Organizações independentes contabilizam 50.468 casos em 163 povos; Xavante, Kokama e Terena são as etnias mais atingidas
Por Martha Raquel, no Brasil de Fato
O Brasil alcançou, na última sexta-feira (12), a marca de 1.001 indígenas mortos em decorrência da covid-19. O dado é do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena, criado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
Sem políticas públicas de enfrentamento ao coronavírus pensadas especialmente para a população indígena, o país registra 50.468 casos de contaminação confirmados e 163 povos atingidos.
Os xavante, kokama e terena são os atingidos, e as capitais Manaus e Boa Vista concentram o maior número de indígenas que morreram pela doença.
Contaminação via Sesai
O primeiro caso confirmado de contaminação por covid-19 entre indígenas brasileiros foi de uma jovem de 20 anos do povo Kokama, no dia 25 de março de 2020, no município amazonense Santo Antônio do Içá.
O contágio foi feito por um médico vindo de São Paulo a serviço da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), que estava infectado com o vírus.
O Amazonas concentra o maior número de mortes registradas até agora entre indígenas.
“Chamamos atenção para o fato da SESAI ser um dos principais vetores de expansão da doença dentro dos territórios indígenas, alcançando a região com maior número de povos isolados do mundo: o Vale do Javari”, destaca texto publicado pelo Comite da APIB.
O Governo Federal não tem se empenhado em registrar os efeitos do coronavírus nesta população, avalia Ana Lucia Pontes, médica sanitarista, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenadora do GT de saúde indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Ela explica que há uma lacuna na base de dados Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI), base de dados do subsistema de atenção à saúde indígena no Brasil, que faz parte do Sistema Único de Saúde (SUS).
A última atualização de dados do SIASI ocorreu em 2010, com o acréscimo das informações do Censo do IBGE daquele ano.
“Esse sistema coleta todos os dados demográficos de saúde e prestação de serviço para as populações indígenas atendidas nos 34 distritos sanitários especiais indígenas. Só que esse sistema de informação, diferente do conjunto de dados do DataSUS, não é público. Já faz pelo menos dois ou três anos que a gente não tem acesso a nenhum desses dados”.
Os indígenas que vivem nas áreas urbanas, fora das aldeias, vivem o apagamento diário da sua identidade, explica a pesquisadora.
Além de não poder falar seu idioma, apresentar suas marcas e costumes e exercer suas tradições, esse grupo é excluído da contabilização oficial das infectados e mortos em decorrência da covid-19.
Os dados oficiais do Governo Federal sobre saúde indígena, que inclui apenas indígenas aldeados, apontam 601 óbitos decorrentes do vírus e 44.571 infecções.
Ana Pontes explica que a preocupação sobre a fragilidade dos dados sobre indígenas no país durante a pandemia fez com que diversas organizações se reunissem para cruzar informações e realizar levantamentos de forma independente, o que eles chamam de Vigilância Participativa.
Registro de cor e raça não eram dados obrigatórios no começo da pandemia
A falta de registro da cor ou raça nos relatórios de contágio e morte por covid-19 no início da pandemia é outra falha na sistematização dos dados da doença entre os indígenas, aponta a pesquisadora da Fiocruz.
“Até 2017 era obrigatório, em todos os sistemas de informação, a identificação de cor ou raça. Na ficha pra realizar o teste de Covid até tinha [o campo para preencher], mas pra notificação de covid, não. Isso foi sendo cobrado ao longo dos meses, e em julho se torna obrigatório mas, efetivamente, teve um período que essa informação não obrigatoriamente era registrada”, explica.
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Dessa forma, os dados coletados pelo governo não representavam a totalidade de casos e mortes de indígenas pela doença e o problema era subnotificado.
“Você tinha claramente um cenário de subnotificação, seja por falta de teste ou por falta de identificação de parte da população indígena. O retrato da Secretaria Especial de Saúde Indígena era apenas uma parcial do impacto da covid em povos indígenas”, completa.
Os dados levantados pelo Comitê revelam não só quantos indígenas foram contaminados pelo vírus ou morreram até o momento, mas também informações sobre povos afetados, sexo e território, com divisão entre cidades e estados.
Covid-19 leva anciãos e impacta comunidades indígenas
Vovó Beraldina, como era conhecida Beraldina José Pedro, mestra da cultura Macuxi em Roraima, faleceu em junho de 2020 vítima da covid-19.
Com 75 anos e moradora da comunidade Maturuca, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no extremo Norte do estado, Vovó Beraldina deixou seis filhos e 15 netos.
