Casos no Ceará, Tocantins e Goiás mostram desafios das comunidades tradicionais para garantir o direito à vacinação
Nara Lacerda, Brasil de Fato
Apesar de estarem incluídos nos grupos prioritários de imunização contra a covid-19 desde dezembro do ano passado, quilombolas de todo o país ainda encontram dificuldades em acessar a vacina. Os problemas vão desde a falta de estrutura para atendimento e armazenamento das doses até à pouca vontade política dos gestores locais.
Um dos casos recentes mais emblemáticos ocorreu na comunidade do Cumbe, no município de Aracati (CE). A prefeitura local se recusava a reconhecer o grupo como quilombola. Foi preciso recorrer à justiça para conseguir as doses.
Em abril, o prefeito Bismarck Maia (PTB) chegou a afirmar, durante uma transmissão online, que o quilombo não existia: “Essa história de quilombola no Cumbe não tem”. No entanto, a comunidade está certificada pela Fundação Palmares desde 2014.
Educador popular da região, João Luís Joventino do Nascimento, o João do Cumbe, conta que mesmo no judiciário, a batalha foi árdua. “O juiz federal aqui do Ceará disse que o Cumbe não poderia ser vacinado porque nós não éramos reconhecidos pelo Incra.”
O magistrado justificou a decisão afirmando que a comunidade não tinha o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território Quilombola.
“Um absurdo, um total desconhecimento. A atribuição do Incra é na regularização fundiária, não na questão de identidade. O estado não pode retirar a identidade”, alerta João.
Foi somente após comunidade recorrer ao Tribunal Regional Federal (TRF), que a decisão foi revertida. O prefeito ainda tentou dificultar o processo com exigência de que a comunidade se deslocasse para receber as doses. Por meio da Defensoria Pública, o quilombo conseguiu garantir imunização no local.
“Foi um processo muito cansativo, desgastante e humilhante. Essa situação só vem para reforçar o racismo estrutural, institucional e ambiental que existe contra nós quilombolas. É muito triste saber que um gestor público desconhece seus munícipes”, desabafa João do Cumbe.
Sem geladeira
Em Tocantins, no quilombo Kalunga do Mimoso, a busca por vacinas foi organizada após o registro de infectados que se deslocaram para o município de Monte Alegre. Para evitar as viagens, a comunidade entendeu que as doses precisariam ser aplicadas no próprio território.
Não houve negativa da prefeitura, mas a Secretária de Saúde não tinha o equipamento para armazenamento das vacinas na temperatura correta que pudesse ser destinado ao local.
“Quando a vacina chegou, o secretário de Saúde nos explicou que precisava de uma geladeira própria para a vacina. A gente não tinha a geladeira, a que a gente tinha na comunidade é a que usamos para os nossos alimentos”, conta Eudemir de Melo da Silva, diretor secretário do quilombo.
Sem alternativa, moradoras e moradores se uniram para conseguir adquirir o equipamento, “Quando a gente fez o pedido da vacina, a gente achou que eles teriam uma forma de armazenar, mas não disponibilizaram”.
Com a mobilização da comunidade, a geladeira comprada foi instalada na sede da associação do quilombo. A prefeitura mandou uma equipe de saúde para o local e a população recebeu as primeiras doses. A segunda está marcada para o fim deste mês.
Nas zonas urbanas
Se quilombolas que vivem em territórios reconhecidos sofrem os impactos da falta de acesso à vacina, quem está nos ambientes urbanos tem enfrentado ainda mais dificuldades. O problema é sentido por pessoas do quilombo Vão das Almas (GO), por exemplo.
Um dos moradores, que prefere não se identificar, explica que a regra inicial foi imunizar apenas quem ainda reside no território, “Com isso, pessoas que moram fora não teriam direito, e muitas pessoas não conseguiram”, conta ele.
Em uma remessa de vacinas para a cidade de Cavalcante, parte das pessoas com origem no Quilombo conseguiu garantir o direito, mas as demais cidades da região não avançaram nesse sentido.
Gestão falha
Silvana Bastos*, assessora técnica do Instituto Sociedade População e Natureza explica que a política nacional esbarra em questões locais. Para solucionar o problema, é essencial uma coordenação única e fiscalização por parte do governo federal.
“É uma política nacional, tem a determinação do Supremo Tribunal Federal para o Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia para Comunidades Quilombolas, mas isso, quando chega nos municípios, reverbera de formas muito diferentes”, explica a especialista.
Ela lembra que o principal entrave está ainda na base do processo de reconhecimento das comunidades quilombolas. O governo não contabiliza milhares de populações. “Nós temos por volta de 6 mil quilombos no Brasil, só a metade disso é certificada pela Fundação Palmares e apenas 181 titulados”, alerta.
A lacuna de dados impede o acesso às políticas públicas e deixa as comunidades desprotegidas, o que causa impactos diretos na preservação da cultura e do meio ambiente. “Estudos científicos, com evidências apontam a importância dos povos indígenas e comunidades tradicionais para a boa governança das florestas”, ressalta Silvana.
“É um universo de potencialidades para um planeta melhor, a gente ter essas comunidades fazendo o que elas fazem do modo que elas fazem. Esse diálogo entre o conhecimento tradicional e o saber científico vai encontrar respostas para grandes desafios da humanidade”, completa.
*Ouça a entrevista na íntegra no tocador abaixo do título desta reportagem.
Edição: Vivian Virissimo
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Imagem: Quilombolas do Cumbe lutam para sobreviver – Foto: Divulgação