No Informe Ensp
O número especial da revista Saúde em Debate, que tem como tema ‘Saúde, Agrotóxicos e Agroecologia’, foi construído para contribuir com um debate estratégico, direcionado para aprofundar a compreensão de abordagens teóricas, práticas e epistemológicas. Para os editores científicos convidados Guilherme Franco Netto, Aline do Monte Gurgel e André Campos Burigo, buscou-se refletir sobre a relação entre esses elementos e o campo da saúde coletiva, na perspectiva de promover uma transição em direção a sistemas alimentares que propiciem justiça socioambiental, segurança e soberania alimentar e nutricional, territórios sustentáveis e a saúde.
A publicação reúne manuscritos com as seguintes temáticas: agronegócio no Cerrado; territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde; exposição aos agrotóxicos em municípios mato-grossenses; produção de soja, agrotóxicos e participação na saúde ambiental no Uruguai; consumo e impactos de agrotóxicos na Colômbia; mulheres lavradoras e os agrotóxicos na agricultura familiar; agrotóxicos e saúde de trabalhadores rurais em Pernambuco; empoderamento e construção coletiva ante situações de risco no uso de agrotóxicos; saúde coletiva e agroecologia; plantas medicinais em agroflorestas na promoção de territórios saudáveis e sustentáveis; agricultura familiar e alimentação escolar no Rio Grande do Norte; compra de alimentos da agricultura familiar para alimentação escolar no Brasil; exposição infantil aos agrotóxicos no município do Rio de Janeiro; comercialização de agrotóxicos e o modelo químico-dependente da agricultura do Brasil; pulverização aérea de agrotóxicos em uma comunidade rural em contexto de conflito; benefícios fiscais aos agrotóxicos, sustentabilidade da agricultura e a saúde no Brasil; Territórios Saudáveis e Sustentáveis no Distrito Federal: agroecologia e impacto dos agrotóxicos; saúde coletiva e agroecologia: sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis; vozes e fazeres do semiárido: convites à descolonização do campo científico; toxicologia crítica aplicada aos agrotóxicos; soberania alimentar, estratégia terapêutica para recuperar a saúde diante do avanço do extrativismo agroindustrial; saúde mental, direitos humanos e justiça ambiental: a ‘quimicalização da vida’; promoção da saúde e resistência camponesa; agroecologia e saúde coletiva na construção dos agrotóxicos como problema de saúde pública no Brasil; da pandemia à agroecologia; produtividade do agronegócio e suas externalidades sob a ótica do biopoder; agrotóxicos e desenvolvimento de câncer no contexto da saúde coletiva; Covid-19 e a fome: futuro agroecológico; agroecologia na agenda brasileira de políticas públicas; desastres socioambientais e sanitários do agronegócio; agrotóxicos, desfechos em saúde e agroecologia no Brasil; saúde e saneamento de uma comunidade quilombola no entorno da capital do Brasil; Chácara Bindu, uma experiência de agroecologia; vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos; feiras orgânicas enquanto política de abastecimento alimentar e promoção da saúde; resenhas dos livros ‘Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores’, de Juliana Santilli, e ‘Saúde, ecologias e emancipação: conhecimentos alternativos em tempos de crise(s)’, de Marcelo Firpo Porto, Diogo Ferreira Rocha e Marina Tarnowiski.
Vários artigos contam com a participação de pesquisadores da ENSP.
Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos, de Francco Antonio Neri de Souza e Lima, Marcia Leopoldina Montanari Corrêa e Silvia Angela Gugelmin, fala das etapas que envolvem a cadeia produtiva de commodities agrícolas produzem possibilidades diferenciadas de vulnerabilidade nas populações, afetando a situação de saúde dos povos indígenas. O uso de agrotóxicos é uma atividade intrínseca aos monocultivos. A exposição a essas substâncias gera desfechos negativos agudos e crônicos na saúde humana e contaminação no ambiente. De modo a contribuir com o debate no campo da Saúde Coletiva, o texto direciona as discussões ao estado de Mato Grosso, onde estão vários povos indígenas, enfrentando a produção de commodities e desfechos em saúde relacionados com os agrotóxicos. Para isso, os autores recorrem à determinação socioambiental do processo saúde-doença, organizando uma matriz de indicadores que enfatizam as escolhas e as omissões do Estado nas questões ambientais, incorporando historicidade nos processos de adoecimento. Os impactos da cadeia de commodities agrícolas e as exposições por agrotóxicos em territórios indígenas são um problema intersetorial que se vincula à violação de direitos humanos, direito à terra, à saúde e à segurança alimentar e nutricional. As respostas devem ser consideradas em uma perspectiva articulada entre os setores econômico, político, ambiental e da saúde, com participação e decisão da população indígena nas etapas dos processos.
