Após disputa judicial, concessão da “rodovia da soja” aconteceu sem escutar os Panará e os Kayapó; apenas um consórcio de empresas se interessou pela concessão
Por Clara Roman, ISA
Sem consulta aos povos indígenas impactados, o Governo Federal realizou o leilão da rodovia BR-163 entre Sinop (MT) e Mirituba (PA). Apenas um grupo se apresentou como interessado: o Consórcio Via Brasil BR-163, liderado pela Conasa Infraestrutura, que administra rodovias estaduais no Mato Grosso e pela primeira vez assume uma rodovia federal.
Na última semana, a Justiça Federal de Altamira havia suspendido o processo até que o Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit) apresentasse a aprovação do Plano Básico Ambiental – Componente Indígena (PBA-CI). Esse plano detalha os impactos da concessão das Terras Indígenas do entorno e deve ter como base o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e os diagnósticos de impactos encomendados pelo DNIT. Estes estudos deverão ser submetidos à consulta dos povos indígenas e à análise técnica de equipe de indigenistas especializados da Fundação Nacional do Índio (Funai).
A suspensão do leilão, porém, foi derrubada pelo TRF-1, que atendeu a um pedido da União e da Agência Nacional de Transportes (ANTT). Assim, o leilão aconteceu sem a escuta necessária aos povos indígenas da região, gerando, além de impactos socioambientais, mais instabilidade jurídica e econômica para a operação e violando a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Mesmo assim, o TRF-1 manteve o entendimento da importância da apresentação do PBA, da consulta aos indígenas e da execução dos recursos de mitigação e compensação dos impactos pelas associações indígenas Iakiô, da Terra Indígena Panará, e pelo Instituto Kabu, da TI Menkragnoti, elementos que constavam na decisão da justiça de Altamira. Essas responsabilidades foram transferidas para a concessionária. O Ministério Público encaminhou um ofício para a Comissão de Valores Mobiliários informando sobre as obrigações do PBA-CI.
Os indígenas vão continuar lutando para que seus direitos sejam respeitados.
“Nós precisamos ser consultados. Nós temos um protocolo e consulta. O governo, o DNIT, precisa respeitar nosso Protocolo”, afirma Kunity Metuktire Panará, jovem liderança da Terra Indígena Panará.
Kunity recorda que o seu povo sofreu no passado com a construção da rodovia BR-163. A estrada cortou o território dos Panará ao meio e a instalação das frentes de obras da rodovia trouxe surtos de gripe e diarreia, provocando o quase extermínio. Restaram apenas 70 pessoas de uma população estimada, na época do contato, em 400 indivíduos “No tempo passado, nossos avós sofreram, nós perdemos muitas das nossas famílias, mais de 400 e poucas pessoas. A BR passou em cima da nossas aldeias. Onde hoje é Terra Nova, Matupá, Novo Mundo, Guarantan, até na base do cacimbo”, diz ele. Em 2019, os Panará construíram um Protocolo de Consulta, um documento que define como eles devem ser consultados pelo governo em obras desse território. Sem realizar esse passo essencial, o DNIT viola a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
O PROCESSO DE CONCESSÃO DA BR-163
Hoje os Panará vivem um período de retomada do crescimento demográfico após seu retorno, possibilitado pelo o reconhecimento e demarcação da TI Panará, que corresponde a uma fração de seu território originário — engolido pelo crescimento de cidades no entorno da rodovia. Além das décadas de exílio, os Panará seguem enfrentando impactos negativos decorrentes da abertura e pavimentação da rodovia, como invasões de madeireiros, grilagem de terras e a contaminação por agrotóxicos utilizados na monocultura de soja nas terras ao redor da TI, além de pressões de grupos externos para a exploração de recursos naturais presentes no território. Todos esses impactos põem em risco a cultura, a vida e o território do povo Panará. “Estamos muito preocupado com as nossas florestas, nossos rios onde a gente busca alimento, carne para nos alimentar, o que tá afetando nossa área devido ao desmatamento e à agricultura”, explica Kunity.
Também afetados pela rodovia, os Kayapó das Terras Indígenas (TIs) Baú e Menkragnoti vão continuar lutando por seus direitos e pela garantia da continuidade do Plano Básico Ambiental – Componente Indígena (PBA-CI) referente aos impactos da BR-163 mesmo após o governo ter realizado o leilão de concessão da rodovia no dia 8 de julho.
Os indígenas afirmaram que não são contra a concessão nem contra o desenvolvimento, mas querem evitar a insegurança jurídica pela falta de cumprimento dos direitos previstos na legislação, colocando em risco a defesa de seus territórios, do modo de vida e a proteção da floresta.
Lideranças e indígenas reunidos na aldeia KBK nos dias 7 e 8 de julho discutiram sobre a falta de cumprimento da lei ao governo decidir fazer o leilão mesmo sem cumprir as condicionantes ambientais. “Não somos contra o desenvolvimento, só queremos que o governo cumpra a lei e a Constituição. Estamos chamando a atenção do governo para isso”, disse Doto Takak-Ire, Relações Públicas do Instituto Kabu.
