Justiça Federal passa por cima da consulta prévia e autoriza exploração de madeira na Resex Tapajós Arapiuns

Decisão abre discussão sobre entendimento equivocado do judiciário do que representa o processo de consulta prévia, livre e informada

Por Terra de Direitos

Uma decisão da Justiça Federal publicada neste dia 26 de abril revogou a liminar concedida em novembro do ano passado que suspendia a realização de uma reunião do Conselho Deliberativo (Condel) da Reserva Extrativista Tapajós Arapiuns prevista para acontecer sem consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e extrativistas da Resex. Agora, a decisão do juiz Felipe Gontijo Lopes – o mesmo que concedeu a liminar – permite a continuidade das reuniões e dos procedimentos referentes aos Planos de Manejo dentro da unidade de conservação localizada entre os municípios de Santarém e Aveiros (PA), mesmo que a consulta não tenha sido efetivamente realizada.

A decisão faz parte de uma Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR) e pelo Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA), com assessoria jurídica da Terra de Direitos. As entidades já recorreram ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1-) para que a decisão seja suspensa.

Na ACP, o STTR e CITA pediram a suspensão dos procedimentos de aprovação dos planos de manejo florestal dentro da Resex Tapajós Arapiuns, até que fosse realizada a consulta prévia, livre e informada das 78 comunidades tradicionais e aldeias que vivem na Reserva. Desde 2019, a Cooperativa Mista Agroextrativista do Rio Inambú (Cooprunã) realiza o manejo em uma área de 29 mil hectares – o equivalente a mais de 29 mil campos de futebol. Agora, o Conselho Deliberativo da Resex quer discutir a possibilidade de manejo em outra área pela Cooperativa Mista Agroextrativista do Rio Maró (Coopermaró). A ACP também reivindicou a suspensão de uma reunião do Condel que trataria dessa proposta. A atividade estava agendada para os dias 22 e 23 de novembro de 2020, e implicaria a aglomeração de pessoas em meio à pandemia de covid-19, sem que houvesse qualquer tipo de consulta prévia à indígenas e povos tradicionais da área.

No recurso apresentado, as entidades avaliaram que, na decisão, “optou-se por uma interpretação restritiva de direitos, em contraposição a Convenção nº 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho]”.

Participação no Condel x direito à consulta prévia

Na decisão publicada nesta semana o juiz reconhece a existência do direito à consulta prévia, mas considera que, pelo fato de representantes de comunidades indígenas e tradicionais integrarem o Condel e de que outras reuniões foram realizadas anteriormente, os comunitários tiveram ampla participação no processo, o que levaria a interpretação de que teriam sido consultados. O magistrado também menciona o fato de não haverem protocolos de consulta dentro da Resex, com exceção do protocolo do Povo Tupinambá, e alega que, sem referências legais de como a consulta prévia deve ser feita, ficaria a cargo do magistrado decidir se os interesses de indígenas e povos e comunidades tradicionais foram levadas em consideração no processo.

No recurso apresentado ao TRF-1, CITA e STTR lembram que a participação de entidades indígenas e de representantes de comunidades tradicionais não exclui a necessidade de consulta prévia, livre e informada.

“A consulta prévia e informada não será livre se for restrita ao quórum de deliberações de um Conselho presidido pelo Estado (ICMBio) em processos de tomada de decisão compartilhados com outros sujeitos que não são sujeitos da Convenção nº 169 e com o próprio Estado”, destacam no documento.

Além disso, destacaram o fato de que órgãos ambientais e organizações externas à Resex integrarem o Condel. “As comunidades e aldeias apenas apresentam votos que numa tomada de decisão poderão ser vencidos dados os outros votos, diga-se, de ONGs, Secretarias Municipais e outras entidades”.

O Conselho Deliberativo da Resex conta com a participação de 95 entidades – 62 delas são entidades comunitárias da Reserva. A presidência do Conselho, no entanto, fica à cargo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). 

Entendimento semelhante foi apresentado em um parecer jurídico promovido pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil. A peça destaca o caráter culturalmente apropriado do processo de consulta prévia, que faz com que os próprios grupos decidam como serão representados.

“A Convenção nº. 169/OIT esclarece que ela deve ser levada a cabo ‘mediante procedimentos apropriados’ e ‘segundo as instituições representativas do povo indígena ou tribal’”, aponta o documento

Segundo o CITA, é preciso que haja outros espaços de discussão próprios entre indígenas e povos tradicionais, para além das reuniões do Conselho Deliberativo ou mesmo do Conselho Comunitário. Uma das preocupações sobre as discussões que ocorrem nesses espaços ocupados por pessoas de fora da comunidade é em relação ao entendimento das informações passadas.  “As pessoas das comunidades não entendem o linguajar, não entendem siglas. Essas coisas devem ser claras para que o povo entenda o que está sendo discutido, o que estão assinando”, pontua o CITA.

Além disso, apesar de o juiz considerar na decisão a não existência de protocolos de consulta na Resex, a ACP movida por CITA e STTR adiantou que um processo de construção de protocolos de consulta já havia sido iniciado em 2019.  Os protocolos seriam finalizados em 2020, após aprovação dos documentos em uma assembleia com os comunitários, mas o processo foi suspenso pela pandemia de coronavírus.

Manejo florestal x exploração ilegal

Com mais de 677 mil hectares, a Reserva Extrativista Tapajós Arapiuns foi criada em 1998 pela luta e organização das comunidades da região, que viram na criação da Resex uma forma de para defender o território do interesse das empresas madeireiras que exploravam a região. 

Agora, as comunidades temem que a exploração de madeira se dê através de “nova roupagem”, como por meio do manejo florestal. “A Resex foi criada para uso de forma sustentável, não predatória. Precisamos avaliar se essa proposta vai beneficiar todas as pessoas, não apenas algumas”, aponta uma liderança do STTR.

Sem processo de consulta prévia em um formato e linguagem adequada aos povos indígenas e tradicionais, há dificuldades de mensurar os impactos que a aprovação desses planos de manejo pode trazer a esses grupos na região.

Além disso, as entidades temem que a flexibilização da legislação ambiental e a falta de fiscalização abram brechas para exploração desenfreada da madeira.

O receio é ainda maior com a apreensão de 44 mil toras de madeira ilegal, apreendidas dentro da Operação Handroanthus, da Polícia Federal, no fim do ano passado. A operação aconteceu entre os rios Inambu e Maró, que dão nome às cooperativas responsáveis pelos planos de manejo da Resex Tapajós-Arapiuns.

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