Exposição aos agrotóxicos, condições de saúde autorreferidas e Vigilância Popular em Saúde de municípios mato-grossenses, artigo de Wanderlei Antonio Pignati, Mariana Rosa Soares, Stephanie Sommerfeld de Lara, Francco Antonio Neri de Souza e Lima, Nara Regina Fava, Jackson Rogério Barbosa e Marcia Leopoldina Montanari Corrêa, analisou o perfil sociodemográfico e condições de saúde da população residente em municípios mato-grossenses entre 2016 e 2017. Trata-se de estudo qualiquantitativo de base populacional, autorreferido. Entrevistaram-se moradores adultos, com base em questionário com 172 questões, referentes às informações familiares e individuais. Aplicaram-se 1.379 questionários válidos, totalizando 4.778 indivíduos. A maioria referiu morar em áreas urbanas em distâncias inferiores a 1 km das áreas de lavoura (98%), baixa escolaridade (43%), renda menor que 3 salários mínimos (68%) e utilizar agrotóxicos de uso doméstico (71,8%). As morbidades mais citadas foram: problemas respiratórios, intoxicações agudas, transtornos psicológicos, doenças renais e cânceres. Identificou-se a subnotificação de intoxicações por agrotóxicos de 1 para 20 casos em Campos de Júlio; 1 para 77 casos em Campo Novo do Parecis e 100% de subnotificação em Sapezal. Encontraram-se associações entre as variáveis sociodemográficas e de exposição aos agrotóxicos e as morbidades referidas, considerando o p-valor=0,05 e nível de significância de 95%. O uso crescente de agrotóxicos associado a cenários políticos e econômicos favoráveis ao agronegócio demonstraram a importância da Vigilância Popular em Saúde, pois ela é uma estratégia do Sistema Único de Saúde que permite evidenciar os impactos negativos causados na saúde humana e ambiental.
No artigo Investigando os olhares da saúde coletiva sobre a agroecologia, Lorena Portela Soares, Rosely Magalhães de Oliveira e Danielle Ribeiro de Moraes abordam que a agroecologia tem sido objeto no campo da saúde coletiva/pública de maneira crescente nas duas últimas décadas no Brasil. Conforme o tema ganha relevância, importa verificar como o campo tem abordado a agroecologia, tendo em vista a persistência de tendências à redução e ao esvaziamento no processo de apropriação de conceitos ao campo. Artigos científicos da saúde foram analisados por procedimentos da análise de conteúdo e da análise do discurso, atentando aos sentidos e temas mais recorrentes, bem como às ausências nas abordagens sobre agroecologia. Resultados mostram que abordagens de tendência mais normativa/regulatória da saúde coletiva tendem a se associar à vertente mais técnica da agroecologia; silenciamentos sobre legitimidade da origem ‘tradicional’/’indígena’/’popular’ e sobre o protagonismo das mulheres na construção do conhecimento agroecológico; a importância histórica de movimentos populares na constituição desse campo científico; e, ainda, apontam o reconhecimento da agroecologia enquanto um campo que, como o da saúde coletiva, está em disputa. Fazem-se considerações sobre a redução da agroecologia a um sistema ecológico de produção que ‘naturalmente promove saúde’ e possíveis repercussões para cooptação da pauta agroecológica pelos discursos hegemônicos. Reflete-se sobre a importância da apropriação crítica de conceitos no diálogo entre os campos.
