Pedro Calvi/CLP
O Projeto de Lei n º 6.764 de 2002, apresentado pelo Poder Executivo, elaborado por comissão presidida por Miguel Reale Júnior, na época Ministro da Justiça, define os crimes contra o Estado Democrático de Direito e revoga a Lei de Segurança Nacional. Este ano, a relatoria do projeto foi entregue à deputada Margarete Coelho (PP/PI). A votação do projeto, com urgência aprovada esta semana na Câmara dos Deputados, está prevista para o dia 4 de maio.
Nesta sexta-feira (23/4), uma audiência pública virtual da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados (CLP) reuniu a sociedade civil e especialistas para debater o PL 6.764/2002 e os demais que tramitam em conjunto. A proposta para o encontro foi da deputada Talíria Petrone (PSOL/RJ). A CLP é presidida pelo deputado Waldenor Pereira (PT/BA).
A Lei de Segurança Nacional (LSN) foi criada em dezembro de 1983, ainda durante a ditadura militar (1964-1985). A LSN define crimes contra a segurança nacional e a ordem pública, além de prever a forma processual, de julgamento e as punições.
“A LSN tem sido ainda mais usada recentemente para criminalizar os movimentos sociais e a liberdade de expressão. Um entulho da ditadura que deve ser revogado, porque se guia na lógica do inimigo interno e fere os princípios fundamentais da Constituição de 88. Precisamos fazer essa prévia consulta à sociedade civil porque a substituição da lei poderá afetar vários direitos. A democracia brasileira é frágil e queremos aperfeiçoá-la”, pontua Talíria Petroni.
Margarete Coelho (PP/PI), relatora do projeto que deve ir à plenário no próximo dia 4, afirma que “a intenção do projeto de lei é revogar mesmo a Lei de Segurança Nacional, uma legislação extremamente antidemocrática que vê os cidadãos como inimigos da pátria, e que não dialoga com a Constituição”.
A parlamentar continua destacando que “a relatoria tem trabalhado com a maior abertura possível. Todas as sugestões recebidas são no sentido de não deixar nenhum vazio legislativo na matéria. Essa é a vigésima reunião que fizemos e o texto da relatoria está publicizado, todos podem ler e opinar”.
“Erosão da democracia”
Cláudia Ávila, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), alerta que “vimos com grande preocupação essa votação em regime de urgência. Nesse momento de tanta violação de direitos, de ataques à imprensa que se valem do uso da Lei de Segurança Nacional, estarmos na iminência de ser substituída por outra lei baseada na criminalização com dispositivos penais. A lei precisa ser revogada, mas agora com quase 400 mil mortos por causa da pandemia, a única urgência é o combate à fome, à doença e à falta de trabalho”.
Everaldo Patriota, da Ordem dos Advogados do Brasil, contextualiza que “hoje, tramitam no STF quatro ações sobre a LSN. Três pedem a revogação total da lei e uma, parcial. O Brasil vive um processo de erosão da democracia, ameaças a governadores, ameaças de golpe, ataques ao Congresso e ao Supremo. Corremos o risco de revogar uma lei e, mais uma vez, criar outra lei que não contemple os direitos humanos de forma ampla. O Congresso deve observar os paradigmas internacionais de direitos humanos”.
Para Maurício Dieter, professor do Departamento de Direito Penal e Criminologia da USP, o projeto de lei tem problemas que afetam o estado democrático de direito, além de falhas. “Seria mais prudente formar uma comissão e discutir com mais segurança essa mudança. Destaco a liberdade de imprensa, é preciso esclarecer que a imprensa tem o direito e o dever de ter acesso a documentos secretos e ultrassecretos. Outro ponto é criminalizar uma tentativa de crime, isso é errado. Se essa lei passar do jeito que está, vai ser contestada no STF. Está errada. O substitutivo tem muitas falhas”.
