Guerra escancara racismo do jornalismo ocidental (e brasileiro). Por Fausto Salvadori

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Na véspera da invasão russa à Ucrânia, do outro lado do Oceano Atlântico, no Rio de Janeiro, a jornalista e escritora Gizele Martins fez uma postagem sobre os problemas que enfrentava naquele dia por conta por conta de uma operação policial no complexo de favelas da Maré, onde mora. Relatos como o dela e de outros moradores da comunidade fazem lembrar os relatos que diversos ucranianos têm feito do seu cotidiano em meio à guerra: postos de saúde e escolas fechadas em meio a tiroteios, bombas, disparos de helicópteros, famílias assustadas, crianças traumatizadas, execução de civis, militares invadindo e destruindo casas.

Mas com algumas diferenças.

A primeira é que nas favelas brasileiras ninguém tem bunker para se esconder e nem condições de fugir para se refugiar em outro lugar. E outra: as vítimas da violência nas favelas e periferias das cidades brasileiras não podem contar com a empatia e a solidariedade mundial reservada aos ucranianos. Nem mesmo dos que vivem ao seu lado. O tweet em que Gizele desabafou, contando como não se pode nem comprar um pão na padaria ou fazer uma cirurgia ou exame agendado em dia de operação policial, gerou apenas comentários negativos, acusando a jornalista de hipocrisia por denunciar o sofrimento dela e dos seus.

Nada comove tanto o jornalismo ocidental, incluindo o brasileiro (porque os brasileiros se acham parte do Ocidente, ainda que o Ocidente nos vejo como meros latino-americanos), como o sofrimento de pessoas brancas, identificadas com os valores da “civilização” e da cultura europeia. Desde que a guerra à Ucrânia começou, todas as emissoras de TV e boa parte dos sites de notícia foram inundados com os relatos humanizados da dor ucraniana. Todos os dias, em todas as horas, acompanhamos centenas de histórias contando como estão vivendo, comendo, dormindo e se movimentando, tudo o que se passa em seus cotidianos alterados do dia para a noite por um conflito armado. E está certo. O jornalismo tem mais é que trazer esse tipo de denúncia. Mas chama a atenção que não chegue nem perto de fazer o mesmo quando as vítimas não são brancas.

Pegue a invasão ao Iraque em 2013, por exemplo. Em vários sentidos, foi um ataque que lembrava muito a ação feita pela Rússia de Vladimir Putin. Tratava-se de uma invasão unilateral e injustificável de um país soberano, comandada por uma potência nuclear acostumada a perseguir e eliminar seus desafetos — é só lembrar dos milhares de civis executados pela guerra dos drones norte-americana, da prisão de Guantánamo ou da perseguição ao jornalista Julian Assange por denunciar crimes de guerra executados pelos EUA. A cobertura da guerra ao Iraque, inclusive no Brasil, nunca chegou perto de usar o mesmo esforço massivo para buscar humanizar os iraquianos, mostrar suas perdas e dores (nem havia uma disputa entre os comentaristas políticos para ver quem demonizava mais em suas falas o governo que liderava a invasão, como hoje). Ainda que às vezes fossem mostrados como vítimas, os iraquianos recebiam pouco espaço na cobertura, e por isso suas figuras soavam mais distantes e exóticas, menos humanas, menos dignas de empatia. E nunca eram mostrados como heróis. Afinal, gente armada e resistindo só é bonita se for branca — a mídia ocidental que romantiza ucranianos carregando fuzis e montando coquetéis molotov é a mesma que demoniza palestinos armados com pedras e foguetes.

Diversos atos falhos de jornalistas e comentaristas ocidentais deixaram claro que a comoção com o sofrimento ucraniano vem do fato de ser visto como um sofrimento branco, europeu.  “Este não é um lugar, com todo o respeito, como o Iraque ou o Afeganistão, onde há décadas de conflito. Esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia – tenho que escolher essas palavras com cuidado também –, onde você não esperaria que isso acontecesse”, disse o repórter Charlie D’Agata, da CBS News.  “É muito tocante para mim porque estou vendo europeus loiros e de olhos azuis sendo assassinados”, revelou o ex-procurador geral adjunto da Ucrânia, David Sakvarelidze

Apenas o racismo explica que seja possível sentir tanta empatia por um grupo de seres humanos em sofrimento e tanta indiferença por outros seres humanos em condições tão parecidas. A crença de que alguns humanos são mais humanos do que outros e de que o universo estaria destinado a protegê-las da dor: é disso que se trata. Quando os únicos verdadeiramente humanos, os que têm a pele branca e são identificados com “a civilização” e os valores europeus, se tornam alvo de algo tão indigno como tiros e bombas, estamos diante de um horror que parece desafiar as leis mais sagradas da natureza.

Já o sofrimento que ocorre com os não brancos é visto como normal. “Estamos no século 21, em uma cidade europeia, e temos disparos de mísseis de cruzeiro como se estivéssemos no Iraque ou no Afeganistão, dá para imaginar!”, indignou-se o jornalista francês Ulysse Gosset. No parlamento espanhol, o deputado Santiago Abascal defendeu que os refugiados ucranianos mereciam ser recebidos na Europa, porque eram muito diferentes dos “jovens de origem muçulmana” que buscavam a mesma acolhida — e foi aplaudido por isso.

É a mesma reação diante do sofrimento negro no Brasil. Pense no absurdo que foi a morte de três meninos negros pela polícia do governo Rui Costa (PT) em Gamboa, Salvador (BA), na última terça-feira. Quem não acompanha os veículos regionais do estado ou não lê a Ponte Jornalismo dificilmente tomou conhecimento desse crime.

A dor negra não sai no Jornal Nacional. Porque é considerada não só natural, mas justificável. Como se vê na atitude do repórter Lisboa Júnior, da Rede Bahia, afiliada da Globo, que, diante de uma mulher negra que denunciava o extermínio de Gamboa, simplesmente pergunta: “Ele tinha envolvimento?”.

Na sua resposta, a mulher rebate, cheia de dignidade: “Ô moço, não importa isso agora no momento. Porque, se eles pegou em algum erro, a obrigação dos policiais era levar preso, não matar à queima-roupa”. Em duas frases, uma aula de direitos humanos e devido processo legal. Que muitos jornalistas no Brasil deveriam receber.

Silvana perdeu o filho Alexandre, morto pela PM baiana | Imagem: Felipe Iruatã

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