O marco temporal e a decepção Streck. Por Frei Sérgio Görgen

A questão que está em discussão jurídica para decisão é o chamado ‘marco temporal’. O que é isso?

Frei Sérgio Antônio Görgen ofm*, no Sul21

Esta semana vai à decisão no STF o julgamento de uma ação que envolve os indígenas da etnia Xokleng em Santa Catarina, à qual o Tribunal dará “repercussão geral”, isto é, aplicará o mesmo entendimento para outros julgamentos futuros que tenham como foco de julgamento o mesmo ponto de divergência. Vai gerar o que se chama de “súmula vinculante”, isto, amarra, vincula, todos os julgamentos futuros ao julgamento desta semana. 

A questão que está em discussão jurídica para decisão é o chamado “marco temporal”. O que é isso?

Como a Constituição foi aprovada em 1988, os latifundiários, ou mesmo o Estado com projetos de colonização, que fizeram a intrusão de terras indígenas ANTES  de 1988, poderiam continuar nelas e os povos indígenas perderiam o direito de reivindicar estas terras. Os povos indígenas só teriam direito às terras em que estavam MORANDO antes de 1988, esquecendo e apagando toda a violência das expulsões ocorridas no final do século 19 e ao longo do século 20. Além de abrir uma discussão sobre o espaço restrito ao qual estavam confinados pela violência do entorno àquela data.

Ora, na Constituição está escrito: “terras que TRADICIONALMENTE ocupam”. Não está escrito: “terras que MOMENTANEAMENTE ocupam”. A princípio, nem teria o que se discutir. Ocupação tradicional se prova com identificação de cemitérios indígenas, documentos comprobatórios de presença, depoimentos de idosos, enfim, há uma metodologia consagrada para identificar ocupação tradicional.

O que estará em julgamento é se vale a Tradicionalidade ou o Marco Temporal datado em 1988. E a decisão desta semana vai valer para os próximos julgamentos. Os povos indígenas e seus aliados estão mobilizados. Os grandes proprietários invasores de terras indígenas, também. 

Sempre surgem as dúvidas sobre pequenos agricultores que os governos titularam em áreas de ocupação tradicional indígena. 

Quando fiz parte do Governo Olívio Dutra no Rio Grande do Sul, tive a honra de coordenar, sob as ordens firmes do grande Governador, o reassentamento em condições melhores das que viviam nas terras indígenas, de mais de 500 famílias, devolvendo as terras aos seus legítimos donos e garantindo o direito à terra aos  agricultores ocupantes de boa fé. 

Conflito possível de ser resolvido garantindo os direitos de agricultores e indígenas, bastando vontade política. Expectativa grande de ver o STF consagrando a Constituição aprovada e não legislando.

Porém, não há grandes decisões sem alguma grande decepção. A decepção da vez fica por conta do jurista Lênio Streck, professor da Universidade Jesuíta Unisinos, que pousa de progressista, mas que emprestou (ou vendeu?) seu tempo, seu prestígio  e sua erudição à causa anti-indígena. 

Em parecer encomendado por advogados que representam os grandes produtores de algodão do Mato Grosso, o jurista Lenio esnoba e abusa da erudição jurídica, em grande parte, vazia de conteúdo, repetitiva, lotada de citações em inglês, típico do que popularmente chamamos de “encher linguiça com ar”.

O Doutor Streck se apega ao julgamento do próprio STF sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol tentando demonstrar que as condicionantes daquele julgamento se constituiriam num PRECEDENTE que vincularia os próximos processos e que o julgamento desta semana não poderia reformar aquela decisão. Apenas chancelar.

Uma leitura atenta do parecer percebe que o próprio Doutor demonstra não acreditar muito em sua própria tese. É que Lenio sabe que a condicionante que poderia dar guarida à tese do marco temporal foi objeto de “embargo declaratório”, e neste, não consagrada como “vinculante”. E também sabe que, mesmo que fosse o caso, quem tem autoridade para fazer, a tem para reformar, no caso em tela, o SUPREMO Tribunal Federal.

Uma tese frágil propalada por uma pena forte. Triste é ver Streck prestar-se a isto.  Como advogado, Dr Lenio tem o direito de defender a tese que quiser e prestar serviço para o cliente que bem entender. É da sua profissão. Nada a reclamar.  Mas que sua pose de progressista sai arranhada, ah, isto sai. Cada escolha também é uma sentença. E também, quem sai no temporal, pode enfrentar ventania.

O que estranhei muito foi a flexibilidade epistêmica de Streck na abordagem de seu parecer, algo tão combatido pelo mesmo em tantos outros de seus textos.

A mim causou grande decepção e tristeza. Não creio ter sido o único. Tristeza também por ver o nome de uma Universidade Jesuíta, cuja Congregação tanto fez em favor dos povos indígenas em nosso país, envolvida nisto, já que, no final do parecer, o citado jurista se apresenta como docente desta renomada instituição de ensino. 

Reafirmando o direito indígena e a Constituição, com expectativa esperançosa. Sim à causa indígena. 

(*) Frei Franciscano, militante do MPA, autor de Trincheiras da Resistência Camponesa.

Foto: Joana Berwanger/Sul21

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