Reconhecidas pela ONU, apanhadoras de flores (MG) ainda vivem sob ameaças e falta de políticas públicas

José Odeveza, na Terra de Direitos

É na região do Alto Jequitinhonha, em Minas Gerais, que vive a maioria das comunidades tradicionais de apanhadoras e apanhadores de flores sempre-vivas. São centenas de famílias que ao longo de séculos, realizam a coleta de flores nativas do Cerrado e mantêm o cultivo ancestral de roças e criação de animais. Reconhecidas internacionalmente como importantes agentes de conservação da biodiversidade na região, as comunidades vêm sofrendo nos últimos anos com encolhimento de seus territórios, o avanço da exploração minerária e a monocultura do eucalipto; além do risco constante de proibição da panha de flores, prática milenar que leva sustento para as comunidades e, ao mesmo tempo, garante proteção do bioma. 

O sistema agrícola das apanhadoras e apanhadores de flores sempre-vivas abrange cerca de 20 comunidades, boa parte quilombolas, estabelecidas na região há séculos e hoje situadas nos municípios de Bocaiúva, Olhos D’Àgua, Diamantina, Buenópolis, Couto Magalhães, Serro e Presidente Kubitscheck, todos nas terras mineiras. As (os) apanhadores de sempre-vivas se intitulam guardiões tanto das sementes das flores como de outras plantas agrícolas tradicionais. 

A disputa pelo espaço por empreendimentos minerários, monocultura de eucalipto,  parques de proteção integral do meio ambiente e posses privadas, contra o direito das comunidades que ali vivem por anos tem se acirrado. E as barreiras para que as práticas milenares das apanhadoras não sejam desempenhadas começam logo naquilo que é basilar para o modo de vida tradicional na região – a panha de flores. 

No campo da preservação ambiental, as apanhadoras são reconhecidas como o primeiro Patrimônio Agrícola Mundial do Brasil concedido pela Organização das Nações Unidas (ONU) a partir de sua agência que atua na temática de Alimentação e a Agricultura (FAO) denominado Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (SIPAM). Este certificado reconhece os patrimônios agrícolas desenvolvidos por povos e comunidades tradicionais em diversas partes do mundo. 

  • Segundo a FAO estes sistemas de patrimônio agrícola são caracterizados pela combinação de quatro elementos: biodiversidade, ecossistemas resilientes, conhecimento tradicional e uma valiosa herança cultural, ou seja, a identidade de vida das apanhadoras e apanhadores são elementares para a preservação ambiental da região. 

No entanto, este reconhecimento internacional não é suficiente para garantir segurança ao modo de vida das apanhadoras. Segundo a Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex), os principais conflitos estão relacionados à sobreposição das terras de uso comum pelas comunidades com a  criação dos Parques Estaduais de Proteção Ambiental do Rio Preto e do Pico do Itambé e do Parque Nacional das Sempre Vivas. Desde a criação de parques de proteção ambiental integral, em 2002, a Serra virou território proibido para as e os apanhadores de flores. 

Segundo a liderança da comunidade quilombola Mata dos Crioulos, Jovita Maria, a relação da coleta de flores e a preservação ambiental faz parte do modo de trabalho das apanhadoras. “Meus pais faziam e aprendemos com eles. Quando chegava a hora de colher as sempre-vivas, a gente colhia. E quando todo mundo saía da chapada que era colocado um fogo leve e controlado para que os matos não tomassem a serra. Hoje está de um jeito que dentro do Parque, o mato está acabando com as flores.” 

Estudos da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) mostram que os mais de 90 tipos de flores sempre-vivas já identificados foram preservados pelas comunidades. A contribuição está na técnica ancestral de fazer a coleta, prática da agroecologia, rotatividade no plantio das roças e o uso de sementes crioulas, cultivadas ao longo de gerações. 

Na tentativa de mitigar o problema de acesso a serra dentro da sobreposição dos territórios pelos parques de proteção ambiental, tramita até hoje uma discussão com os órgãos de fiscalização ambiental da necessidade de um termo de acordo que garanta o acesso das comunidades para a realização da coleta das flores. No entanto, as tratativas para assegurar a prática tradicional que deveriam ter sido aceleradas com o recebimento do Selo da FAO, em 2020, até o momento não foram concluídas. 

Para a assessora jurídica do Programa Cerrado da Terra de Direitos, Alessandra Jacobovski, o termo de acordo, apesar de não ser um instrumento jurídico definitivo, pode trazer maior segurança para a prática de apanhar flores, já que, “formaliza o manejo tradicional em unidades de conservação de proteção integral e assim contribui para evitar processos de criminalização de lideranças e comunitários. Porém, é preciso avançar no sentido do estabelecimento de um instrumento jurídico capaz de assegurar o uso definitivo dos territórios tradicionais sobrepostos às unidades de conservação, segundo os usos e procedimentos estabelecidos nos protocolos de consulta e acordos comunitários”.

Regularização fundiária parada

Um dos cenários possíveis para a diminuição dos problemas enfrentados pelas comunidades tradicionais de apanhadoras e apanhadores de flores seria a regularização fundiária dos territórios. Mas na mesma sintonia do governo Federal, gerido por Jair Bolsonaro (PL), praticamente nada caminhou nos últimos anos em benefício das comunidades, apenas  avanço de empreendimentos e da grilagem. 

Na Comunidade de Raiz – quilombo a pouco mais de 55 km de Diamantina (MG) – as famílias vivem ameaçadas pelo risco de terem o território dividido ao meio pela venda das terras da região à posse privada. A apanhadora de flores e liderança do quilombo, Erci Alves, conta que desde de 2019 uma placa e cercas sinalizam que parte do seu território é de propriedade privada.

