Por uma esquerda que seja antirracista para além das hashtags

Newsletter da Ponte, por Fausto Salvadori

Se havia alguma dúvida de que a centro-esquerda brasileira que está no poder não aprendeu nada com os protestos antirracistas realizados após as mortes de George Floyd e Beto Freitas e que continua desprezando a luta de negros e indígenas, ela se dissipou no último dia 2 de junho.

Neste dia aconteceu a 82ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Secretários de Segurança Pública. Representantes de todos os 26 estados e do Distrito Federal tiveram ali uma oportunidade de enfrentar a principal arma da violência racista cometida todos os dias pelas polícias brasileiras: a prática do que os magistrados chamam de buscas pessoais, mas que as ruas conhecem como enquadro, geral ou baculejo.

A oportunidade havia sido dada por uma decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, determinando que a polícia não poderia mais dar enquadros como prática de “rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, que só serve para perpetuar o racismo estrutural da sociedade brasileira, mas somente com base em indícios concretos. E o que aconteceu? Os secretários de segurança de todo o Brasil, naquele 2 de junho, decidiram que não iriam seguir a determinação do STJ — aproveitando um entendimento jurídico de que não era uma decisão vinculante e que, portanto, eles poderiam, se quisessem, continuar de boa com a prática dos enquadros em suas polícias como sempre fizeram.

A decisão foi unânime, conta a repórter Jeniffer Mendonça. A polarização entre direita e esquerda, tão mencionada por analistas políticos, não compareceu à reunião. Somente uma outra, mais antiga, entre entre tradição autoritária e direitos humanos, entre branquitude no comando e negritude na resistência. Todos os governos estaduais apoiaram a decisão, inclusive aqueles comandados por partidos considerados de centro-esquerda: PT, PSB, PDT. O secretário de segurança Ricardo Mandarino, do governo Rui Costa (PT), da Bahia, fez questão de defender a decisão, dizendo: “É impossível a polícia deixar de fazer a abordagem de suspeitos, sob pena de comprometer a segurança pública”.

Assim, a esquerda que está no poder nos estados, e que pretende retomar o poder no governo federal, deixou claro que simplesmente não está nem aí para a luta antirracista. Por não saber trabalhar de outra maneira, os governadores decidiram manter a prática de violência policial racista que mais atinge pessoas negras em seu cotidiano.

Em 2019, segundo o dado mais recente disponível, as polícias fizeram 15 milhões de enquadros só no Estado de São Paulo, que tem 46 milhões de habitantes. Se essas abordagens fossem distribuídas igualmente, significaria que um terço da população teria sido considerada suspeito e revistada pela polícia do seu estado ao longo de um único ano. Uma situação claramente absurda, parecida com a que o alienista Simão Bacamarte vivencia no conto de Machado de Assis: após trancafiar a maior parte da cidade em seu manicômio, o médico se dá conta de que não é possível que a maioria da população seja louca e que, portanto, o verdadeiro insano só poderia ser ele. Se a maioria da população é considerada criminosa pela polícia, então o verdadeiro criminoso é quem policia.

Mas a gente, ao contrário de Bacamarte, se acostumou a normalizar o absurdo. E tem um motivo para isso: a escolha dos alvos das abordagens policiais. Se a cada ano um terço da população fosse de fato revistada pela polícia, os enquadros gerariam mais indignação do que a alta da gasolina e seriam criticados por todas as vozes que falam pela opinião pública do país, dos âncoras dos programas de TV aos influencers de todo tipo. Isso só não acontece porque os enquadros são planejados para atingir as vidas que menos importam, a dos negros e pobres dos bairros periféricos, poupando a minoria branca e privilegiada que manda no país.

