Carta ao general Mourão: investigar o passado é nossa garantia de futuro. Por Jamil Chade

No UOL

General Mourão,

Com uma risada, o senhor humilhou a democracia e esnobou a possibilidade de uma investigação sobre crimes cometidos pelo estado, alegando que aquilo fazia parte da história. Que isso tudo já teria passado.

Quando as marcas da tortura ainda estão frescas na alma, passou para quem?

Quando estamos presenciando no século 21 atos que rimam com aqueles de 1964, de qual história estamos falando?

Sim, aquelas vozes nos áudios que revelam a tortura durante o regime militar já morreram. Mas não as vozes das vítimas e nem a da liberdade.

Lidar com o passado é um direito de uma sociedade. De fato, ao optar por não olhar para crimes do passado, o senhor está cometendo uma violação de direitos: a negação da Justiça.

Lidar com o passado não é apenas para passá-lo a limpo. Mas um dos instrumentos mais poderosos para prevenir atrocidades futuras. Pelo mundo, um dos melhores índices de previsão de violência numa sociedade é como ela lidou com atrocidades no passado. Nisso, nosso passado nos condena.

Na África, Europa, América Latina e em tantas outras regiões do mundo, reconhecer e investigar o passado serve como alicerce para garantir a resiliência de uma nação contra eventuais crimes.

Países mais propensos a viver períodos de turbulência, golpes e opressão são justamente aqueles que, em tempos de paz, não criaram os mecanismos necessários para monitorar violações de direitos humanos. Nisso, nosso presente também nos condena.

Investigar o passado não serve apenas para ampliar os detalhes em livros de história sobre algo que ficou para trás. E sim para criar uma consciência clara de uma recusa a ceder diante da opressão e censura.

Investigar o passado é sinalizar a uma sociedade que existe uma aposta clara de que o futuro nos reserva dias melhores.

Durante o período de ditaduras, a desumanização foi uma das estratégias mais profundamente adotadas para minar qualquer resistência. Hoje, recuperar a verdade é o único caminho para humanizar uma sociedade.

Reconhecer os crimes do passado é parte fundamental de nosso futuro. Dar nomes aos criminosos, explicar os mecanismos de tortura e as estratégias de silenciamento são pilares de um processo lento de construção de um estado de direito.

General, o senhor sugeriu que não há o que apurar, já que os supostos suspeitos não estão vivos.

A investigação de um crime do estado, entretanto, não faz sentido apenas se o acusado está vivo. Ela é uma exigência sempre que a democracia estiver viva.

E vamos lutar diariamente para que ela não faça parte do passado. Caso contrário, nosso futuro nos condenará.

Saudações democráticas

Jamil.

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