“A proibição apareceu de um dia pro outro. Querem nos impedir de transitar dentro do nosso território, inclusive em áreas de passagem para o caminho da Serra onde realizamos a panha de flores. Além disso, querem nos proibir de tirar lenha que serve para aquecer os nossos fogões, e também, querem proibir a retirada de  esterco que utilizamos para adubar nossas plantações. Tudo isso para o plantio de eucalipto em toda a área. Isso pode acabar com a forma de vida da comunidade”, conta a quilombola. 

A pouco mais de 80 km dali, a situação de incerteza é semelhante. Na Comunidade quilombola de Vargem do Inhaí – certificada pela Fundação Palmares – cerca de 28 famílias de apanhadores almejam fortemente a titulação do seu território que está parada. O território comunitário está inserido na zona de amortecimento do Parque Nacional das Sempre-Vivas, com área de sobreposição de cerca de 6 mil hectares. 

Para a coordenadora da Codecex, Tatinha Alves, o risco da proibição de apanhar as flores “acaba com a biodiversidade da serra, já que as apanhadoras não podem desempenhar seu papel como agentes de uso consciente das flores e também com as práticas tradicionais das comunidades”.

Falta de políticas públicas

Além da falta de garantia para a prática de apanhar as flores que leva sustento para as comunidades e sem a regularização dos territórios para segurança da moradia, o cenário de acesso a políticas sociais básicas também é crítico. Segundo a liderança da Comunidade Vargem do Inhaí, Adalea Santana, “não existem escolas e nem transporte público para ir às escolas em outras regiões, a mesma coisa acontece com os postos de saúde”. 

A maioria das famílias da Comunidade Vargem do Inhaí planta lavouras, utilizando o sistema denominado roça-de-toco, onde são cultivadas hortas. As famílias criam galinhas, porcos, gado de corte e leiteiro, praticam a pesca no rio Jequitinhonha, e cultivam cana-de-açúcar para produção artesanal de melaço e rapadura. A Comunidade ainda domina conhecimentos tradicionais sobre ervas medicinais. E é a partir dessas práticas que as famílias dão continuidade à vida diante de  violações aos seus direitos.

Em maio deste ano, as comunidades quilombolas das apanhadoras de flores assessoradas pela Codecex e pela Terra de Direitos receberam a visita da Procuradoria da República no Município de Sete Lagoas (MG) para relatar as principais reivindicações das comunidades. 

A visita surge a partir de edição da Resolução n.º 230/2021 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) voltada a disciplinar a atuação do Ministério Público junto aos Povos e Comunidades Tradicionais. Entre as suas determinações consta a obrigação do órgão em realizar visitas periódicas aos territórios “para o acompanhamento de demandas e apresentação de informações, sem prejuízo da realização de reuniões na sede do órgão para a mesma finalidade ou casos urgentes”. O intuito é que a Procuradoria cobre as instituições públicas a justificarem a ausência na implementação dos serviços e tomem medidas para o avanço das políticas públicas, sob pena de serem responsabilizadas.

Segundo a coordenadora da Codecex, Tatinha Alves, as principais demandas relatadas ao Ministério Público estão relacionadas “à falta de infraestrutura para acesso às comunidades – que atualmente estão extremamente precárias – a instalação de energia elétrica, implementação de sistema de abastecimento de água e esgoto, transporte escolar, pavimentação de vias, ampliação de bolsas quilombolas para universitários”.

Para a assessora jurídica Alessandra, o Ministério Público Federal precisa também incidir nas questões que envolvem as ameaças de empreendimentos, sobretudo a mineração, que invadem os territórios, dificultando o manejo tradicional das Sempre-Vivas e depredando a biodiversidade e os recursos naturais locais. Essa situação é agravada pela morosidade dos órgãos em concluir os processos de regularização fundiária das terras quilombolas.

“A distância do órgão [MPF] da realidade e dos problemas locais dificulta o avanço no atendimento das demandas, o que resulta na ausência da implementação de políticas e serviços públicos, na morosidade de regularização territorial e na permanência de ameaças aos territórios, comunidades e lideranças locais”, explica a assessora jurídica.

Recentemente o estado de Minas Gerais publicou a Resolução Conjunta nº 01, de 4 de abril de 2022, que regulamenta a consulta prévia, livre e informada no Estado. Na avaliação de organizações e povos e comunidades tradicionais do estado, a proposta de Resolução foi construída sem participação popular, o que viola diretamente diversos aspectos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Feito à portas fechadas, a norma cria diretrizes de como a consulta aos povos tradicionais deve ser realizada quando houver medidas públicas e privadas que impactem seus modos de vida e territórios. Saiba mais. 

Além disso, também tramita na Assembleia Legislativa de Minas o Projeto de Lei 3601/2016, que trata sobre as terras devolutas estaduais, muitas dessas ocupadas por povos tradicionais e que correm o risco de serem colocadas para a regularização sem considerar a existência  desses povos. Outra ameaça desse Projeto, é a brecha para facilitar a regularização de terras griladas, mas que na verdade são territórios tradicionais, tomados pelo agronegócio e pela mineração. Uma nota conjunta da sociedade civil foi enviada à Assembléia pedindo uma discussão aprofundada sobre o tema e a reavaliação do impacto ambiental do projeto. 

Na avaliação de Jacobovski o Governo de Minas “tem manifestado diversas violações contra os direitos de povos e comunidades tradicionais em detrimento ao interesse privado e ao desenvolvimento sem avaliação dos impactos”. E por isso o Sistema de Justiça precisa incidir com toda força pela proteção dos povos tradicionais do estado.

Foto: Maria Eugenia Trombini

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