Wagner Moura: “Falar de Marighella, que resistiu à ditadura, é falar dos que resistem no Brasil de agora”

Diretor do filme, que chega aos cinemas nesta quinta, relata sua admiração pelo personagem e suas contradições. Moura faz paralelo com o Brasil de hoje, governado por presidente da ultradireita

Por Leonardo Licgote, no El País

O ator e diretor Wagner Moura, de 45 anos, se diz “marighellista desde sempre”. Um sentimento que, conta ele, remonta aos tempos em que, estudante de escola pública em Rodelas (cidade do interior da Bahia onde cresceu), ouviu um professor explicar o golpe militar de 1964 como “revolução” necessária para salvar o país de uma “ditadura comunista”. A cena do menino ouvindo o professor defender a “Revolução de 1964″ em sala de aula está em Marighella, filme que Moura dirige e que estreia nos cinemas brasileiros no próximo dia 4, com dois anos de atraso. A pandemia foi uma das razões que atrasou a estreia. Outro motivo foram a ações da Agência Nacional de Cinema (Ancine), que o diretor qualifica como tentativa de censura sob o Governo de Jair Bolsonaro. Trâmites burocráticos contribuíram para postergar o lançamento do filme, que faz um retrato de um personagem oposto ao de defensores da ditadura, como o presidente de ultradireita.

Marighella nasceu em Salvador (baiano como Moura), filho de um operário italiano e de uma mulher negra filha de escravizados —descendente de malês, como eram chamados os africanos muçulmanos, ela nasceu em maio de 1888, nove dias depois da Lei Áurea. A porção da vida de Marighella contada no filme cobre os últimos anos de uma impressionante trajetória de militância, que o levou à prisão e à perseguição política ainda na Era Vargas (1930-1945). Um personagem forjado por circunstâncias de seu tempo e de sua história pessoal, como nota o jornalista Mário Magalhães, autor de Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo, livro lançado em 2012 que serviu de base para o roteiro de Moura e Felipe Braga. “Marighella é fruto da cultura negra da Bahia, da observação e sensibilidade sobre a desigualdade social do país, do acesso a uma educação de extrema qualidade, sintetizada nos anos dele no antigo [colégio] Ginásio da Bahia, da profunda influência que a mãe negra católica e o pai italiano exerceram sobre ele e, por fim, do ambiente político e social do Brasil dos anos trinta″, explica o biógrafo.

Eram tempos de repressão e autoritarismo sob um governo convulso como o de Getúlio Vargas. O mundo vivia os ventos do autoritarismo fascista que também chegavam aqui. Havia perseguição a opositores, comunistas, judeus… Marighella se contrapunha à linha dura de Vargas, e depois ao regime militar de 1964. Sua resistência fascinou Moura. Com Seu Jorge no papel do escritor, político e guerrilheiro comunista Carlos Marighella, o filme acompanha a história de seu protagonista entre 1964 —quando ele começa a articular a resistência à ditadura recém-instaurada— e 1969, ano em que é assassinado numa emboscada que envolveu ao menos 29 policiais que o fuzilaram, desarmado, aos 57 anos.

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“Posso resumir o que chamo de marighellismo como minha admiração não só pelos que lutaram contra a ditadura, mas também a resistência dos indígenas contra os portugueses, Palmares, Canudos, as revoltas dos Malês e dos Alfaiates, ambas na Bahia…”, lista o baiano Moura. “Todas essas histórias sempre me fascinaram e me indignaram, sobretudo por terem sido contadas do ponto de vista do poder, do opressor. Marighella representa muito isso, os personagens que tiveram sua história silenciada”.

Moura explica, porém, que, a despeito de seu marighellismo, nunca interessou a ele fazer do longa-metragem uma mera louvação à figura de Marighella. “O filme nasce da minha admiração por Marighella, é claro. Mas não fiz uma hagiografia, a biografia de um santo. Meu trabalho é complexificar, observar qualquer personagem como um ser humano. Sou um ator, é isso que me interessa”, explica. “Quando faço Sergio Vieira de Mello (diplomata que encarnou no filme Sergio) não quero torná-lo um santo, assim como quando faço Pablo Escobar (que ele viveu na série Narcos) não quero fazer um monstro. Apesar de ser um filme político, a porta de entrada são os personagens e suas contradições. Marighella é posto em xeque por vários personagens, o tempo todo.”

