Governo de PE viola lei para agradar à Jeep e construir estrada na maior reserva de Mata Atlântica da região

Por Kleber Nunes, no Marco Zero Conteúdo

Enquanto o governador Paulo Câmara (PSB) se esforça para vender a imagem de gestor preocupado com o desenvolvimento sustentável, assinando uma carta de intenções direcionada ao presidente dos EUA, Joe Biden, para a Cúpula dos Líderes Climáticos, sua gestão trabalha para desmatar e construir uma estrada na maior reserva de Mata Atlântica ao norte do Rio São Francisco: a Área de Proteção Ambiental (APA) Aldeia-Beberibe.

Com 31.634 hectares, o equivalente a 29.290 campos de futebol, a APA Aldeia-Beberibe abriga centenas de tipos de plantas, animais e outros seres vivos, inclusive espécies que não existem em outros locais e estão ameaçadas de extinção. Escondidos sob o solo dessa região, que abrange oito municípios, também estão os mananciais responsáveis por quase 60% do abastecimento de água da Região Metropolitana do Recife.

Toda essa riqueza protegida por lei (Decreto Estadual nº 34.692/10) corre o risco de sofrer um dano irreversível com a retomada do projeto do Arco Metropolitano do Recife, numa clara violação ao plano de manejo da APA. Aprovado desde 2012, após intensa participação social e apoio de uma empresa de consultoria, o documento técnico estabelece as normas que devem presidir o uso da área e a gestão dos recursos naturais.

Por meio de nota, a CPRH alegou que o plano de manejo prevê a construção do Arco Metropolitano. No entanto, segundo especialistas ouvidos pela Marco Zero Conteúdo, a via estava no horizonte quando o documento foi construído, mas depois de pronto ele não preconiza ou autoriza a execução de tamanha obra, pois não há traçado nem avaliação de impacto.

O texto inclusive classifica como “ameaça” aos objetivos de preservação ambiental da APA “a implantação de novos empreendimentos viários”, sobretudo, de “obras estruturadoras como o Arco Metropolitano”. O governo de Pernambuco, no entanto, tem sinalizado que prefere ignorar o plano de manejo para rasgar a rodovia de mais de 70 quilômetros de extensão ao custo mínimo de R$ 1 bilhão.

“Essa área funciona como uma ‘caixa d’água’ para a região metropolitana. Para além disso, a Floresta Atlântica nordestina é categorizada como uma das áreas mais prioritárias do mundo para ação de conservação. Portanto, o impacto de uma obra dessa é imensurável, não só para a fauna ou flora, mas para o bem-estar das pessoas, pois é uma área que presta serviço também de regulação climática”, explica o professor doutor e diretor presidente do Centro de Pesquisas Ambientais do Nordeste (Cepan), Severino Ribeiro.

Histórico de conflitos

O Arco Metropolitano do Recife é um projeto pensado, desde a metade dos anos 2000, como alternativa à saturada BR-101 para ligar a zona da mata norte ao litoral sul. Em 2011, o então governador Eduardo Campos, morto em 2014, anunciou a instalação do polo automotivo da Fiat no município de Goiana, tirando-o do Complexo Industrial de Suape e oferecendo como uma das contrapartidas para a mudança a construção do anel viário.

O projeto já teve o traçado considerado inviável pela Agência Estadual do Meio Ambiente (CPRH) por dividir a APA Aldeia-Beberibe em duas partes. Em 2014, a obra foi incluída no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Dilma, ficando a cargo do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Contudo, organizações da sociedade civil, entre elas o Fórum Socioambiental de Aldeia, denunciaram a inexistência de um Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) o que tornaria o empreendimento ilícito. Com isso, o edital fracassou.

“Anos depois, o governo de Pernambuco reabre a licitação do lote 1 do Arco Metropolitano, que vai da BR-101 em Igarassu até a BR-408 em São Lourenço da Mata, colocando como sugestão o traçado já condenado pela CPRH. Nós já apresentamos uma terceira opção contornando a APA, mas o estado insiste na pior alternativa sem fazer nenhuma exigência ambiental e depois quer se justificar dizendo que a proposta é meramente ilustrativa”, afirma o engenheiro e presidente do Fórum Socioambiental de Aldeia, Hebert Tejo. O Fórum lançou uma campanha de coleta de assinaturas para que o traçado do Arco seja revisto.