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Na ocasião, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) lamentou a morte da anciã. “Possuía conhecimentos milenares do povo indígena. Foi uma das mulheres protagonistas na defesa da homologação da T.I Raposa Serra do Sol. Jamais mediu esforços para lutar pelo seu povo.”
Ananda Machado, coordenadora do Programa de Valorização das Línguas e Culturas Indígenas de Roraima e professora do curso Gestão Territorial Indígena do Instituto Insikiran da Universidade Federal de Roraima (UFRR), explica que perder um ancião é como perder parte da memória da comunidade.
“Nós aqui, por exemplo, temos os livros. Os anciãos são os livros. Eles são a memória de uma comunidade. São os que sabem fazer, os que conhecem profundamente os tempos de plantar, a oração que é necessária para garantir uma boa caça, conhecem as plantas”, explica Machado.
“São pessoas fundamentais no dia a dia indígena. Uma pessoa que se foi, por exemplo, como a vovó Bernaldina, faz muita falta. Ela estava sempre ali cantando, dançando, ensinando as meninas a fazer o artesanato, representando o povo indígena nos eventos culturais. É uma perda irreparável”.
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A coordenadora do programa de valorização das línguas indígenas explica que todos os costumes e tradições ficam ameaçados. “A própria língua, que é um conhecimento repassado de geração a geração, as narrativas orais, as músicas de ninar, de dançar”, exemplifica.
Como alguns povos indígenas do Brasil têm poucos falantes de sua língua originária, a perda de anciãos afeta diretamente a perpetuação de parte de sua identidade.
A comunidade toda fica fragilizada quando a memória viva parte. “Quando essa memória parte, arranca um pedaço daquele povo”, resume Ananda Machada.
As comunidades indígenas têm se protegido da covid-19, também, com as garrafadas, xaropes e remédios feitos de plantas cultivados pela memória da comunidade. Para os que perdem parentes, o Conselho Indígena de Roraima oferece atendimento psicológico.
“O Estado não trabalhou o suficiente para proteger essas populações”
Ananda Machado classifica como desastrosa a atuação dos governos federais e estaduais na proteção dos povos indígenas contra o coronavírus. Ela afirma que o Estado e a própria Saúde não trabalharam o suficiente para proteger as populações indígenas.
“Até hoje não é suficiente. Eles [os indígenas] mesmos tiveram que fazer suas próprias barreiras sanitárias. Eles precisando ficar dizendo não ao garimpo, e ninguém impede os garimpeiros de invadir, então há transmissões em terras indígenas Yanomami, Ye’kwana. É uma tristeza”, lamenta.
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Machado lembra que, mesmo que a Constituição Federal garanta que os indígenas tenham atendimento em suas línguas originárias em departamentos de saúde, essa não é a realidade. Muitos sequer entendem o tratamento que precisam quando se infectam com o vírus.
Um projeto da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) tem feito, desde setembro, o que deveria ser de competência do presidente Jair Bolsonaro e do Governo Federal: produzir e disseminar informações sobre o coronavírus em línguas originárias.
Carentes de informações, o projeto foi bem recebido pelas comunidades locais.
“Já que a base da cultura dos povos indígenas é a comunicação oral, e qualquer material impresso poderia ser vetor do vírus nas aldeias, a ideia foi criar pequenos arquivos de áudio, com quatro a seis minutos nas línguas faladas pelas etnias, para serem distribuídos em mensagens e grupos de WhatsApp”, explica o site do projeto batizado de ÁudioZap Povos da Terra.
Fake news contra a vacina ameaça os povos indígenas
Até agora, os indígenas não receberam nenhum tipo de informação oficial direcionada especialmente para eles sobre as vacinas. Nessa contexto, negacionistas se aproveitam para espalhar fake news sobre os efeitos do imunizante.
“Chega a vacina, mas há um monte de fake news. Um monte de vídeo mostrando imagem de cadáver, dizendo que a vacina vai matar e que estão querendo traficar os órgãos. Enfim, coisas absurdas assim que vão circulando e vão atrapalhando. Quando a vacina chega, a população não recebeu a informação correta, só recebeu fake news e não vacina”, explica a pesquisadora da UFRR.
“A gente sabia desde o início”
Tanto Ana Lucia Pontes quanto Ananda Machado avaliam que a falta de cuidados e de políticas públicas voltadas para as populações indígenas indicavam que haveria muitas mortes decorrentes do vírus.
“É um avanço dramático porque é uma população que a gente sabia, desde o início, ser mais vulnerável. Foram feitos vários alertas pela própria ABRASCO, por várias entidades indígenas, como APIB, pela Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas”, explica Ana Lucia.
