A cura. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

O cheiro volátil de hospital que lembra limpeza e doença parecia mais forte. A mesa de centro preta guarnecida com poltronas de um vermelho sangue contrastavam com a brancura dos outros móveis e paredes. Doutor Xavier precisou de alguns goles de água para tirar o engasgo da garganta. Revezou a água com goladas curtas de um café que parecia morno. Parecia seguir um ritual ou ganhar tempo para organizar as ideias. Respirou fundo e foi direto ao assunto. “Não sei o que fazer.”

A equipe o olhava entre a resignação e a surpresa. O experiente doutor Xavier sempre tinha respostas. Diagnosticava só de olhar o paciente, diziam. Nas situações difíceis, o que tranquilizava a equipe era a certeza de que o doutor saberia o que fazer.

– O quadro é instável. O Executivo está, mais uma vez, atacando o Judiciário. Desta vez com atos formais. Uma piora evidente no quadro institucional. O Legislativo está, há muito, disfuncional. Orçamento, autarquias e estatais estão capturadas em cadeias de interesses privados. Inflação alta comprometendo alimentação celular. Exames mostram aumento de inflação, desemprego e violência. Caminhamos para um quadro de falência múltipla das instituições.

– Mas, doutor, e os militares? Ao menos para manter o STF funcionando por aparelhos! – Perguntou o residente, arrancando risos dos colegas e um sorriso condescendente de Xavier.

– Não é uma boa ideia. Com militares, não existe esse negócio de “ao menos”. Não sabemos se, uma vez ministrados, mesmo em doses constitucionais, atuarão para salvar ou matar a democracia. O histórico clínico não é bom. Além de sufocarem a democracia, inocularam torturas, prisões, censuras e desaparecimentos com sequelas sentidas até hoje! Além do mais, uma de suas substâncias ativas mais importantes, as armas, não interagem bem com leis e liberdades.

– Doutor, o STF já não vinha funcionando muito bem. Os exames já apontavam arritmias jurisprudenciais cada vez mais frequentes, com aumento de inclinações moralistas e decisões casuístas. Isto já não o deixava vulnerável a este tipo de reação?

– Sim. É também um sintoma da falência institucional. Entenda, o corpo político é um só. Pouco importa qual instituição torna-se disfuncional primeiro, uma vez que deixe de funcionar de forma republicana, afeta às demais. A constituição do corpo político permite o funcionamento do Congresso para atender interesses privados dos parlamentares. O Executivo reage cooptando parlamentares com emendas e posições políticas. Também com arroubos autoritários e corruptos. O Judiciário reage de forma moralista e casuísta. Isto sem falar de uma educação precária, imprensa sensacionalista e cínica, elites escravocratas, cristianismo consumista, racismo, misoginia… Neste estado mórbido político, cada célula do corpo padece e dificilmente se consegue reunir no corpo político forças capazes de reverter este quadro.

– Com uma dose de eleições limpas não conseguimos revertê-lo?

– Eu não sei. Este é um remédio cujo efeito só o tempo dirá. Em todo caso, ele muda o Executivo. Não há grande perspectiva de mudanças no Legislativo, no Judiciário, na mídia, nas elites e nem naquelas células contaminadas de ódio e ressentimento. O corpo político tornou-se autoimune. Reage a si mesmo. Parte dele quer eliminar outras partes. Mas o corpo sem as partes, padece. E poucos parecem se importar com isso.

Pensativo diante da equipe cabisbaixa, bebeu num só gole o resto de café já frio fazendo uma careta que não se sabia ao certo se era pelo desgosto do café ou pelo amargo da situação.

Ilustração: Mihai Cauli

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