Ao desrespeitar o plano de manejo da APA Aldeia-Beberibe, a gestão Paulo Câmara incorre no risco de descumprir a lei federal 11.428/06, chamada de Lei da Mata Atlântica. A norma veda a supressão ou o corte da vegetação quando o bioma abrigar espécies da flora e da fauna silvestres ameaçadas de extinção, exercer a função de proteção de mananciais e proteger o entorno das unidades de conservação.

“Os novos empreendimentos que impliquem o corte ou a supressão de vegetação do Bioma Mata Atlântica deverão ser implantados preferencialmente em áreas já substancialmente alteradas ou degradadas”, determina o artigo 12 da lei federal.

“Ninguém é contra o Arco Metropolitano. O governador de Pernambuco e o ex-prefeito do Recife [Geraldo Júlio] são vistos como pessoas sensíveis às causas ambientes. Recife é categorizada como uma smart city e, no ano retrasado, sediou um encontro mundial sobre mudanças climáticas, ou seja, o projeto está contra o próprio discurso que eles estão fazendo. Escutar outras rotas alternativas para mitigar os impactos é imprescindível”, diz Severino Ribeiro.

Novo edital, velho problema

O edital ao qual Tejo e Ribeiro se referem foi aberto no fim de 2020 pela Agência de Desenvolvimento de Pernambuco (AD Diper). Ele prevê a “Contratação de empresa especializada para a elaboração de projeto básico de engenharia”, que inclui o plano de desenvolvimento territorial, estudo de pré-viabilidade técnica e econômica e estudos ambientais. Entre as regras do certame, a gestão Paulo Câmara recupera a planta condenada há sete anos e a oferece como “traçado proposto”.

Três consórcios seguiram a recomendação do estado e apresentaram os projetos básicos de engenharia que estão sob análise do governo. A alternativa do Fórum Socioambiental de Aldeia até é citada no contexto de algumas propostas, mas como uma opção mais onerosa e inviável por “provocar um afastamento excessivo” da BR-101. Pela ideia, a rodovia contornaria a APA Aldeia-Beberibe, ampliando sua extensão em cerca de 20 quilômetros. Em 2013, a equipe técnica da CPRH calculava um incremento de R$ 300 milhões na obra.

Em nota publicada nas redes sociais, a Secretaria de Infraestrutura e Recursos Hídricos de Pernambuco (Seinfra) alega que não há nenhum interesse em utilizar o traçado apresentado no projeto de 2014 e que foi apenas para fins de cumprimento de uma exigência técnica. “O certame é uma etapa voltada para analisar as alternativas mais viáveis e que congreguem as necessidades técnicas, ambientais, econômicas, bem como os anseios da sociedade. A pasta assegura que todas as normas e condicionantes ambientais estão sendo cuidadosamente observadas”, diz o texto.

A professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e doutora em ciências florestais Isabelle Meunier questiona “por que existiriam traçados provisórios, se se mostram inadequados?”. “O traçado ladeia um dos poucos fragmentos florestais de Mata Atlântica mais conservados da APA, que representa parte de sua Zona de Vida Silvestre, destinada à proteção integral. Além disso, o traçado da obra viária passaria justamente na Zona de Proteção da Biodiversidade de Serviços Ambientais, de especial interesse hídrico e florestal, onde a prioridade deve ser a restauração ambiental”, completa.

Principal beneficiado com a rodovia, o polo automotivo Jeep comemorou “os movimentos em direção à concretização do projeto do Arco Metropolitano”, que ele aguarda há pelo menos cinco anos. A Stellantis, empresa global que diz ter a sustentabilidade como um de seus valores e é responsável pela Jeep, em nota, argumenta que a via “contribuirá para o aumento da eficiência logística” para todas as empresas da região, o que inclui as do polo farmacoquímico e vidreiro.

A Jeep expõe em seus canais oficiais projetos que vão desde a missão de reflorestar uma parte da Mata Atlântica, na região da fábrica, até produzir carros apenas com água de reuso. A Stellantis foi questionada se não havia uma contradição em defender a proposta do Arco Metropolitano como ela está hoje com os valores institucionais, mas a assessoria de imprensa não quis responder a esta pergunta específica.

“Mobilidade de pessoas e cargas é importante, mas não teremos o que transportar se não tivermos água e estivermos expostos a extremos climáticos que comprometam a qualidade de vida, a segurança alimentar e a produção econômica”, alerta Isabelle Meunier.

Crédito: CPRH

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

15 − dois =