasa: “Mandaram-me tirar os óculos, e o Tenente Silva mos (sic) arrebatou. E então começaram a me perguntar pelo Pontin, onde estava, como tinha saído de casa, onde estavam os Padres Pedro Mari e Leo. E a cada pergunta davam-me fortes tapas no rosto e na boca”.
A Agropasa tinha 48.165 hectares, uma fatia menor de uma área de 2,1 milhões de hectares com projetos apoiados pela Sudam, autarquia criada em 1966 pelos militares. Ela teve o terceiro maior incentivo, atrás da Codeara, dona de 130 mil hectares, e da própria Suiá-Missu. Outra empresa com incentivos oficiais era a Agropecuária Tamakavy, do empresário Sílvio Santos, ele mesmo, o dono do SBT: “Silvio Santos obteve 70 mil hectares no Araguaia em 1972, durante governo Médici“.
A tese de doutorado de Vera Lúcia Alves Mendes Paganini, defendida em 2018 na Universidade Federal de Goiás (UFG), diz que a Agropasa “serviu de entreposto às Forças Armadas”. “Nos primeiros anos de 1970 foi base militar para uma ação severa na região do médio Araguaia”, relata a pesquisadora. Professores e religiosos ficavam detidos na fazenda, que funcionava como quartel general. Antes, o proprietário já acionava a polícia para torturar posseiros — os mesmos que formaram o povoado de Alto Boa Vista.
O deputado federal mato-grossense Carlos Bezerra (à época no primeiro mandato pelo MDB) tomou o microfone, em 1981, para defender os camponeses: “De um dos incidentes verificados nessa região, senhores, conta-se que vários posseiros ouviram do dono da fazenda, Ailon Vieira Diniz, frases como estas: “O Incra é meu. O Incra foi comprado por mim. O Incra está comigo e o prefeito de São Félix também”.
Os conflitos não acabaram com a compra da fazenda por Simão Sarkis. Uma edição do jornal O Trabalhador Rural, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, contava em 1984 que a luta dos posseiros contra os proprietários da fazenda tinha começado em 1967. Casas e lavouras eram queimadas. Os camponeses, espancados. Em 1980, diz o jornal, os trabalhadores “conseguiam embargar as investidas dos jagunços da Agropasa”.
Quatro anos depois, durante o governo de João Baptista Figueiredo, o Instituto Nacional de Colonização Agrária (Incra) desapropriou 34 mil hectares da gleba. Nessa época o nome de Sarkis não era mencionado como o dono da fazenda. (Em 1968, conforme documento da Sudam, a Agropasa ainda pertencia a empresários paulistas. Mas a propriedade no Mato Grosso foi mudando de mãos.) E sim o de Ailon Vieira Diniz, mineiro de Paracatu (MG), falecido em 2018 em Taguatinga — a mesma cidade, no Distrito Federal, onde Sarkis fundou um hotel e iniciou seu império econômico.
Ex-prefeito de São Félix, Miguel Milhomem contou, em depoimento na biografia de Simão Sarkis, que o empresário vislumbrou no impasse entre posseiros e a Agropasa “a oportunidade de fazer acontecer ali um grande projeto social”. “E assim articulou junto aos órgãos e autoridades competentes a viabilização de forma harmoniosa do assentamento agrário Gleba Bandeirantes”. Essas novas desapropriações aconteceram durante o governo de José Sarney.
Em 1989, último ano de governo, o presidente desapropriou mais duas fazendas de Sarkis em São Félix, que somavam 15.654 hectares. Nos dois anos anteriores, em 1987 e 1988, ele abriu duas empresas — uma de pecuária e um armazém — ligadas à Fazenda Patizal, no mesmo município. Elas foram fechadas há pouco tempo, em 2017 e 2019. Enquanto isso ele comprava terras em diferentes municípios de Minas e Goiás.
Uma delas, a Ilha do Boi, em Três Marias (MG), no Rio São Francisco. Aqui a história do empresário se cruza novamente com a de JK, o amigo que antes apresentara a ele a região do Araguaia: Kubitschek inaugurara a Usina Três Marias em 1961. Entre os planos para as ilhas formadas pelo represamento estava o turismo. Sarkis comprou a ilha, com planos de montar um hotel e um centro de convenções. Diante de conflitos com posseiros, a ideia não foi à frente. Mas construiu muitas casas particulares. E é lá que ele fica hoje, aos 80 anos, vendo filmes e pescando.
CISTERNA TINHA COBRAS E TRABALHADORES BEBIAM ÁGUA COM O GADO
Foi em Paracatu, município mineiro a 200 quilômetros de Brasília, que Simão Sarkis Simão foi flagrado por fiscais do Ministério Público do Trabalho e obrigado a pagar uma indenização de R$ 390 mil, em 2012. Ele mantinha treze trabalhadores em condições degradantes, na Fazenda Santo Aurélio. Ele também teve de pagar R$ 30 mil para cada funcionário. Um ano depois, o pecuarista foi incluído na lista suja do trabalho escravo.
Dois trabalhadores contaram que tomavam água da cisterna “meio com nojo, porque a cisterna não tinha tampa, tinha sapo, rato e cobra”. “Nós banhava numa barragem suja, que o gado bebia água”, contou outra vítima ao Ministério Público do Trabalho. “A barragem era pequena e suja e o gado ficava atravessando ela”.
Segundo a Repórter Brasil, o flagrante ocorreu em 2011: “Um grupo de dez pessoas foi encontrado em situação laboral degradante na criação de gado bovino. O contingente resgatado estava impossibilitado de deixar o serviço, devido à falta de transporte e ao local isolado onde permaneciam, e não tinha acesso a fontes de água potável ou para banho”.
Simão Sarkis também foi multado em R$ 417 mil, em 2015, pela Secretaria do Estado de Meio Ambiente de Minas Gerais por uma infração no município de Estrela do Sul. No ano seguinte, nova notificação, agora de R$ 508 mil, pois ele estava “em lugar incerto e não sabido”. Ele ainda respondia, até dezembro, a processo movido pelo Instituto Estadual de Florestas, por infração cometida em outro município mineiro, Patrocínio.
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Foto principal (Reprodução): Ilha do Boi, refúgio em Minas de Simão Sarkis, pai de Juscelino, que vendeu a mansão para Flávio Bolsonaro em Brasília