Em Impactos da pulverização aérea de agrotóxicos em uma comunidade rural em contexto de conflito, Lucinéia Miranda de Freitas, Renato Bonfatti e Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos buscaram analisar o contexto social, institucional e ambiental da contaminação humana e ambiental por agrotóxicos, via pulverização aérea, por meio do estudo de caso de uma comunidade atingida, incluindo a possibilidade de os agrotóxicos serem utilizados como arma química em região onde há conflitos por terras e territórios. Como metodologia, utilizou-se o estudo de caso sobre a pulverização ocorrida no Assentamento Raimundo Vieira III, Gleba Gama, Nova Guarita-MT. No caso estudado, há indícios de intencionalidade no processo de contaminação das famílias, principalmente considerando que estas já vinham sofrendo outras agressões. O estudo mostrou a ineficiência, intencional ou não, dos aparelhos públicos tanto na investigação e responsabilização dos envolvidos quanto no atendimento das pessoas contaminadas. Conclui-se que o método de pulverização aérea é ineficiente com perdas elevadas, só podendo justificar sua adoção por razões econômicas em detrimento da racionalidade técnica e dos princípios de prevenção e precaução. O Estado não consegue manter efetivamente a fiscalização do uso de agrotóxicos, e há uma ampliação dos riscos vinculados aos agrotóxicos com as mudanças legais que têm sistematicamente ocorrido desde 2015.
Fim dos benefícios fiscais aos agrotóxicos, sustentabilidade da agricultura e a saúde no Brasil, de Wagner Lopes Soares, Lucas Cunha e Marcelo Firpo Porto, avaliou o fim dos benefícios fiscais dados aos agrotóxicos a partir dos microdados do Censo agropecuário de 2017. Realizou-se um estudo descritivo explorando duas variáveis pesquisadas: a despesa com agrotóxicos e o lucro obtido com a atividade agropecuária. Foram traçados cenários de aplicação de alíquotas de tributação dos agrotóxicos e os seus respectivos aumentos de preços, o que possibilitou avaliar os impactos diretos na lucratividade dos produtores. O cenário de tributação que gere um aumento de 15% nos preços dos agrotóxicos reduziria a lucratividade em cerca de 5,1% em 2017 (R$ 4,8 bilhões). Contudo, os maiores impactados seriam os produtores de commodities, com uma redução média de 9,6% na lucratividade. Discutiram-se esses resultados à luz de dois prismas: o impacto na renda do produtor e possíveis consequências no aumento de preços da cesta básica; e a capacidade da função extrafiscal do imposto em regular o uso dos agrotóxicos e redirecionar possíveis mudanças na tomada de decisão sobre os métodos de controle de pragas mais sustentáveis. Concluiu-se que há necessidade de harmonizar regras fiscais à uma política pública mais equilibrada no âmbito do setor agropecuário que garantisse a defesa da saúde da população e a sustentabilidade ambiental.
Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS) no Distrito Federal: agroecologia e impacto dos agrotóxicos, de autoria de André Luiz Dutra Fenner, Vicente Eduardo Soares de Almeida, Karen Friedrich e Ana Paula Andrade Silva Milhomem, diz que o modelo agrícola predominante no Brasil apresenta disparidades sociais, econômicas e ambientais acentuadas. Tal cenário consiste em um grande desafio para o avanço da agroecologia, um dos caminhos apontados pelas Nações Unidas para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e o desenvolvimento territorial de forma sustentável. Assim, o estudo teve como objetivo analisar os limites e os desafios na implantação de estratégias territoriais sob a ótica dos Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS), tendo como eixo estruturante a controvérsia agroecologia x agrotóxicos. O artigo enfoca sua análise na Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (Ride-DF), na forma de pesquisa do tipo prospectiva, com revisão de literatura e recolha documental pertinente. Conclui-se que, a despeito do seu potencial, são escassas as informações sobre a temática, especialmente na efetividade e eficácia da estratégia de implantação dos TSS e o uso da agroecologia como suporte. O estudo depreende ainda que há a necessidade de aprofundar a realização de novas pesquisas e a construção de estratégia de intervenção territorial sob a ótica dos TSS.
Toxicologia crítica aplicada aos agrotóxicos – perspectivas em defesa da vida, de Karen Friedrich, Aline do Monte Gurgel, Marcia Sarpa, Cheila Nataly Galindo Bedor, Marília Teixeira de Siqueira, Idê Gomes Dantas Gurgel e Lia Giraldo da Silva Augusto, enfoca a toxicologia aplicada aos processos regulatórios tendo como base central a linearidade das relações entre a dose e o efeito e a possibilidade de estabelecer condições de exposição seguras. Isso ocorre apesar das limitações apontadas pela literatura científica. A concepção, a definição das metodologias e a condução da avaliação de risco dos agrotóxicos acabam por atender aos interesses econômicos e à definição de cenários de segurança distantes da realidade. As limitações metodológicas dos estudos exigidos para fins de registro de um agrotóxico envolvem: a desconsideração das interações entre as misturas utilizadas; a não previsão de curvas dose-resposta não lineares (horméticas); a compartimentalização dos desfechos analisados; a exposição nos períodos críticos do desenvolvimento; e a desconsideração do contexto, das diversidades individuais, coletivas e dos territórios expostos aos agrotóxicos, entre outros aspectos discutido nesse ensaio. A toxicologia crítica propõe que a avaliação toxicológica parta da integralidade do problema no contexto apresentando propostas que podem ser adotadas nos processos de regulação de agrotóxicos e outras substâncias potencialmente perigosas.
