São Paulo – A Defensoria Pública da União (DPU) ajuizou uma ação civil pública (ACP) contra o Conselho Federal de Medicina (CFM) pedindo a responsabilização da autarquia federal por ter promovido o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19, a exemplo da cloroquina e a hidroxicloroquina. A ação tramita na 22ª Vara Cível Federal de São Paulo (SP).
A ACP, de autoria do defensor regional de Direitos Humanos em São Paulo (DRDH), João Paulo Dorini, pede a condenação do CFM em valor não inferior a R$ 60 milhões por dano moral coletivo. Além disso, postula o pagamento de indenização devida por cada paciente tratado com cloroquina e hidroxicloroquina, no valor de R$ 50 mil no caso daqueles que vieram a falecer e no valor de R$ 10 mil para quem teve o quadro piorado e desenvolveu sequelas. Por fim, pede que o CFM custeie o tratamento para essas pessoas.
Parecer nº 4/2020
Um histórico das orientações técnicas emitidas pelo conselho durante a pandemia é apresentado na ação, com destaque para o Parecer nº 4/2020, publicado em 23 de maio de 2020, que trata sobre a cloroquina e a hidroxicloroquina. No documento, o CFM defende a autonomia do médico e a valorização da relação médico-paciente”, permitindo o uso das substâncias sem que haja infração ao Código de Ética Médica, “diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia”.
Com amparo nessas premissas, o texto propõe “considerar o uso” da cloroquina e da hidroxicloroquina em “pacientes com sintomas leves no início do quadro clínico” e em “pacientes com sintomas importantes, mas ainda não com necessidade de cuidados intensivos, com ou sem necessidade de internação, a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente”. Em ambos os casos fica o médico “obrigado a relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da covid-19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso (…)”.
Além disso, a orientação técnica recomenda “considerar o uso compassivo em pacientes críticos recebendo cuidados intensivos”. O denominado “uso compassivo” significa que ela só pode ser prescrita quando os outros medicamentos conhecidos não apresentam resultados satisfatórios.
A ACP relata ainda que na véspera da aprovação do Parecer nº 4/2020, o Conselho Nacional de Saúde publicou recomendação na qual orientou a suspensão imediata do chamado “tratamento precoce” aos pacientes infectados pelo novo coronavírus, que incluiu a cloroquina e a hidroxicloroquina, entre outros medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento da covid-19. O Conselho Federal de Farmácia (CFF) seguiu a mesma diretriz, vedando tais substâncias.
Dorini destaca que o CFM manteve a orientação pelo uso das substâncias mesmo depois da publicação de diversos estudos demonstrando a ineficácia dos medicamentos no tratamento contra a covid-19 e de algumas pesquisas que inclusive demonstraram o aumento da mortalidade em pacientes submetidos ao tratamento.
A própria DPU encaminhou à época uma recomendação ao CFM na qual se questiona a adoção dos medicamentos e obteve como resposta a não alteração do entendimento pelo uso das substâncias, desde que houvesse o “consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares”, considerando a “autonomia do médico e a valorização da relação médico-paciente”.
Entretanto, para a DPU, “o CFM não pode dizer o que quiser, apesar da ciência. Tampouco ‘interpretar’ a ciência, como se algo normativo fosse. A autonomia do CFM é a de mudar e alterar suas decisões a todo o tempo sempre que novos conhecimentos científicos estejam à disposição”.
Ação Civil Pública
Sobre o Parecer nº 4/2020, a ACP contém pedido liminar (urgente, no início do processo) para que “perca a eficácia”. Ou seja, que haja a determinação judicial para que não gere qualquer efeito, devendo ser ignorado pela comunidade médica. Também defende a concessão de liminar para que “o CFM oriente ostensivamente a comunidade médica e a população em geral sobre a ineficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina”.
De acordo com o defensor, “milhares de pessoas, talvez milhões, foram tratadas por cloroquina no País, seja por automedicação, seja por prescrição médica com o consentimento do paciente, seja por exigência do paciente. Não importa. Todas essas pessoas, ao acreditar na orientação enganosa do CFM sobre cloroquina, foram por ele induzidas em erro, o que contribuiu para os danos que sofreram.”
A ação ainda enfatiza que a postura do CFM contribuiu para o relaxamento em relações às medidas de distanciamento social para a contenção da pandemia: “Não há dúvida de que as ações e omissões erráticas do Conselho Federal de Medicina contribuíram decisivamente para um quadro sociocultural de diminuição da gravidade da pandemia, de normalização das infecções e das mortes, e divulgação de tratamentos precoces milagrosos para o enfrentamento da pandemia, que desestimularam em parcela da população a adoção de medidas efetivamente eficazes”, concluiu o defensor.
ACP nº 5028266-85.2021.4.03.6100