Analistas veem assassinato brutal do jovem congolês como consequência da banalização da violência contra minorias, alimentada pelo discurso do próprio governo Bolsonaro.
Por Thomas Milz, Deutsche Welle
A brutalidade do assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, de 24 anos, espancado com pauladas até a morte num quiosque da praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, gerou uma onda de indignação no Brasil. Milhares expressaram seu horror nas redes sociais usando hashtags como #JustiçaparaMoise” e #JusticaPorMoiseMugenyi”.
As cenas do crime, registradas pelas câmeras de segurança do quiosque, chocaram o país. Segundo a família, o congolês, que fugiu em 2011 com seus parentes da guerra na República Democrática do Congo, teria sido morto após cobrar o pagamento de dois dias de trabalho no quiosque.
As imagens mostram vários homens batendo em Moïse com uma ripa de madeira e um taco de beisebol e amarrando-o em seguida. Três homens que trabalhavam no local do crime e no quiosque vizinho, identificados como agressores através do vídeo, foram presos.
Para a deputada do PSOL Talíria Petrone, racismo e xenofobia andam de mãos dadas neste caso. “Não há dúvida de que ele foi vítima do racismo, da xenofobia e de uma sociedade cada vez mais intolerante. Que cada vez mais banaliza violências como essa”, comenta a parlamentar negra em entrevista à DW.
Para Petrone, o governo de Jair Messias Bolsonaro tem sua parte nessa tragédia, por ser tão “racista, intolerante e xenófobo”. O presidente “faz piada com povos indígenas e quilombolas, exalta o autoritarismo e a tortura e aplaude a truculência contra a população negra e favelada”. “Bolsonaro é a própria representação de uma política que reforça o racismo e a xenofobia que vitimou Moïse Kabagambe”, afirma a deputada.
Para o sociólogo Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Uerj, o caso revela a banalização da violência no Brasil, onde bater em alguém para “ensinar uma lição” é considerado normal e legítimo. “Espancar não é nada incomum. O que não é tão comum é que esse espancamento resultou na morte. Mas o espancamento, infelizmente, é comum.”
Protestos contra racismo e xenofobia
Segundo Cano, o que chama a atenção é a grande comoção que o crime despertou na sociedade brasileira. Ele afirma que, enquanto em outros países a morte de um migrante atrai menos atenção do que a de um cidadão local, no Brasil ocorre o contrário.
Foi justamente o fato de Moïse ser migrante, estrangeiro e negro que chamou a atenção, de acordo com o especialista. “A consciência do racismo está crescendo, e portanto quando há uma vítima negra, ostensivelmente negra como um congolês, isso gera uma reação mais forte. E também essa questão da consciência da fragilidade, da ideia de que pessoas como ele são mais vulneráveis.”
No último sábado, milhares de brasileiros protestaram em todo o país contra o racismo e a xenofobia. Também houve protestos em frente à embaixada brasileira em Berlim. Esse é um sinal claro, de acordo com a deputada Talíria Petrone.
“As manifestações têm demonstrado não ser mais possível conviver com crueldades como essa e tantas outras que tiram o nosso sono, destroem famílias inteiras, dilaceram o coração e a alma de mães que perdem seus filhos para a violência de um Estado racista.”
Para o teólogo Rodolfo Capler, pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP, o alto interesse do público mostra que a sociedade brasileira é sensibilizada por movimentos estrangeiros como o Black Lives Matter.
Segundo ele, principalmente a geração mais jovem está aberta para esse “impulso mundial”. “Essa geração, que chamo de geração selfie, é a geração mais inclusiva da história”, diz Capler. Ao mesmo tempo, ele ressalta que o Brasil vive um aumento da violência contra minorias sob Bolsonaro, alimentado pelo próprio discurso do governo.
Racismo cotidiano em vez de democracia racial
Para Capler, a violência racista cotidiana é a prova de que a teoria de uma democracia racial que supostamente prevalece no Brasil não procede. Criada pelo sociólogo Gilberto Freyre na década de 1930, ela afirma que o racismo seria progressivamente reduzido pela crescente mistura de raças.
Segundo o teólogo, isso não aconteceu. “O racismo nosso de cada dia usa uma roupagem de democracia racial. Mas aqui não há uma democracia racial. Negar isso é uma forma de camuflar o racismo, de negar a realidade.”
A prefeitura do Rio agora quer dar o exemplo e fazer um memorial a Moïse no local do crime. Para isso, os dois quiosques serão convertidos num espaço de celebração de cultura de países africanos. O prefeito Eduardo Paes também cedeu um deles, o Tropicália, à família da vítima nesta segunda-feira. A mãe de Moïse e os quatro irmãos estão autorizados a gerir o quiosque até 2030. Já o quiosque Biruta, que fica ao lado, onde o congolês também prestava serviços, será passado à família de Moïse após definição de uma disputa judicial, conforme o prefeito.
Ignacio Cano elogia a resposta rápida da prefeitura, sublinhando que a medida é, ao mesmo tempo, uma providência de apoio à família da Moïse. “Isso manda um sinal para futuros casos: essas não são pessoas que se mata com facilidade, são pessoas que têm valor.”
A deputada Talíria Petrone também saúda a iniciativa da prefeitura, mas também expressa preocupação: “É difícil imaginar como essa família vai conseguir atuar e viver num espaço onde um dos seus foi espancado até a morte.”
—
Imagem: O imigrante congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, espancado até a morte no Rio de Janeiro no dia 24 de janeiro. Foto: Reprodução Facebook