Cloroquina para a democracia: os negacionistas somos nós! Por Ivann Logo

Na ciência política há farta literatura sobre golpes contra a democracia e instauração de regimes ditatoriais. Em termos gerais, essa literatura trabalha com uma tipologia que inclui três modalidades para a ruptura de regimes democráticos.

O primeiro tipo é característico de momentos em que o titular do governo se coloca diante de uma ameaça – que pode ser, e geralmente é, forjada ou, como está na moda, fake – e conclama o apoio das forças armadas para impor uma ordem autoritária como (suposto) recurso para colocar o país e o governo de volta nos trilhos. Foi o que aconteceu no brasil de 1937, com Getúlio Vargas.

O segundo é o mais clássico e o mais presente no imaginário da população, talvez por ser o mais cinematográfico e mais espalhafatoso dos tipos. Cria-se um clima de terra arrasada política, de ameaças internas e externas de toda ordem, capaz de aglutinar elites civis e militares, as quais passam a conspirar para derrubar um governo democraticamente eleito, que é pintado como a causa daquelas ameaças. Tanques nas ruas, prisão de adversários, fechamento de instituições, criminalização de partidos são ações que acompanham a derrubada do governo e, com ele, o sepultamento da democracia. Foi o que vimos no Brasil em 1964.

O terceiro tipo é o mais difícil de ser percebido, talvez por isso também é o mais recentemente caracterizado na literatura sobre o tema. A melhor análise sobre como ele se dá foi feita por Steve Levitsky e Daniel Ziblatt, na já clássica obra “Como as democracias morrem” (ZAHAR, 2017). Aqui o processo se dá por um lento, contínuo e profundo movimento de corrosão das instituições democráticas, promovido por um governo eleito através do voto. Amparado pelo apoio de parcela significativa da população e por maioria parlamentar, o governante, gradativamente, mina as estruturas democráticas, ultrapassa limites constitucionais, força as fronteiras da legalidade, aparelha as instâncias governamentais, persegue adversários e suas ideias no cotidiano das decisões governamentais. Em geral, coopta as instituições militares com benesses, cargos e aumentos salariais, transformando-as em escudo contra eventuais levantes da oposição ou da própria sociedade. O processo se acelera quando este governo conta, ainda, com a complacência do judiciário e a obsequiosidade da mídia.

É o terceiro tipo que vemos em curso no Brasil. Não listarei, aqui, todas as ações do atual governo que corroem nossas instituições democráticas e atrapalham seu funcionamento. Isso tem sido feito à exaustão por incontáveis pesquisadores, analistas, juristas, jornalistas… Nossa democracia desmorona a olhos vistos, à luz do dia, todos os dias.

Minha questão, hoje, é outra. Minha inquietação é com a forma como essas instituições, ameaçadas, atacadas, ridicularizadas, humilhadas e corroídas, reagem ao governo que as colocou em frangalhos. Muito se tem dito sobre o negacionismo como parâmetro de ação do governo brasileiro em relação à pandemia. Mas negacionismo é exatamente o que vemos das instituições brasileiras na hora de responder aos ataques que sofrem diuturnamente do Presidente da República, de seu governo e de seus seguidores.

Notas de repúdio são a única ferramenta com a qual essas instituições reagem. Nossa democracia se esfacela sob nossos pés e as lideranças a quem cabe zelar pelo regime negam que o abismo esteja se aproximando. Discursos ensaiados sobre mediação, diálogo e temperança são tudo o que conseguem nos apresentar. Ou pior, como no caso do Procurador Geral da República, para quem os atos do último sete de setembro, por exemplo, nada foram além de “uma festa da democracia”. As reações das instituições da República estão para o movimento golpista que a ameaça como a cloroquina está para o tratamento das pessoas acometidas pela COVID.

Será mesmo que alguém em sã consciência ainda acredita que, em uma bela manhã de primavera, Bolsonaro irá acordar com alma republicana, passará a respeitar a constituição e a democracia, dialogará com as instituições e com a oposição para enfrentar a miséria, a inflação, o desemprego, a pandemia, a crise energética? Quanta ingenuidade é necessária para acreditar que ele não tumultuará de todas as formas imagináveis as eleições do próximo ano, e que não aceitará qualquer outro resultado que não seja a sua vitória?

Até quando o “mercado” continuará apostando em Paulo Guedes e em sua “agenda liberal” como se Bolsonaro não existisse e não fosse seu chefe, com o qual, Inclusive, o ministro da economia compartilha todas as ideias que possui sobre o mundo, sobre o país e sobre sua gente (especialmente a gente pobre)?

Até quando a mídia brasileira fará de conta que não tem nada com isso, negará sua grande parcela de culpa na história e passará dias seguidos e intermináveis analisando o tom de voz com que o Presidente do Senado responde ao golpismo que galopa em direção à sua porta?

Até quando o “centrão” vai considerar lucrativo um presidente desvairado e fora da realidade, que tem o caos como método, porque ao se concentrar no golpe e esquecer de governar ele abre as portas dos ministérios e do orçamento aos seus interesses paroquiais e à politicagem da qual seus partidos sobrevivem? Será que esses parlamentares esqueceram que a maior regra de uma ditadura é que o parlamento é o primeiro a ser calado? Ou nem isso lhes importa se vislumbrarem alguma chance de ganharem cargos e dinheiro do orçamento?

Até quando nós assistiremos nossa democracia se esfacelar fazendo piadas sobre a dicção do presidente, como se isso nos livrasse do terror que possui o significado do que ele diz? Até quando vamos nos limitar a rir do tosco e do ridículo de seus seguidores, negando o fato de que será por gente como eles que seremos governados, provavelmente, pelo resto de nossas vidas se continuarmos sem fazer nada?

A república está em frangalhos. Aqueles aos quais cabe sua defesa se acovardam ou compactuam na esperança de lucrarem com a desgraça. Grande parte de nós, o povo, se acovarda, se esconde, lamenta e torce para que um milagre aconteça. Os poucos que se levantam para defendê-la parecem falar línguas diferentes e, por isso, não se entendem, o que os deixa ainda mais fracos.

A democracia está na UTI e respira por aparelhos. E o único remédio que lhe foi dado até aqui foi cloroquina. Pode até ser que, por força de seu próprio organismo, ela se cure, mas as sequelas serão muitas, e ecoarão nas vidas de nossos filhos e netos.

Ivann Logo é sociólogo, mestre e doutor em Sociologia Política. É professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Cerro Largo (RS). Atua nas áreas de Teoria Política, Instituições Políticas e Regimes de Governo, Cultura e Comportamento Político, Partidos e Eleições. É professor permanente do Mestrado em Desenvolvimento e Políticas Públicas da UFFS. 

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