38 anos, 31 enquadros

Por Gil Luiz Mendes, da Ponte

Em maio ainda faz muito calor em Pernambuco. Lembro disso desde os meus catorze anos. Naquele mês do ano de 1998, eu senti o chão quente no meu peito. Era a primeira vez que eu levava um baculejo, como a gente chama no Recife, o que, em outros lugares do Brasil, também pode ser conhecido como geral ou enquadro. Todas são definições para definir abordagens policiais, geralmente violentas e quase sempre empregadas contra pessoas negras.

Depois dessa estreia, vieram exatamente 30. Sim, você não leu errado. Estou prestes a completar 38 anos e, por mais de três dezenas de vezes, fui parado na rua por policiais que queriam saber para onde eu estava indo, se tive alguma passagem pelo sistema prisional ou apenas porque me acharam suspeito de algo. Posso relatar todas elas, algumas com riqueza de detalhes, mas vou poupá-los de ler tudo isso.

Mas boa parte dessas abordagens me retomaram a memória esta semana quando escrevi a matéria sobre o estudo feito pelo CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) que apontou que, na cidade do Rio de Janeiro, pessoas negras são as que tomam o maior número de enquadros pela polícia. Ao ler os dados e ouvir os relatos de cariocas que passaram, passam e passarão por essa experiência, percebi que mesmo não morando na capital fluminense, aqueles números e histórias se parecem comigo.

Era uma manhã de sábado quando uma blazer preta da Rádio Patrulha da Polícia Militar de Pernambuco parou ao meu lado. Freada brusca, uma arma de cano longo e um grito: “deita no chão”. Sem camisa, bermuda larga deixando aparecer a cueca e chinelos, obedeci. Estava a menos de trezentos metros da minha casa. Voltando da casa de um amigo com um fita cassete em dos bolsos. 

Um grito feminino soou: “Deixa o menino. Ele é de família e mora aqui na rua”. Depois de ser revistado e respondido algumas perguntas, os policiais foram embora. Boca seca, pernas bambas e olhos cheios de água. Engoli o choro. 24 anos se passaram e o mesmo nó na garganta vem ao recordar a primeira vez que a polícia desconfiou de mim.

Faltavam poucos minutos para hora do almoço e antes de mesmo de chegar em casa a notícia já tinha chegado aos ouvidos da minha mãe. Tomei um esporro. Quem manda não se vestir direito e andar feito um maloqueiro por aí? Esse talvez fosse o motivo para se tornar suspeito de ter participado do assalto a padaria que ocorreu horas antes.

Tempos depois, já jornalista e cobrindo o dia a dia das delegacias da região metropolitana do Recife para o principal programa policial do rádio pernambucano, fui parado quando voltava de carro para casa depois de uma jornada de trabalho.  Uma viatura que não era do batalhão de trânsito estava escondida atrás de uma esquina. Um agente fez sinal com a mão e sinalizou para que eu parasse. Pediram documentos e que eu descesse do carro. Olharam o porta luvas, porta malas, debaixo dos bancos. Extintor de incêndio vencido há dois meses. Falaram que isso poderia me prejudicar. Porém, fui informado que poderia haver uma $olução. 

Me neguei. Essa foi a única que precisei usar da função que exercia para algo fora do expediente de trabalho. O comandante do batalhão que cobria o bairro em que morava era uma boa fonte e gostava bastante de ter o nome citado na imprensa. Tinha o seu número salvo no meu telefone. E essa foi a salvação. Depois de três telefonemas, a contra gosto, me liberaram.

Em um domingo que vi a vitória do meu time contra seu principal rival no campo do adversário, eu tomei três enquadros. Um no ônibus que levava ao jogo, outro na porta do estádio e um último dentro do bar onde fui comemorar o título de bicampeão pernambucano. Um baculejo para cada gol marcado pelo Santa Cruz naquele dia.

A PM de SP, estado onde moro atualmente, também já me apresentou suas credenciais. Noite de boemia em bairro de classe média da zona oeste da capital. Madrugada em horas avançadas. A caminho do terminal de ônibus para pegar o noturno, um casal de brancos bêbados que gritavam alto uma música em inglês passou por uma viatura, um rapaz alto com jeito de estrangeiro também, mas o carro com o giroflex no teto só parou quando me viu.

Por ter perdido o RG, andava com a carteira de trabalho no bolso justamente para enfrentar aquele tipo de situação. Homens negros que estão lendo este texto neste momento entendem sobre o que estou falando. O histórico laboral escrito a mão e carimbos naquele caderninho azul me livrava mais uma vez das mãos insólitas que acabara de passar por diversas regiões do meu corpo.

Ser negro no Brasil é ter todas as respostas na ponta da língua, é fazer gestos menos bruscos, é olhar para uma viatura e não encarar para quem está lá dentro ao mesmo tempo que transparece calma e torce para que sua forma de andar não seja enxergada como suspeita. Ter essa cor, neste país, é servir de desculpa para dizer que a polícia está fazendo apenas o seu trabalho.

Ilustração: Junião / Ponte

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