O filme estabelece, de diferentes formas, um diálogo com o Brasil contemporâneo. “O maior impacto da chegada do filme de Wagner ao cinema agora é o fato de Marighella ser o antípoda supremo de Jair Bolsonaro”, avalia Magalhães. O jornalista prossegue: “As ideias e as ações dos dois se chocam de modo inconciliável. Bolsonaro já defendeu publicamente o emprego de tortura como instrumento legítimo no combate a adversários políticos. Já Marighella foi torturado por 21 dias consecutivos em 1936, e sempre lutou contra a prática da tortura”, diz o escritor. “Bolsonaro também já afirmou que feminicídio é ‘mimimi’, enquanto Marighella defendeu bandeiras históricas do movimento das mulheres. Na Constituinte de 1946, por exemplo, ele propôs a introdução do divórcio na legislação brasileira alegando que quem mais era punido com a inexistência da lei eram as mulheres”, completa.

Há referências que parecem diretamente dirigidas ao Brasil atual, como quando Marighella confronta um colega de partido que diverge sobre como articular a resistência. O interlocutor, vivido por Herson Capri, defende que se deve esperar “que a situação se defina melhor” antes de agir. Marighella provoca: “Com quantos cadáveres uma situação se define?”. A pergunta ecoa fundo no país de mais de 600.000 mortos vítimas de covid-19, boa parte deles por responsabilidade do Governo federal,  segundo a CPI da Pandemia. Obviamente, a fala de Marighella não faz referência à pandemia e tampouco a Bolsonaro, dado que as filmagens se encerraram em fevereiro de 2018, bem antes das eleições, e o filme foi exibido pela primeira vez em 2019, no Festival de Berlim, um ano antes do primeiro caso da doença confirmado no Brasil.

“Sempre tive consciência de que falar de Marighella e dos que, como ele, resistiram à ditadura é falar dos que resistiram antes dele e dos que resistem no Brasil de agora”, diz Moura. “Toda vez que vejo a forma como os movimentos sociais abraçaram o filme, sinto que acertei”, diz. Para ele, um filme é a conjunção entre o que o realizador pensou e como o público vai assisti-lo em determinada época. “Quando alguém pensa na pandemia quando assiste ao filme, isso demonstra sua força.”

A própria escolha do elenco aponta para esse desejo de Moura de ampliar a história simbolicamente para além da década de sessenta. O pastor Henrique Vieira (referência no cenário do cristinanismo progressista no Brasil hoje) faz o papel de um padre que dá suporte à Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo de Marighella. Maria Marighella, neta do guerrilheiro, está no filme como a mãe de Carlinhos, filho do protagonista. E, originalmente, o rapper Mano Brown —que em muitos sentidos se afina com as causas e a persona de Marighella — faria o papel que acabou ficando com Seu Jorge.

A troca de protagonistas acabou gerando uma polêmica, por Seu Jorge ter sido apontado como “negro demais” para representar Marighella, que se definia como “um mulato baiano”. “A questão racial está muito presente no filme e na vida de Marighella”, afirma Moura, lembrando o episódio, contado no livro de Magalhães, em que o então deputado Marighella faz um aparte a um discurso de um colega e ouve: “Não permito que elementos de cor como Vossa Excelência se intrometam no meu discurso”. Em todos os momentos do filme em que o guerrilheiro é agredido, as ofensas passam pela cor de sua pele.

O diretor continua: “Marighella veio de uma região negra e levou sua vivência e ancestralidade para sua luta. Quando Mano Brown saiu do projeto, não pensava muito se Marighella tinha que ser mais ou menos preto, não pensava em colorismo. Só sabia que precisava de um ator negro. Hoje, depois de todos os ataques racistas sofridos por Seu Jorge, vejo que acertei sem querer. Porque quando empreteço Marighella, reafirmo sua ancestralidade. E vou na contramão da história do audiovisual brasileiro, que pratica o embranquecimento dos seus personagens.”

