“Governos de direita são bons em destruir, mas ruins em construir”, diz Boaventura

Para o sociólogo português, o Brasil vive hoje um enorme desastre que a população ainda não conseguiu perceber

Ayrton Centeno, Brasil de Fato

Autor traduzido em cinco idiomas, com dezenas de livros publicados, Boaventura de Sousa Santos é um crítico implacável do neoliberalismo e da ascensão da direita de corte fascista. Professor nas universidades de Coimbra e Wisconsin-Madison, é autoridade internacional em sociologia do direito, direitos humanos, globalização, democracia e participação popular.

Nesta entrevista, ampliando os temas tratados na edição impressa deste mês do Brasil de Fato RS, ele aborda o papel do Estado como protetor da maioria do povo, a atuação decisiva dos serviços públicos de saúde na pandemia, a destruição das estatais promovida pelas elites econômicas, a retirada de direitos e o advento dos trabalhadores sem direito algum e que se julgam “empreendedores”.

Além disso ele analisa o cenário do Brasil, segundo ele “um estudo de caso patético, cruel, de um genocida que se mantém no poder”.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato RS – No Rio Grande do Sul, a população deflagrou uma campanha pelo plebiscito exigindo ser consultada antes da privatização de companhias públicas estaduais. Como sempre, a venda das estatais é apresentada pelo neoliberalismo como uma solução para todos os problemas do município, do estado ou do país. No Brasil ou em outros países que adotam o mesmo credo, parece que o grande obstáculo no caminho do progresso é a existência de empresas públicas. Será que é isso mesmo?

Boaventura de Sousa Santos – O Brasil hoje está atrasado em dois níveis. Está submetido a um processo ativo de retrocesso e, por outro lado, procura renovar as políticas neoliberais da privatização tão desacreditadas em todo o mundo, sobretudo depois da pandemia.

O obstáculo ao caminho do progresso que inclua os cidadãos são as privatizações. Elas são um obstáculo, porque visam fundamentalmente resolver uma crise da acumulação do capital. Isto é, a empresa privatizada é a que normalmente é preparada para dar prejuízo para, depois de privatizada, voltar a dar lucro. E acontece, por vezes, que se privatizam mesmo as empresas que estão dando lucro.

BdFRS – Em um país com tamanhas desigualdades como é o caso do Brasil, é razoável pensar em reduzir ainda mais o tamanho do Estado? Quem pagará este preço?

Boaventura – Não é razoável nem é justo reduzir ainda mais o tamanho do Estado. Por quê? Porque o Estado hoje é cada vez mais necessário para aqueles que precisam de direitos, que é a maioria dos cidadãos. Encolher o Estado é destruir direitos. Porque não encontramos neste momento outra maneira de dar acesso universal ao direito, à saúde, à educação, a uma vida digna, à água potável, que não seja por via pública e para isso precisamos lutar forte.

BdFRS – Nota-se, no Brasil e em muitos países, um mal-estar, uma insatisfação perante o desempenho do Estado e das suas instituições. Mas quais as condições do mercado satisfazer tal demanda?

Boaventura – Não há nenhuma condição natural que nos diga que o Estado é sempre ineficiente ou é sempre corrupto. Não. Pode ser eficiente e muitos Estados são. Pode não ser corrupto e muitos Estados não são. Precisamos lutar para que funcione melhor, mas é evidente que o Estado é a única maneira de garantir condições mínimas de vida aqueles cidadãos que não podem ter acesso a serviços básicos.

Quanto à insatisfação com o desempenho, tem duas causas. Por vezes, o Estado é realmente ineficiente,  porque também se tem muita expectativa na ação do Estado e, por vezes, essa expectativa é frustrada. São insatisfações reais, mas a maior parte da insatisfação que existe hoje é manipulada, construída pela mídia.

As mídias corporativas e hegemônicas estão a serviço, porque são propriedade dos grupos econômicos e, portanto, querem as privatizações e querem que se propague a ideologia da ineficiência e da corrupção do Estado.

BdFRS – O Brasil caminha para 600 mil mortos pela covid-19. É um número assustador, mas, não fosse o Sistema Único de Saúde (SUS), público, universal e gratuito, a cifra seria mais terrível. No mundo inteiro, durante a pandemia, o Estado cumpriu um papel decisivo. Será que as pessoas relacionam a presença do Estado à preservação da sua saúde e da vida?

Boaventura – Quando veio a pandemia, ninguém procurou os mercados para se proteger. Procuraram o Estado. E o Estado, em muitos países, não estava lá, precisamente porque a saúde em muitos países foi privatizada nos últimos 40 anos. Acontece que a privatização não foi total. Por isso, países com o serviço público de saúde como o Brasil, Portugal também, tiveram a proteção que foi possível dar aos cidadãos. Ficou patente que o Estado é fundamental.

