Crimes apontados pela CPI desafiam Augusto Aras e testam barreiras políticas que blindam Governo. Por Beatriz Jucá

Imputação de nove crimes atribuídos ao presidente ficará nas mãos do procurador, um aliado de Bolsonaro, que pode ser indicado ao STF

El País

Sessenta e seis pessoas e duas empresas foram alvo de pedido de indiciamento no relatório da CPI da Pandemia por diversos tipos de crimes praticados no Brasil durante a maior crise sanitária do século. O documento de mais de 1.000 páginas ainda precisa ser aprovado pelos senadores, mas sua leitura reacendeu o debate sobre quais poderão ser os efeitos práticos deste trabalho no caminho para responsabilizar as autoridades, em especial as do Executivo, pela gestão da pandemia. O papel da comissão, afirmam juristas, é investigar e apontar responsabilidades. Foi cumprido. Agora, se o relatório for aprovado no dia 26, ele servirá de base para que a Procuradoria Geral da República e o Ministério Público decidam caso a caso por continuar as investigações, oferecer denúncia à Justiça ou arquivá-las. A promessa é de aprovação, ainda que com algumas modificações, uma vez que o colegiado que votará o relatório é composto por 11 membros, dos quais 7 são opositores do Governo.

Há uma longa lista de supostos criminosos, que inclui de ministros a políticos e médicos. No topo dela, está o mais alto cargo do país. Ao presidente Jair Bolsonaro, são imputados nove crimes ―comuns, de responsabilidade e contra a humanidade― que podem culminar de prisão ao seu afastamento do cargo. Mas, até lá, há um longo caminho ―sem prazos estabelecidos― de análise técnica e barreiras políticas que podem favorecê-lo.

Os senadores viram na conduta errática de Bolsonaro durante a pandemia os crimes comuns de epidemia, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documentos, uso irregular de verbas públicas, prevaricação e violação do direito social. Também identificaram crime de responsabilidade ―cujos indícios e eventuais provas deverão ser encaminhados à Câmara dos Deputados― e crimes contra a humanidade, imprescritíveis, que podem parar no Tribunal Penal Internacional. O caminho interno para uma responsabilização do presidente passa pelas mãos do procurador-geral da República, Augusto Aras, um aliado seu. Cabe à PGR decidir sobre o encaminhamento dos casos com foro privilegiado, como o presidente, ministros e parlamentares. Não há prazo para que essas solicitações sejam apreciadas, mas há uma significativa pressão política em função da CPI da Pandemia por respostas à sociedade. O que virá dependerá da consistência técnica do relatório para configurar os crimes, mas também da conjuntura política.

Aras tem sido bastante cauteloso em levar adiante denúncias contra o presidente, algumas delas relacionadas a um suposto crime contra a saúde pública na pandemia, já levadas à sua mesa antes da CPI da Pandemia. Mas depois de um primeiro mandato conturbado e repleto de críticas internas por uma atuação que blindava o presidente, o contexto agora é mais incerto. Aras foi reconduzido ao cargo para o último mandato e contou para isso com a defesa do relator da CPI, Renan Calheiros. Há quem considere que ele pode sentir-se livre para cumprir seu papel constitucional, especialmente diante de uma pressão interna que se tornou evidente no seu primeiro mandato, conforme fontes ouvidas pelo EL PAÍS. Mas na mesa há um outro elemento de especulação: sua eventual persistência no interesse por uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, caso a indicação de André Mendonça pelo presidente não prospere.

Seja como for, a qualidade do relatório produzido também tem potencial de dar o tom da pressão sobre Aras e influenciar sobre qual atitude ele deverá tomar. “No campo do discurso, do julgamento social e político, é mais fácil lidar. No campo criminal, a coisa é mais complicada. Então tem que ver se os pontos que a CPI juntou são suficientes como base para oferecer uma denúncia”, explica o procurador e presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Ubiratan Cazetta. Ele analisa que a tendência é que a PGR faça um filtro forte da leitura que a CPI fez e opte por uma investigação adicional caso encontre elementos fortes. Além de Bolsonaro, Aras deverá analisar os crimes imputados aos ministros Onyx Lorenzoni, Walter Braga Netto e Marcelo Queiroga, assim como aos deputados Ricardo Barros e Osmar Terra. Também caberá a ele analisar o caso dos filhos do presidente ―senador Flavio e deputado Eduardo Bolsonaro―, aos quais os senadores atribuíram incitação ao crime.

Os demais indiciados pela comissão deverão passar por um caminho semelhante em suas devidas esferas. Membros da alta cúpula do Ministério da Saúde durante o momento mais grave da pandemia, como o ex-ministro Eduardo Pazuello e a secretária da gestão do trabalho da pasta, Mayra Pinheiro, deverão ter seus casos avaliados pelo Ministério Público Federal. A Pazuello são atribuídos os crimes de epidemia com resultado morte, emprego irregular de verbas públicas, prevaricação, comunicação falsa de crime e crimes contra a humanidade.

O advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do grupo Prerrogativas e um dos profissionais que deram suporte jurídico aos senadores da CPI, acredita que o relatório está bem embasado e que, na PGR, Aras não teria muita margem para simplesmente arquivar a investigação contra o presidente Bolsonaro. “A CPI reuniu indícios de autoria e materialidade de delitos de autoridades e pessoas comuns em um relatório sólido, bem construído”, argumenta.

O advogado criminalista Thiago Turbay, coordenador adjunto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, lembra que se os órgãos competentes identificarem casos consistentes e não fizerem nada, estariam praticando crime de prevaricação. Mas, caso não vejam consistência suficiente, podem justificar o arquivamento das investigações. Essas decisões devem passar por uma análise da Justiça, que poderá encaminhar eventuais arquivamentos incorretos ao Conselho do Ministério Público, por exemplo. Tubay pondera, no entanto, que os próximos passos deverão seguir o rigor técnico e não está descartada a possibilidade de anulação de provas caso se verifique que elas foram reunidas ferindo direitos dos investigados, por exemplo.

“O que espero é que o relatório sirva como base para o oferecimento de uma denúncia contra o presidente pelo procurador geral da república e para reforçar os pedidos de impeachment que já estão nos escaninhos da Câmara Federal”, diz Carvalho. O relatório da CPI aponta que o presidente Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade e, por isso, será encaminhado também à Câmara dos Deputados, que é o órgão com prerrogativa de abrir um processo de impedimento. A decisão, porém, segue a cargo de outro aliado de Bolsonaro, o presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL). Ele já repetiu várias vezes que não há apoio popular nem votos suficientes para abertura de um processo de impeachment e não sinaliza que poderá mudar de conduta. “Estamos a um ano das eleições, o que ia resolver?”, questionou, na última semana.

Apesar do longo caminho pela frente para uma responsabilização judicial por eventuais crimes cometidos por dezenas de autoridades durante a pandemia, juristas e advogados avaliam que a CPI cumpriu o seu papel ― seja na produção de um documento histórico sobre a tragédia brasileira ou na indicação de caminhos de responsabilização. “Já não acabou em pizza. É preciso ter claro as atribuições de cada órgão. O que uma comissão parlamentar de inquérito faz é investigar e apresentar um relatório com indicações de caminhos de responsabilização. Nós podemos concordar total ou parcialmente com os elementos do relatório, mas não há dúvidas de que ela cumpriu o seu papel”, diz uma das juristas mais respeitadas do Brasil, Deisy Ventura, que coordenou uma pesquisa que mostra que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”. Para ela, a CPI desvendou o que aconteceu no país e produziu provas novas sobre vários temas, inclusive a demora na aquisição de vacinas. “Agora cada um tem sua função, e nós vamos ver o que as demais autoridades farão com este relatório”, diz. Os senadores também formam uma frente parlamentar para acompanhar os próximos passos das outras instituições rumo à responsabilização dos supostos autores dos crimes.

A CPI indica ainda crimes contra a humanidade que teriam sido cometidos pelo presidente Bolsonaro ao não amparar as comunidades indígenas, pela grave crise sanitária em Manaus e pelo caso Prevent Senior, uma operadora de saúde que teria feito pacientes de cobaias para experimentos com remédios sem eficácia para a covid-19. Os crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis, devem ser encaminhados ao Tribunal Penal Internacional de Haia. A corte já foi instada a abrir uma investigação contra o presidente do Brasil por genocídio. Lá, o caminho até que de fato o caso seja analisado é geralmente longo, mas está longe de não trazer resultados.

“Para que Bolsonaro seja julgado em Haia é preciso mostrar a intenção de crime contra a humanidade”, disse ao EL PAÍS o responsável por pedir a prisão de Kadafi quando comandou a promotoria do Tribunal Penal Internacional, Luís Moreno Ocampo, no ano passado. Deisy Ventura lembra que crimes cometidos no Afeganistão levaram anos para que a procuradoria do TPI finalmente fosse autorizada a investigar, o que está ocorrendo neste momento. Esta deve ser a última instância para responsabilizar Bolsonaro. “Se a jurisdição brasileira se omitir diante da investigação desses crimes, ela coloca água no moinho daqueles que dizem que a questão deve ser levada a Haia”, explica Ocampo. “Uma questão só pode ser conhecida pela jurisdição penal internacional quando a jurisdição nacional não teve capacidade ou não quis cumprir o seu dever”, completa.

Foto: Sérgio Lima

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