Psicanálise explica viral de Wagner Moura com seu camarão e ‘Marighella’. Por Christian Dunker

No Uol

Estive na ocupação Carolina Maria de Jesus, para acompanhar o lançamento do filme “Marighella”, de Wagner Moura. Era uma tarde de chuvisco na zona leste, enquanto Claudia nos explicava como as ocupações não tomam os terrenos das pessoas e lá criam suas casas. Há todo um conjunto de regras que impedem, por exemplo, a construção de casas de alvenaria, que privilegiam terrenos abandonados ou com impostos atrasados e dívidas elevadas com o Estado.

Muita gente desconhece como as ocupações são lugares de refúgio e retiro para quem perdeu tudo, são uma forma de readquirir aquilo que para a psicanálise é uma condição simbólica fundamental: sentir-se pertencendo a um lugar.

Um lugar é uma figura simbólica, um endereço, uma posição a partir da qual podemos ser reconhecidos e consequentemente existir para o Outro.

Muitos dos que trabalham nas ocupações não residem efetivamente neste lugar. Mas na medida que integram o movimento podem migrar de uma ocupação para a outra, transferindo tecnologia jurídica, culinária e ambiental para novos agrupamentos. Por isso, ocupações são tão sensíveis a presença de cozinhas coletivas e escolas.

Há uma consciência de que é preciso aprender a se relacionar com o Estado que tem certas regras incompreensíveis para distribuir recursos e aplicar leis.

Uma ocupação não pretende erguer casas onde havia um terreno abandonado, mas forçar a negociação com o poder público e eventualmente com os proprietários, para encontrar uma solução para o déficit habitacional de grandes metrópoles.

Prédios, áreas para construção de casas ou conjuntos habitacionais serão escolhidos conjuntamente, desde que o Estado se encarregue de solucionar o problema.

No fundo as ocupações são uma estratégia para que o Estado faça o que tinha que fazer desde o início, contando com a quantidade de terrenos desocupados ou áreas se serventia social que estão sob sua guarda, posse ou propriedade.

Enquanto esperávamos o início do filme, conversamos com o pessoal que ia chegando neste barracão especial, decorado para a ocasião, com carinho e os recursos disponíveis. Havia biscoitos, bolo de milho, guaraná e pipoca, mas o que tornava o lugar realmente bacana era o acolhimento das pessoas.

Pessoas humildes que se esforçavam para nos deixar à vontade, no verdadeiro sentido da hospitalidade, como condição primeira e elementar para toda experiência de escuta possível, como tenho escrito.

Minha filha repara no número de pessoas trans, confirmando que as ocupações são lugares onde os que sofrem com a falta de lugar estão em casa.

Logo depois chega Guilherme Boulos.

Não, ninguém que estudou na USP e vem da classe média saberá o que é nascer em uma ocupação e viver com o pé no barro e o medo da corredeira da chuva.

Mas, realmente precisamos saber para transformar? Que tipo de saber é realmente necessário para que nos autorizemos a mudar? Quanto de alteridade precisamos para nos implicarmos em uma experiência que não é a nossa?

O filme começa e ficamos sabendo que Wagner Moura e o elenco do filme estão vindo de uma atividade no centro de São Paulo. A apreensão toma conta do público, no total, umas mil pessoas. Trânsito em São Paulo, chuva, sete da noite. Mas não contávamos com duas horas e quarenta de filme a nosso favor.

O filme justifica sua fama de mais assistido no Brasil desde o início da pandemia.

Planos marítimos à parte, o grupo dos terroristas desperta empatia, mas nem sempre. Como uma espécie de Tropa de Elite às avessas, agora se trata de mostrar que a coragem da resistência pode ser errática, desprovida de estratégia, mas ainda assim digna em seus propósitos.

Maoísta, trotskista ou leninista, pergunta o repórter francês.

Brasileiro, responde seu Jorge.

O público aplaude.

Rapidamente percebemos como o filme encampa a alegoria do Brasil que não para de não passar, o Brasil da violência policial, da miséria, do descaso, mas também da resistência, da luta e da coragem dos que só perdem quando desistem.

Mas a grande controvérsia, que introduz uma torção no interior deste circuito fechado e repetitivo, que vai dos anos 1960 aos dias de hoje é a reapropriação simbólica dos signos de nossa história.

Em outras palavras: vale a pena tentar re-vestir a camisa amarela da seleção brasileira de futebol?

Tem graça ainda o hino nacional?

Precisamos ainda desta polícia, prisão e educação moral e cívica, ou queremos simplesmente um mundo sem tal tipo de signo, um mundo, onde, digamos, eu possa escolher a música que para mim, ou para meu grupo, é o novo hino nacional?

Vamos entregar o Brasil a estes que se apossaram dele, ou vamos reocupar os lugares e signos simbólicos que foram usurpados?

Fazer uma nova história do zero é sempre tentador, mas não seria exatamente este tipo de rasura que estamos enfrentando como manipulação da história ao gosto do freguês, de tal forma que quem tiver mais freguesia leva?

Marighella é preto, assim como Jesus Cristo, nos conta o querido pastor Henrique Viera, companheiro de outras tantas viagens políticas.

Ele chegou a tempo, exausto, para discutir o filme com as pessoas. Antes de entrar no palco improvisado pela excelente CineB Solar, que trouxe tecnologia para exibir o filme em um telão gigante, mesmo sob chuva.

Guattari dizia que o cinema é o divã do pobre. Concordo com a ideia desde que entendamos que o cinema é uma máquina de produzir sonhos e desejos e que um pobre se defina pelo seu desejo, não por sua privação.

Portanto, quando Wagner Moura é criticado por Flávio Bolsonaro, por comer a tal quentinha de camarão, é exatamente a síntese do que o filme e a ocupação querem questionar.

A crítica diz que pobre tem que se comportar como pobre e tem que ficar no lugar de pobre e tem que pensar como pobre.

Só que este pobre é o que Henrique Vieira (que representa o padre Henrique no filme) chamaria de “pobre imaginário” criado pela mente condominial da elite brasileira. É este lugar simbólico que o significante “camarão” viola.

Neste sentido, não creio que é uma resposta suficiente lembrar que se trata de uma marmita de R$ 27, doada pela Aracajazz local.

Assim como o Jesus histórico é bem diferente do Jesus imaginário que podemos inventar para o consumo do preconceito ou da violência local, o pobre imaginário não come camarão, não viaja para fora do país, nem assiste filme em telão.

Isso tudo é coisa de falsos pobres, de pobres impostores, de amigos que se fazem passar por pobres para enriquecer pelo dinheiro ou pela fama.

Os pobres imaginários são todos iguais entre si, assim como seus falsos amigos, os comunistas imaginários e seus antecedentes históricos, os terroristas imaginários.

Estes pobres imaginários não têm nem mesmo o direito de desejar enriquecer. Devem permanecer apaixonados pela sua própria condição, como se a tivessem escolhido.

Por isso ainda prefiro ocupar o Brasil e apoiar aqueles que se dizem simplesmente brasileiros, e a sonhar o sonho comum, que eles sonharam, no qual todo mundo tem direito a sonhar e a comer camarão.

A diferença entre Marighella e o nacionalismo patriótico ufanista, que nos levou até aqui não é só pretume, pé no barro ou violência irracional que recai sobre os protagonistas, mas a capacidade de sonhar para todos ou só para alguns.

Imagem: Reprodução Divulgação

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