“Em 2019, tivemos 77 inquéritos policiais baseados na LSN, a maioria por causa de críticas ao presidente Jair Bolsonaro. É urgente a revogação, mas não pode ser uma decisão precipitada, à toque de caixa. Nós temos uma lei que define crimes contra o estado democrático de direito, mas corremos o risco de aprovar uma lei contra crimes ao mercado financeiro que vai refletir nas classes mais pobres e favorecer o grande capital estrangeiro”, explica o jurista Juarez Cirino.
Rafael Borges, presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ e diretor do Instituto Carioca de Criminologia, alerta que “em tempos de debates maniqueístas, do bem contra o mal, o uso político da LSN é histórico, seguramente desde os anos 70. Não adianta discutir as bases da lei. Senti falta de um dispositivo geral que exija que o crime só possa ser praticado se existe ali o objetivo de destruir o estado democrático de direito, como uma norma geral”.
Para a representante da Coalizão de Direitos na Rede, Bruna Martins, o uso desenfreado da LSN nos últimos dois anos “afeta a liberdade de expressão e questões tecnológicas não podem ser usadas de forma penal e, assim, criminalizar a atividade jornalística e de movimentos sociais, por exemplo. Precisamos de um sistema robusto de proteção de usuários da internet. O texto que deve substituir a LSN deveria ser discutido por mais tempo”.
Marcelo Semer, desembargador do TJSP, lembra que “a primeira tentativa de revogar a LSN foi em1986, logo após a reabertura democrática. Instrumentos autoritários sempre podem ser usados a qualquer momento por correntes políticas. Não deve ser criada uma nova lei, mas simplesmente revogar a que existe. Minha preocupação é com a rapidez para a aprovação dessa lei, de afogadilho”.
Gabriel Sampaio, do Pacto pela Democracia, também pondera sobre a necessidade de mais tempo para discussão do substitutivo. “Pensamos que esse processo legislativo deve ser maturado com mais tempo. Estamos lidando com uma questão de alta complexidade, também pela nossa realidade, pela história do autoritarismo e pelo momento peculiar do nosso estado democrático de direito. É muito importante também lembrar que a história da aplicação da Lei Penal é marcada pelo arbítrio e isso deve ser levado em consideração”.
Para Margareth Ferreira, do Movimento Negro Unificado (RJ), “essa lei representa de maneira inegável quem quer destruir os direitos conquistados. Quer seja nessa lei que se avizinha ou outras, tudo faz parte de um projeto de penalização, de fortalecimento do racismo estrutural. Não aceitamos essa urgência já legitimada pelo Congresso”.
“Estamos preparando algo que é consensual, que é a revogação da LSN, mas também analisando o que pode ser uma imensa armadilha para a nossa democracia. Entre a revogação e uma lei autônoma, há uma distância oceânica e essa urgência para votar o projeto de lei e uma nova lei não se justifica”, afirma Carol Proner, advogada do Coletivo Prerrogativas.
Democracia representativa
A 1ª vice-presidenta da CLP, deputada Luiza Erundina (PSOL/SP), lembra que “um dos focos da nossa resistência, no tempo de combate contra a ditadura, era o entulho autoritário que hoje é usado pelo atual governo. Não podemos aceitar que a LSN seja revogada e substituída por outra com teor semelhante e ainda mais numa pressa inoportuna”.
“A CLP é uma comissão diferente, criada com o objetivo de fortalecer a democracia representativa, uma porta, uma janela para acolher sugestões e demandas da sociedade organizada, dos movimentos sociais. Hoje, discutimos um entulho urdido ainda no Estado Novo, que persistiu pelas Constituições. Uma lei criada com o claro objetivo de perseguir opositores dos regimes vigentes”, conclui o presidente da Comissão de Legislação Participativa, deputado Waldenor Pereira (PT/BA).
O arquivo em áudio e vídeo da audiência pública, na íntegra, está disponível no site da Câmara dos Deputados.
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Foto: Alice Vergueiro /Futura Press