Não faltam estudos que comprovam o caráter seletivo e racista dos enquadros — todos citados no voto do ministro Rogério Schietti, relator da decisão do STJ. Em seu livro A política do enquadro, a pesquisadora da USP Jessica da Mata apontou que, na cidade de São Paulo, jovens negros de 15 a 17 anos são sete vezes mais abordados pela polícia em relação ao restante da população. Na cidade do Rio de Janeiro, 63% das pessoas negras já foram alvo de enquadros, embora correspondam a 48% da população, e 17% relatam que já foram parados pela polícia mais de dez vezes, segundo o estudo Elemento Suspeito, coordenada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).

A própria Polícia Militar paulista admite o caráter racista do policiamento quando um de seus comandantes diz que o policial deve fazer “uma abordagem diferente” no Jardins (um dos distritos mais brancos da cidade, com apenas 8,5% de pretos e pardos, segundo o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo) do que costuma praticar na periferia.

Consulte as pessoas à sua volta e você vai corroborar facinho esses dados. Fiz o teste aqui na redação da Ponte. Eu, que sou branco, nunca fui revistado pela polícia fora do meu trabalho jornalístico. O repórter Gil Mendes, negro, já passou por 38 enquadros, e falou sobre eles aqui.

Nada disso, é claro, tem qualquer relação com controle da criminalidade. Dos tais 15 milhões de enquadros feitos pelas polícias paulistas, apenas 125.304 (meros 0,8%) resultaram em prisões em flagrante — e, dadas as denúncias sobre presos sem provas que costumamos trazer a público aqui na Ponte, principalmente pela repórter Elisa Fontes, aposto que uma porcentagem ainda menor desses casos correspondia a criminosos de verdade.

Faz sentido. Qualquer um que já tenha visto um filme policial sabe que a busca por criminosos se faz por meio de um trabalho de investigação, a partir de provas e levantamento de informações. Quantas vezes você viu Sherlock Holmes ou as equipes das séries de CSI abordando aleatoriamente pessoas negras nas ruas para encontrar assassinos?

No Brasil, investigação é algo que cabe às Polícias Civil e Científica, que, não à toa, costumam ser os patinhos feios dos orçamentos de segurança pública. É que nunca foi sobre crime. Sempre foi sobre controle racial e social dos negros e pobres.

Existe, ainda, um lado violento dos enquadros que não aparece em pesquisas quantitativas. Os policiais costumam adotar gestos e falas para humilhar seus alvos, não apenas para ter o controle da situação, mas para ensinar. O enquadro é, antes de tudo, pedagógico: uma ação disciplinadora sobre corpos negros e pobres. Quando xingam e quando batem, quando fazem sua vítima baixar a cabeça para a violência irracional fardada, os policiais estão ensinando qual é o lugar do Estado e da branquitude e qual é o lugar dos negros e da pobreza na sociedade. É um jeito de passar adiante a velha lição de manda quem pode e obedece quem tem juízo.

Pelo que a reunião de 2 de junho revelou, todos os governadores, da direita à esquerda, acreditam que não podem governar sem abrir mão de seguir ensinando a velha lição do racismo para seus governados.

“Entre esquerda e direita, continuo preta”, disse Sueli Carneiro. Na entrevista ao podcast Mano a Mano, com Mano Brown, ela lembrou que essa frase nunca foi a defesa de uma atuação política para além dos conceitos de esquerda e direita (papo de quem tem vergonha de se dizer de direita), mas uma crítica à esquerda que não age como tal. “Nosso problema com a esquerda é que a esquerda não é suficientemente radical. E, para compreender como a questão racial organizou a estrutura de poder da sociedade brasileira, tem que radicalizar muito”, disse no podcast.

Pois essa radicalização estará encarnada, nas eleições deste ano, no projeto Quilombo dos Parlamentos, da Coalizão Negra por Direitos, que apoia 100 pré-candidaturas de pessoas ligadas ao movimento negro que concorrerão a cargos no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas. Uma iniciativa que merece todo o apoio. Só mesmo escurecendo a política é que o Brasil passará a ter uma esquerda que seja antirracista não apenas nas hashtags, mas no mundo real das políticas públicas.

Fausto Salvadori é diretor de redação da Ponte.

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