Então os militares bonzinhos salvaram o Brasil de Bolsonaro? Por Fausto Salvadori

Da Ponte

Já teve aquela sensação incômoda de ver o noticiário e sentir que estão mentindo para você? Que aquilo que estão contando não bate com os fatos que você conhece? Eu tinha essa sensação ao acompanhar boa parte do noticiário sobre segurança pública e foi o que me levou a me juntar a um bando de gente doida e criar a Ponte. Na semana que passou, essa sensação me bateu de novo, e com muita força, ao ver o noticiário sobre a crise deflagrada por Jair Bolsonaro contra parte das Forças Armadas.

Praticamente todo o noticiário foi dominado pela versão de que a cúpula das Forças Armadas havia se revoltado contra Bolsonaro porque o presidente queria usar os militares politicamente, em alguma ação extremista que ninguém soube explicar exatamente o que seria.

Nomes como o do  comandante do Exército, Edson Leal Pujol, e o do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, teriam se levantado contra o presidente, em defesa da Constituição, da democracia e de tudo que há de bom. O mesmo Pujol que havia defendido a fabricação de cloroquina pelo Exército para combater a Covid-19. E o mesmo Azevedo e Silva que havia sobrevoado, ao lado do presidente, uma manifestação que pedia intervenção militar e que, poucos dias antes de cair, havia chamado o golpe de 1964 de “marco para a democracia brasileira”. Sim, eram esses os nomes que estavam sendo celebrados como os “moderados” e “republicanos”, que acreditavam em servir ao Estado, não ao governo, e que haviam defendido o Brasil do extremismo de Bolsonaro. Mesmo que essa visão bastante idealizada dos militares brasileiros não bata com os fatos, foi espalhada alegremente aos quatro ventos pelo noticiário, baseando-se  nas falas dos próprios militares.

Chego a pensar no tamanho do lucro que alguém teria se comprasse os milicos brasileiros pelo que eles valem e os vendessem pelo que esses jornalistas e analistas acham que valem.

Nenhum jornalista que cobrisse um conflito entre Bolsonaro e o Centrão teria a ingenuidade de retratar a treta como um conflito maniqueísta entre extremistas e republicanos, mas quando se trata de militares a coisa muda de figura. Parece que muita gente ainda olha para os fardados como seres diferenciados, como se pairassem acima das meras disputas de poder em que os civis se engalfinham.

Não é uma postura que chega a surpreender, infelizmente. Muita gente errou demais nos últimos anos, ao retratar as Forças Armadas como um grupo que teria se arrependido dos crimes da ditadura e hoje só teria interesse em servir ao Brasil longe do palco da política. Fernando Gabeira, por exemplo, com sua imagem isenta de ex-guerrilheiro, foi um dos que atuou como garoto propaganda das Forças Armadas, as quais, na sua visão, teriam “amadurecido democraticamente”.

A gente aqui da Ponte, que atua mais perto do chão das favelas, do gás lacrimogêneo da repressão estatal e do piso frio das delegacias do que do ar-condicionado dos gabinetes, sempre viu motivos para desconfiar dessa visão idealizada dos fardados. Sabemos bem dos crimes que as polícias militares, forças auxiliares e reservas do Exército, cometem todos os dias. Arrependimento em relação à ditadura? Bom, os PMs de São Paulo homenageiam o golpe de 64 todos os dias em seu brasão. Também já denunciamos que o Exército, entre 2015 e 2016, usou pelo menos um de seus homens para se infiltrar em movimentos sociais e provocar a prisão forjada de 21 jovens com base em acusações falsas — uma ação que teve o apoio do então ministro do Exército, Eduardo Villas Boas, em “absoluta interação” com o governador Geraldo Alckmin.

Contrariando o que tantos já disseram, vai ficando cada vez mais claro que a politização das Forças Armadas é um processo sólido, que vem de anos, e que os militares já planejavam voltar ao poder antes de Bolsonaro se lançar candidato à Presidência, pois têm um projeto próprio de nação. Quem admite isso é o próprio Villas-Boas. No livro de entrevistas que concedeu a Celso Castro, o general conta que se sentiu incomodado pelo fato de o Exército não ter sido consultado a respeito da demarcação da Raposa Serra do Sol, em 2009, e que, depois disso, passou a desenvolver uma estratégia para que os militares passassem a se manifestar publicamente com mais frequência. O auge dessa estratégia foi o tweet, em 2018, com que o general ameaçou o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento sobre a prisão do ex-presidente Lula.

“Os militares não estavam desde 1988 para cá só comendo lanche dentro do quartel. Estavam planejando muita coisa”, contou, em uma live da Ponte, o policial civil Orlando Zaccone, que atualmente escreve um pós-doutorado sobre o papel do Exército na democracia. A partir de uma análise das publicações da Revista da Escola Superior de Guerra, Zaccone afirma que os militares vinham desenvolvendo ao longo de anos uma ampla visão de atuação em diversos setores da vida nacional, inclusive na educação, em que pensavam a criação de escolas cívico-militares como uma forma de mobilizar a juventude para os ideais fardados.

Na visão de Zaccone, o plano de poder das Forças Armadas começou antes e vai além de Bolsonaro. “Não acredito que eles vieram com a força que estão no governo Bolsonaro para ficar quatro anos. Acho que vão querer continuar no tabuleiro”, afirma. Na mesma entrevista, Zaccone também apontou que o Brasil precisa enquadrar os seus militares se quiser se tornar uma democracia: “A tradição do uso das Forças Armadas contra o próprio é algo que está no nosso DNA. É preciso observar que, se a gente quiser fazer uma ruptura com essa história, vamos ter que fazer um enfrentamento pelo controle civil dos militares”.
 O Brasil nunca conseguiu estabelecer um controle civil sobre seus militares e, depois da semana que passou, ficou ainda mais longe disso. Com sua cobertura de quem acredita em contos de fardas, muitos jornalistas nesta semana ajudaram a disseminar a visão das Forças Armadas como um poder moderador, institucional e republicano, repetindo a mesma imagem ingênua que por tanto tempo espalharam a respeito da Lava-Jato.

Com tudo isso, os militares acabaram de ganhar um enorme capital político, ao conseguirem emplacar uma narrativa em que conseguiram desvincular sua imagem dos absurdos autoritários do governo Bolsonaro. E sem abrir mão dos ministérios e das centenas de cargos que conquistaram na máquina federal.

Tudo o que a democracia brasileira não precisava é que as pessoas acreditassem nas Forças Armadas como um poder moderador. A gente sabe como isso termina.

Fausto Salvadori é diretor de redação da Ponte Jornalismo

Frases como “o seu voto cheira a sangue” e “não acredite em contos de fardas” foram escritas pela artista Ana Letícia Penedo como forma de marcar uma semana do massacre na comunidade de Paraisópolis. Foto: Cleston Teixeira

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