Há ainda uma sutil referência a Dilma Rousseff na personagem da atriz Bella Camero, jovem guerrilheira da ALN que chega a encarar a câmera (ou o espectador) a certa altura do filme. O diretor confirma que é uma homenagem à ex-presidenta, mas não só a ela: “Bella (a personagem tem o nome da atriz, o que ocorre com muitos outros no filme) é uma homenagem à Dilma, à Guiomar [da Silva Lopes, militante da ALN] e a todo o conjunto de mulheres que participaram da luta armada. É muito significativo que ela apareça no filme fazendo uma conexão com o movimento feminista hoje”. Sobre o momento em que ela olha para a câmera, Moura diz: “Ela não está sugerindo que ninguém pegue em armas, mas é como se perguntasse, de forma corajosa: ‘Essa foi a minha luta. E você aí?’”.

Marighella conta a história combinando ação e densidade dramática, lição que Moura diz ter aprendido em grande medida com José Padilha, com quem trabalhou nos dois Tropa de elite e em Narcos — e de quem se afastou nos últimos anos por divergências políticas. “Ele me ensinou que você pode fazer cinema político sem deixar de lado o caráter popular, de entretenimento.” Entre suas influências, estão também os irmãos Dardenne (“Gosto como eles filmam gente jovem, meu filme é repleto de jovens”), a obra de Costa-Gavras e A batalha de Argel, filme de 1966 sobre a luta dos rebeldes argelinos contra o domínio francês (“Uma referência tanto para mim como para Marighella, que adorava o filme”). Em sua estreia como diretor, Moura diz que procurou filmar como gosta de ser filmado, focando no ator. “Nas cenas de ação, me distancio do cinema de ação tradicional, não quero filmar o espetáculo, e sim o que está acontecendo com os personagens ali, no meio do tiroteio”.

É dessa perspectiva que ele filma a cena em que um dos guerrilheiros é barbaramente torturado. “Era uma época terrivelmente violenta. E é importante lembrarmos disso aos saudosistas da ditadura hoje, quando temos como presidente um homem que admira Brilhante Ustra, um filho da puta que torturava pessoas na presença dos filhos delas. Mesmo antes do golpe contra a Dilma, eu já percebia algumas mudanças semânticas perigosas, como ‘ditabranda’, ‘movimento de 1964′… Quis enfrentar essa cena de tortura com a maior crueza possível. O incômodo do espectador com a cena era muito importante, porque a realidade era muito pior do que aquilo, e as pessoas precisam saber o que é uma ditadura”, explica Moura. O diretor procurou o máximo realismo e, para definir os detalhes da cena, buscou referências em livros e depoimentos de ex-guerrilheiros. “Gente que foi torturada estava lá no dia da gravação pra dizer como era, como os policiais faziam as perguntas, como era amarrado o fio para o choque elétrico”, conta Moura.

Além das negativas da Ancine aos pedidos dos produtores de Marighella, que acabaram envolvendo o projeto numa teia burocrática, o filme teve dificuldades para conseguir financiamento. O diretor conta que a produtora O2, responsável pelo longa-metragem, recebeu e-mails agressivos de empresas negando patrocínio. “Faziam referências pesadas tanto a mim como a Marighella”, conta o diretor. “Acabamos não usando um centavo via Lei Rouanet”. Mesmo com todos os problemas, Moura conta que nunca deixou de acreditar que estrearia nos cinemas brasileiros: “É foda ter o Governo Federal inteiro contra seu filme, é um jogo bruto. Mas nunca tive medo disso. Enxergo uma superioridade moral muito grande na gente. Em vocês, da imprensa, em nós, artistas, nos democratas todos, não podemos abaixar a cabeça”.

O diretor evoca a cena do filme na qual um dos personagens, no pau de arara, ensanguentado, ouve de um policial que seu grupo tinha perdido e responde: “Não, vocês perderam”. Moura desenvolve: “Todos esses movimentos, Malês, Alfaiates, Palmares, entraram para a história como derrotados. Mas o que seria do Brasil sem esses homens e mulheres que não se dobraram? Os nossos personagens sempre se impõem moralmente à repressão. Quando aquele homem amarrado diz ‘vocês perderam’ está apontando para o futuro, para a semente daquela luta, que segue viva. Então, na verdade, Marighella não foi derrotado.”

Wagner Moura em 29 de novembro de 2021, em São Paulo. SEBASTIAO MOREIRA (EFE)

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