Aqui em Portugal, está a se fazer um refinanciamento do serviço único de saúde. É um governo de esquerda moderada, mas que parece está aprendendo essa lição de que vai haver mais pandemias e é preciso fortalecer os serviços públicos de saúde para estarem mais bem preparados para a próxima.

Não vamos nos ver livres desta pandemia. Vai entrar em fase endêmica. Vamos ter que nos vacinar anualmente, haverá novas variantes e necessidade de outras vacinas. O Estado de proteção com o serviço nacional de saúde vai ser fundamental nos próximos tempos.

BdFRS – Embora o neoliberalismo empunhe a bandeira da democracia, há quem diga que, na visão dos neoliberais, existe democracia demais. O que opina?

Boaventura – O neoliberalismo só conhece uma liberdade. É a liberdade econômica. Não conhece nenhuma outra: liberdade política, cívica, cultural, nada disso interessa. Aliás, todas podem ser cortadas, restringidas, limitadas. Uma ditadura pode garantir a liberdade econômica. Só a democracia é que garante as outras.

BdFRS – Um governante, em tese, deve buscar o bem comum. Mas, apesar dos resultados pífios e das frustrações decorrentes dos processos de venda do patrimônio público, governantes mundo afora continuam rezando pela cartilha das privatizações. Qual a lógica atrás disso?

Boaventura – Publiquei recentemente um livro pela editora Boitempo, intitulado “O futuro começa agora: da pandemia à utopia”. Mostro que o comportamento dos Estados foi diferenciado. Os que responderam melhor (foram) Estados com governos de esquerda ou centro-esquerda. E os que se comportaram pior – Inglaterra, EUA, Brasil, Índia, Colômbia – foram os países governados pela direita. Estes são absolutamente ideológicos e procuram justificar suas políticas utilizando todos os meios.

A pandemia veio mostrar uma coisa: os governos de direita são bons em destruir, mas não são bons em construir. Quando é preciso uma política para os cidadãos numa crise, nada fazem porque não querem fazer e porque não sabem fazer. Há uma incompetência constitutiva. Foram treinados para deixar tudo na mão dos mercados e cuidar apenas das polícias, do estado repressivo, não do estado de proteção.

BdFRS – O governo Jair Bolsonaro consegue unir neoliberalismo exacerbado e ultradireitismo. Qual é a visão que, após três anos do atual governo, o Brasil atual deixa aos olhos de um estrangeiro?

Boaventura – O governo brasileiro é hoje um estudo de caso, um laboratório do que designamos por negacionismo. É a política de negar a gravidade da pandemia e querer, a todo custo, proteger a economia antes de proteger a vida. Esses governos têm mostrado que nem são bons em proteger a vida, nem são bons em proteger a economia. Veja a crise no Brasil, na Colômbia, a própria crise nos Estados Unidos que apenas é disfarçada porque eles podem imprimir dinheiro todos os dias sem desvalorizar a moeda.

O Brasil é hoje um estudo de caso patético, cruel, de um genocida que se mantém no poder e cuja aceitação social ainda é demasiada alta para o desempenho absolutamente desastroso. Esta incapacidade, que não é uma incapacidade, é uma incapacitação, os cidadãos e cidadãs brasileiros foram incapacitados de ver a enormidade do desastre, uma situação que é quase de darwinismo social, isto é, a destruição intencional da vida dos pobres e dos pretos como se diz no Brasil.

BdFRS – A defesa da democracia e, com ela, a defesa dos direitos dos trabalhadores é um dos grandes temas neste momento da história das lutas populares?

Boaventura – A defesa da democracia continua a ser a grande bandeira de luta popular. Os jovens, as mulheres, os povos indígenas, os camponeses, quilombolas, afrodescendentes, de toda a América Latina, das Américas, todos eles hoje se apropriaram da ideia da democracia. Querem uma democracia real. E obviamente que enquanto houver capitalismo, é necessário defender os direitos dos trabalhadores.

Claro que tem que se defender o direito de todos os trabalhadores e não apenas daqueles de carteira assinada. Muitos trabalhadores hoje estão uberizados. Querem convencê-los de que são empreendedores. Não, são trabalhadores. E têm que ter lugar nos sindicatos. Suas lutas têm que ser reconhecidas.

Em alguns países, já se reconheceu que os entregadores de aplicativo são trabalhadores. É uma luta que tem que ser continuada e renovada. O capitalismo, neste momento, não tem e não quer ter outra opção senão precarizar cada vez mais a força do trabalho. O capitalismo financeiro que hoje temos prende os trabalhadores à dívida do consumo. A dívida das famílias nunca foi tão alta e, para pagar as dívidas, é uma nova forma de escravatura, trabalhar 70 horas (por semana) sem descanso.

Edição: Katia Marko

Foto: Caroline Ferraz /Sul21

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