Saúde mental, direitos humanos e justiça ambiental: a ‘quimicalização da vida’ como uma questão de violação de direitos humanos decorrente da intoxicação institucionalizada, de Eduardo Torre e Paulo Amarante, tematiza o problema das consequências sociossanitárias e ambientais do círculo vicioso que liga violação de direitos humanos, insegurança alimentar e intoxicação institucionalizada, principalmente em relação aos efeitos sobre a saúde mental decorrentes dos contaminantes ambientais e dos agrotóxicos. O modelo predatório do capitalismo pós-industrial nasceu vinculado a fatores centrais, como: a agricultura químico-dependente, a medicalização social e a transição nutricional, associadas à mercantilização perversa dos recursos naturais. A expansão de monoculturas de larga escala com uso de agrotóxicos e outros contaminantes ambientais, a expansão da indústria farmacêutica e da tecnificação médica, e a expansão do modelo de alimentação industrial aditivada são consequências associadas a esses fatores que estão interligados. Além disso, esse processo é estimulado e reproduzido de forma institucionalizada e legalizada e vem produzindo múltiplas violações de direitos humanos e o aprofundamento de diversas formas de intoxicação e adoecimento: esse modelo pode ser denominado de ‘paradigma da quimicalização da vida’.
Da pandemia à agroecologia: redes de solidariedade na construção de um novo paradigma socioecológico, artigo de Carolina Burle de Niemeyer e Vicente Carvalho Azevedo da Silveira, considera que a pandemia da Covid-19 exacerbou as crises social e ambiental em andamento. Neste ensaio crítico, enfatiza-se o impacto do neoextrativismo e, em especial, do agronegócio nesse processo, e reivindica-se a urgência de uma transição para novas ontologias socioecológicas como caminhos fundamentais para a manutenção da vida e do futuro (próximo) do planeta. A partir do questionamento sobre a validade do retorno à (a)normalidade, lançado pelo ‘Pacto Social, Ecológico, Econômico e Intercultural para a América Latina’, procurou-se mostrar como movimentos sociais de viés agroecológico do Brasil vêm transformando a crise em oportunidade para o fortalecimento da ‘solidariedade ativa’ entre o campo e a cidade, contribuindo para o avanço em direção ao paradigma ecossocial.
Exposição a agrotóxicos e desenvolvimento de câncer no contexto da saúde coletiva: o papel da agroecologia como suporte às políticas públicas de prevenção do câncer, de Marcia Sarpa e Karen Friedrich, observa que, atualmente, a agricultura brasileira é caracterizada pelo crescente consumo de agrotóxicos e fertilizantes químicos, inserindo-se no modelo de produção baseado nos fundamentos do agronegócio. As novas técnicas de cultivo baseadas no agronegócio resultaram na expansão das monoculturas sobre os ecossistemas naturais, com o consequente desmatamento, desequilíbrio e perda da biodiversidade; e o aumento da contaminação do solo, da água e do ar pelos agrotóxicos. No que tange à saúde humana, a literatura científica tem demonstrado que a contaminação química decorrente do uso de agrotóxicos na agricultura implica adoecimento dos trabalhadores rurais expostos ocupacionalmente aos agrotóxicos, dos moradores da área rural, além de consumidores de alimentos contendo resíduos de agrotóxicos. Entre os efeitos sobre a saúde humana associados à exposição a agrotóxicos, os mais preocupantes são as intoxicações crônicas, caracterizadas por infertilidade, abortos, malformações congênitas, neurotoxicidade, desregulação hormonal, imunotoxicidade, genotoxicidade e câncer. Sendo assim, neste ensaio, apresenta-se uma revisão narrativa com dados presentes na literatura científica nacional e internacional referentes à associação entre a exposição a agrotóxicos e o desenvolvimento de câncer no contexto da saúde coletiva e o papel da alimentação saudável e da agroecologia como suporte às políticas públicas de prevenção do câncer.
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Foto: Matheus Alves