O cheiro. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Sente o cheiro? Não sei do que é, mas sei que não é coisa boa. Nada que é bom fede. É cheiro perigoso. De coisa do mal. Daquele que está em todo lugar. Sente? Sentiu agora? Ele meio que vai e volta. Mais forte, mais fraco. Não sei de onde vem. Acho que de todo lugar. E de lugar nenhum. Aqui é o espalhado do cheiro. O lugar da pestilência. Está sentindo?

Olha, ficou mais forte. Acho que vem dali, daquele cara ali. Aquele que atiça fogo na floresta. Que matou gente para depois matar árvore e bicho. Aquele que aponta uma arma para a cabeça do fiscal solitário. Acho que é o cheiro da fumaça. Ou do bicho queimado. Ou do corpo podre do índio baleado. Ou de tudo junto. Está sentindo? Está vendo?

Espera! O vento! Vem de onde? Trouxe o cheiro de outro lugar. Está sentindo? Acho que é dali, daquele preto de mãos para cima. Tomou um tiro agora! Bem ali, onde tem polícia e traficante se matando. Está ouvindo? Falam que a bala veio do policial. Escuta? Dizem que o tiro veio de bandido. Não escuto direito. Tem gente no asfalto aplaudindo alto porque gostam quando preto morre de tiro em favela. Dizem que é menos um. Está sentindo?

Como não? Está tão forte! Acho que é dali. Dali, ó! Lá daquela escola suja e quente. Aquela do professor ressentido. Que uns acham que é fracassado, outros que é coitado. Aquele que ensina o que ninguém quer aprender. Porque não veem futuro nas coisas que podem saber mas só nas que podem fazer. Que nem no dono da loja, que tem carrão porque faz gente trabalhar mas não sabe nem falar direito. Ou o youtuber sem cultura e caráter que virou político fazendo de conta que é piedoso e matador de bandido. Acho que é cheiro de indiferença. Ou de boçalidade. Está sentindo?

Pode ser daquele hospital ali, está vendo? Aquele do médico que chega no carro caro e o paciente chega de ônibus. Está sentindo? Deve ser o cheiro da doença. Ou do sofrimento. Ou do nojo que se tem por aquela gente doente. Ou da gente doente que ameaça o médico. Acho que é o cheiro de éter, morte, dor, medo e raiva, tudo junto. Está sentindo? Está vendo?

Que é isso? Vem dali. Daquele canto. Perto do cara com cara de mau e o braço estendido. Aquele ali, que foi para a Ucrânia aprender com os nazistas de lá como ser nazista aqui. Ou será dos que estão perto dele, dizendo que não é nada disso? Que é só o jeito dele. Que é exagero. Liberdade de expressão. Ou perseguição injusta do gay que ele quer espancar. Talvez seja do sujeito de bíblia na mão ao lado dele. Que o abençoa enquanto trocam dicas sobre a melhor arma para se comprar.

Agora, está sentindo? Acho que está mais forte. Não sei de onde vem. Acho que é daqui. Vê no bolso. Aí, no celular. No que aparece nele. No cancelamento. Na lacração. Na mitagem. Na entrevista do mendigo pegador. Na pantomima vazia. Na manchete sensacionalista. Na mentira disfarçada de patriotismo e na burrice fantasiada de inteligência.

Como não sente? Deve ser seu nariz. Constipado. Entupido de medos, sofrimento

Ilustração: Mihai Cauli

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