“Vocês da AGU (Advocacia Geral da União) derrubaram a liminar da juíza federal. Ficamos sabendo disso e estamos insatisfeitos”, afirmou o cacique geral da TI Menkragnoti, Beb Protti, durante a reunião na aldeia KBK.
Insegurança jurídica
Com a pavimentação do último trecho da rodovia, o Governo Federal tem acelerado procedimentos administrativos com o objetivo de avançar com a concessão da BR-163. Entretanto, atrasos na execução do PBA-CI prejudicam a mitigação dos impactos decorrentes das obras de pavimentação da estrada e geram grandes incertezas sobre os passivos socioambientais associados ao empreendimento. Como os custos socioambientais da BR-163 não estão devidamente dimensionados, há dúvidas também quanto à responsabilidade e à capacidade da concessionária vencedora do leilão de arcar com as medidas de mitigação de impactos decorrentes da operação da rodovia. Essa incerteza levou o MPF a oficiar o DNIT e a ANTT para que tornasse públicas as controvérsias judiciais em torno da rodovia.
A falta de transparência em relação aos custos socioambientais do empreendimento já gera prejuízos ao governo: grandes consórcios operadores de outras estradas federais afastaram-se do projeto e o leilão da rodovia foi realizado com apenas um grupo concorrente. O consórcio vencedor é liderado pela Conasa, que já tinha concessões estaduais no Mato Grosso e agora vence seu primeiro contrato federal. Também fazem parte do grupo as empresas Zetta, Construtora Rocha Cavalcante e M4 Investimentos. O grupo assumirá a operação do trecho de 1.009 quilômetros por um prazo de dez anos.
ENTENDA O CASO
A rodovia BR-163 começou a ser aberta em 1971 para “ocupação” do interior do Brasil. Sua função seria conectar a região Centro-Oeste aos portos do Norte do país, no Rio Tapajós e Amazonas. Durante o processo de abertura da estrada, diferentes projetos de colonização foram incentivados pelo governo militar, impulsionando a ocupação e espoliação de terras indígenas na região. Em 2003, com a concretização do projeto de pavimentação da rodovia, os processos de grilagem, desmatamento e conflitos fundiários na área impactada pelo empreendimento aceleraram.
Dentre os povos mais afetados pela pavimentação da BR-163 estão os Panará, quase dizimados no período da abertura da estrada. Esses foram levados ao Território Indígena do Xingu (TIX), onde viveram por 20 anos até conseguirem retornar ao seu território original.
A implantação da rodovia seria acompanhada, entre diversas medidas de compensação, pela criação de Áreas de Proteção na região para contenção de diversos impactos socioambientais. Contudo, o plano não foi implementado com sucesso e a região é palco de violentos conflitos socioambientais de disputas por territórios, recursos naturais e valores e modos de vida.
Em dezembro de 2008 foi celebrado Termo de Cooperação entre a FUNAI e o DNIT, com vigência entre 2008-2014, para execução dos subprogramas do PBA-CI, instrumento fundamental para a mitigação dos impactos da rodovia. Porém, as atividades previstas no PBA-CI, foram iniciadas parcialmente apenas em 2010, anos depois do início das obras e por decisão judicial acerca de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público de Altamira.
Os Subprogramas previstos no Termo de Cooperação entre a Funai e o Dnit foram executados pelo Instituto Kabu nas Terras Indígenas Baú e Menkragnoti, e pela Funai, por intermédio da CR Norte do Mato Grosso, em Colíder/MT, na Terra Indígena Panará.
Enquanto nas TIs Baú e Menkragnoti importantes avanços foram alcançados na mitigação de impactos da rodovia, a gestão dos recursos na TI Panará pela Funai foi considerada insuficiente para reduzir os danos da pressão antrópica sobre o território. Ao fim dos primeiros ciclos de execução do PBA-CI, diante da resistência dos órgãos federais em darem continuidade aos programas de mitigação de impactos, o Ministério Público Federal de Altamira ajuizou Ação Civil Pública contra o DNIT, IBAMA e FUNAI pelo descumprimento das obrigações de compensação indígenas da pavimentação da BR-163, considerando a interrupção da execução do PBA-CI no ano de 2020, sem a renovação do ciclo e sem a descentralização dos recursos do Plano Emergencial.
A Justiça Federal acolheu parte dos pedidos liminares da ACP e ordenou a renovação do PBA-CI da BR-163 e que a execução dos recursos e programas correspondentes aos Panará seja realizada pela Associação Iakiô, organização do próprio povo, assim como a execução do PBA-CI correspondente aos Kayapó continue sendo executada pelo Instituto Kabu.
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Cerca de 100 indígenas Kayapó Menkragnoti bloquearam a BR-163 na manhã de segunda-feira, 17 de agosto de 2020 – |Instituto Kabu