A pesquisadora aponta que a busca ativa de novos casos pela SESAI tem sido baixa, assim como a testagem e o desenvolvimento de uma rede de tratamento voltada para a população indígena. A especialista avalia que o enfrentamento da covid-19 no Brasil, como um todo, teve pouca coordenação e pouca priorização.
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“Houve uma tendência de entender que o melhor caminho era a disseminação do vírus, a tal da estratégia de imunidade de rebanho. O que é muito violento, porque pressupõe que muitas pessoas morrerão nesse processo. Ainda assim, essa estratégia não contém epidemia, como a gente está vendo agora”, afirma.
Ainda segundo Ana Lúcia, a ampla disseminação do vírus aumenta, na verdade, o número de variantes. “O que você tem, portanto, são novas ondas, com novas variantes do vírus, com uma carga viral maior, com maior poder de transmissão e uma mortalidade maior”.
A pesquisadora da Fiocruz ressalta ainda que mil óbitos representam não só perda de vidas humanas, mas mortes de indivíduos que lutaram e sobreviveram a outras epidemias, ameaças, invasões e conflitos.
“São também memórias de línguas, rituais e conhecimentos. São bibliotecas vivas. O que a gente viu foi uma ameaça de genocídio. Infelizmente, tivemos o falecimento do último homem do povo Juma, que já foram mais de 16 mil indivíduos. Isso é uma tragédia, uma perda irreparável”, finaliza.
Outro lado
Questionada sobre as denúncias de falta de transparência e de empenho em registrar os dados sobre como o vírus contaminou e matou indígenas, a FUNAI não comentou o assunto. Veja a íntegra da nota abaixo.
“A Fundação Nacional do Índio (Funai) informa que desconhece o conteúdo do levantamento citado e que não comenta dados extraoficiais.
A Funai informa ainda que mantém o compromisso de diálogo permanente com as lideranças indígenas de todo o Brasil.
A fundação esclarece que tem reforçado as ações de prevenção ao contágio da covid-19 entre a população indígena brasileira. O trabalho é realizado em conjunto com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), responsável pela saúde indígena no país, e órgãos locais.
A Funai já entregou quase 600 mil cestas básicas a famílias indígenas durante a pandemia, o que representa cerca de 13 mil toneladas de alimentos distribuídos. A medida garante a segurança alimentar de milhares de indígenas no país, contribuindo para o isolamento social e para evitar o risco de contágio pela covid-19.
Ao todo, a Funai já investiu R$ 45 milhões em ações preventivas, com destaque para o suporte a cerca de 300 barreiras sanitárias, a fim de impedir o ingresso de não indígenas nas aldeias. Ainda no mês de março de 2020, a fundação já havia suspendido as autorizações para ingresso em Terras Indígenas.
No âmbito da proteção da territorial, desde o início da pandemia foram realizadas 306 ações em 221 Terras Indígenas para coibir ilícitos, como extração ilegal de madeira, atividade de garimpo e caça e pesca predatórias, a um custo de R$ 11,8 milhões, realizadas em parceria com outros órgãos, como o Exército e a Polícia Federal. Também foram realizadas 11 expedições de localização e monitoramento de índios isolados.
Por fim, a fundação informa que os indígenas contam ainda com uma Central de Atendimento específica para solicitações relacionadas ao combate à covid-19 para que as demandas cheguem mais rápido aos órgãos competentes”.
Já o Mistério da Saúde negou a falta de diálogo ou transparência e não comentou sobre a não-obrigatoriedade de registro de cor e raça até junho de 2020. Veja a íntegra da nota abaixo.
“O Ministério da Saúde, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), informa que não procedem as informações de que não há diálogo com lideranças indígenas. A transparência e o diálogo têm sido um dos pontos fortes da atual gestão. O controle social, por meio dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (CONDISI), sempre teve sua participação garantida no acompanhamento das ações da SESAI – em todos os níveis -, inclusive com a atuação do Fórum de Presidentes de CONDISI (FPCONDISI), ampliando assim o diálogo permanente com as representações indígenas.
Ressaltamos que os registros obedecem a critérios científicos e ao ordenamento jurídico que rege o funcionamento dos serviços de saúde indígena no Brasil. Os dados epidemiológicos relativos à Covid-19 abrangem todos os indígenas atendidos pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS) que são atualizados diariamente no site da SESAI“.
Edição: Poliana Dallabrida e Douglas Matos
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Crianças da Aldeia Lapetanha do povo Paiter Surui. Foto: Angela Pappiani, Outras Palavras