Achille Mbembe e o escancaramento dos mundos de morte

“As desigualdades continuarão a crescer em todo o mundo. Mas, longe de alimentar um ciclo renovado de lutas de classe, os conflitos sociais tomarão cada vez mais a forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais”. (Achille Mbembe)

Por: Igor Sulaiman Said Felicio Borck, no IHU

Com intuito de conhecer um pouco mais a obra do filósofo camaronês Joseph-Achille Mbembe, o CEPAT, junto com seus parceiros, através da série de debates Sociedade e Racismo, no dia 24 de maio, realizou a atividade híbrida (online/presencial) Introdução ao pensamento de Achille Mbembe, nas dependências da Escola de Educação e Humanidades, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR.

Para esse debate, contamos com a presença, na condição de debatedores, de Sérgio Luis do Nascimento, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, e Renato Noguera, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ.

Na exposição feita pelos professores Sérgio Nascimento e Renato Noguera, percebemos que as obras de Achille Mbembe propõem um diálogo direto com o legado de Frantz Fanon, em específico com a sua obra Os Condenados da Terra (1961), onde o autor apresenta a violência colonial praticada pelos povos brancos contra os povos colonizados do mundo. Mas Achille Mbembe também dialoga com diversos outros autores importantes para a filosofia, como Hannah Arendt, Michel Foucault, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Martin Heidegger, Georges Bataille, Giorgio Agamben e Elias Canetti.

Segundo Nascimento e Noguera, um ponto de partida fundamental do pensamento de Achille Mbembe é compreender que o colonialismo se baseia em um processo constante de mortalidade. O tempo todo o colonialismo é marcado pela ação de matar e morrer, sem um processo legal, como conhecemos hoje, ou um júri, ou ainda menos um julgamento em termos legais. Na verdade, é um processo violento, onde o “olhar” do branco colonizador já é de condenação dos povos colonizados, considerados inferiores, merecedores da subordinação e até da morte.

Nesse sentido, para Mbembe só é possível falar em filosofia, política, projeto moderno, nova sociedade, se compreendermos o processo colonizador, de dominação do pensamento europeu sobre os povos considerados periféricos do mundo. Para se pensar o hoje e o amanhã, é necessário entender os efeitos da colonização na filosofia, no pensamento humano. A filosofia precisa se conectar mais com a história para entender os desdobramentos do processo histórico de colonização, passando a olhar o mundo a partir da periferia, fugindo das armadilhas do projeto iluminista, que falseou a exploração e escravização de povos inteiros.

Outra obra de Fanon que inspira o pensamento de Mbembe é Pele negra, máscaras brancas (1952), que denuncia e torna explícita a forma como as populações brancas embutiram nas populações negras uma noção estética, social, política e econômica de que a cultura negra é feia, inferior, desorganizada e suja. Nas palavras de Fanon, incutem no povo negro a ideia de “epidermização da inferioridade”, um processo pelo qual, através da cor pele, se incute nos povos negros a noção de inferioridade.

Durante a exposição, Nascimento e Noguera também citaram uma das primeiras obras de sucesso de Achille Mbembe, Sair da grande noite: Ensaio sobre a África descolonizada (2010), que apresenta a ideia de que por muito séculos a humanidade viveu sob o domínio colonial, uma forma de dominação arcaica baseada no conceito de raça, e que o fim desse processo colonialista foi libertador para os povos colonizados, mas deixou marcas importantes para entendermos a contemporaneidade, principalmente no que diz respeito à incapacidade da humanidade em “fazer comunidade”.

Segundo Nascimento e Noguera, Mbembe acredita que agora é o grande momento da filosofia se refazer, olhando para esse processo de descolonização e apostando todas as suas fichas nos “povos descolonizados”, apostando na razão negra em contraposição à razão branca estabelecida, ou seja, pensar que um novo paradigma de humanidade pode ser construído a partir da cultura e dos valores dos povos periféricos do mundo, como, por exemplo, os povos indígenas e negros.

Para Nascimento e Noguera, é nesse sentido que a obra de Mbembe, Crítica da razão negra (2013), coloca em contraposição a razão branca, europeia e racista à razão negra, descolonizada e nova, portanto, pronta para ser utilizada para construir um novo discurso para a modernidade. Sendo assim, Mbembe propõe que entendamos a razão negra como uma alternativa à razão branca, e que utilizemos essa oportunidade para de fato contestar o discurso moderno do pensamento europeu, e pensar formas alternativas para o projeto renovador de humanidade.

De acordo com Nascimento e Noguera, outro autor fundamental para a formação do pensamento de Achille Mbembe foi Michel Foucault, principalmente com o conceito de biopoder, expresso nas obras História da Sexualidade (1976) e Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France 19781979 (1979). A partir dessa noção inspirada em Foucault, e para dar continuidade às discussões iniciadas na obra Sair da grande noite: Ensaio sobre a África descolonizada (2010), Mbembe desenvolve seu conceito de necropolítica, expresso em sua obra Necropolítica (2011).

Necropolítica remete à ideia de “deixar morrer”, ou seja, a ideia de políticas de morte, que visam deixar com que populações indesejadas simplesmente morram sem que nada seja feito para evitar essa morte, dessa maneira, podemos chamar de necropolítica toda e qualquer política que vise a morte das pessoas, seja por ações diretas ou indiretas, do Estado e da Sociedade, que levem à morte dos indivíduos, ou no mesmo sentido a omissão que também leve os indivíduos à morte.

Portanto, Achille Mbembe propõe ir além do conceito de biopoder de Foucault, que pode ser entendido como formas de controle dos corpos dos indivíduos por parte do Estado e da Sociedade. Com o conceito de necropolítica, procura abarcar várias formas contemporâneas de política que criam espaços de morte, por exemplo, as políticas públicas mal desenhadas e gerenciadas sem atender as necessidades básicas dos indivíduos, seja na saúde, educação, emprego, renda, moradia ou alimentação, criando espaços sociais de morte. É o Estado tornando as pessoas vulneráveis à morte.

Segundo Nascimento e Noguera, a necropolítica se apresenta como o modo operacional do capitalismo contemporâneo, em sua fase neoliberal. Quando olhamos para o Brasil, fica visível a necropolitica em nosso cotidiano, por exemplo, no caso das operações polícias no Jacarezinho, no Rio de Janeiro, em 2021, que terminou com 28 mortos, e o caso mais recente na operação na Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, também no Rio de Janeiro, que que terminou com 21 mortos. O Estado, deliberadamente, oferece a política pública da morte e do extermínio para a população mais carente e vulnerável.

Nascimento e Noguera também destacaram outra obra de Achille Mbembe, chamada Brutalismo (2020), que ressalta a lógica extrativista capitalista que domina nossa sociedade, em que os recursos naturais são extraídos de maneira predatória, obedecendo a lógica neoliberal. Segundo Mbembe, a “humanidade se tornou uma força geológica, assim, não podemos mais falar da história como tal”, ou seja, a combinação do necropoder, que se dá através da necropolítica, combinada com o brutalismo evidenciam as marcas de nossa época, uma combinação terrível entre políticas de morte e destruição da natureza e dos recursos naturais.

Em seu trabalho intelectual, Mbembe tem se mostrado um pensador fundamental para entendermos os sinais de nosso tempo, um tempo em que os corpos das pessoas viram mercadorias, quando não são meramente descartados. Seu pensamento é fundamental para termos um melhor diagnóstico de nosso tempo, para compreender as contradições de nossa sociedade.

Nas palavras de Noguera: “à medida que se declara a possibilidade de descartabilidade das pessoas, o ser humano é incluído num mundo de morte. O que não é necessariamente uma novidade, o processo colonial cometeu genocídios e produziu zonas de longo alcance de trabalhos forçados. A tese mbembeana está justamente no carácter inédito do alargamento dessas zonas de morticínio. No contexto necropolítico, os mundos de morte têm jogos que colocam a vida em risco para muitos contingentes o tempo todo. A tribo eleita protegida desses mundos diminui sempre. O colóquio agora tem uma regra: prove que você merece permanecer vivo”.

Portanto, segundo os professores Nascimento e Noguera, a questão da raça ainda se coloca no centro do debate. São as populações negras e periféricas as mais vulneráveis nesse sistema de morte e de destruição ambiental perpetrado pelo capitalismo neoliberal.

Eis a íntegra da exposição e debate:

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