‘Filhos do MST’ encampam bandeiras de agroecologia, reforma agrária e inclusão

Geração que nasceu ou cresceu em assentamentos tem mais acesso à universidade que seus pais e mira futuro na política

Por Douglas Gavras, da Folha, no MST

A infância de Camilo Ramalho Santana, 24, foi diferente da que a maior parte dos brasileiros teve. Mineiro de Contagem, ele cresceu em um acampamento em Ariquemes, Rondônia, e lembra com nostalgia de seus primeiros anos como militante do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

“Como ficamos acampados por muito tempo, a terra foi repartida mesmo antes da regularização pelo Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. Com o tempo, a gente não estava mais morando na barraca de lona. Não tínhamos acesso a crédito, mas tinha uma escola itinerante. Estávamos mobilizados o tempo todo, pelas ameaças de despejo, mas sempre tinha festa no acampamento”, conta.

Por alguns meses do ano, o jovem deixa sua casa na região Norte e vai para um assentamento do MST na região Sul, conhecido pela produção de arroz orgânico e onde ele faz graduação em história, em parceria com a Universidade Federal da Fronteira Sul. “A universidade vem para dentro do assentamento. Estou no sexto período, de nove.”

Ao comparar a sua geração com a de seus pais, que fundaram o movimento, Santana relembra as diferenças de momentos históricos. “A geração dos anos 80 viveu a ascensão da luta de massas do Brasil e o período da redemocratização. A de agora pega um período de consolidação do agronegócio e da ida do capital financeiro para a agricultura. São lutas diferentes”, diz ele, que participa do plano nacional “Plantar árvores, produzir alimentos saudáveis”.

Fundado em 1984 e tendo a luta pela reforma agrária como um dos seus principais objetivos, o movimento tem hoje 450 mil famílias assentadas e 90 mil acampadas, em 24 estados. Segundo o MST, dos aproximadamente 8,1 milhões de jovens vivendo no campo, cerca de 250 mil estão em assentamentos ou acampamentos.

Pesquisador do MST desde os primeiros passos que dariam na sua fundação, Bernardo Marçano Fernandes consegue perceber rapidamente as diferenças entre pais, filhos e netos.

“Uma das maiores preocupações é que os filhos continuem construindo o movimento e uma das formas de evitar a migração do assentamento para cidade é envolver os filhos e netos no desenvolvimento daquele território.”

O geógrafo da Unesp (Universidade Estadual Paulista) também ressalta que uma das formas de manter as novas gerações no campo se dá pela cultura própria que o MST criou. “O movimento tem um ato cultural que se chama mística e é inspirado nos atos religiosos da igreja progressista. Toda vez em que se faz alguma reunião é feita uma mística para relembrar a história daquelas pessoas permanentemente.”

Fernandes destaca que uma das principais diferenças entre as gerações assentadas é o nível de escolaridade, e compara suas visitas atuais com as viagens que fez por acampamentos na década de 90.

“Naquelas primeiras viagens, entrevistava pessoas que tinham o primeiro grau incompleto e relatavam suas práticas de luta. Agora, encontro com militantes que têm ensino superior, discutem a teoria da luta e fazem debates científicos.”

Dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua apontam que o campo, como um todo, tem ficado mais jovem e escolarizado.

Segundo um levantamento da consultoria IDados, a partir da pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística): o total de trabalhadores rurais, não apenas do MST, com até 29 anos é o mais alto desde 2015. No terceiro trimestre de 2021, eles eram 2,2 milhões.

Apesar de ainda serem minoria, os trabalhadores rurais com ensino superior incompleto ou mais dobraram nos últimos nove anos, em patamar recorde. Eles eram 189,8 mil no terceiro trimestre de 2012. No mesmo período de 2021, já somavam 389,8 mil.

A possibilidade de acesso à educação é considerada uma das questões mais importantes para que o jovem permaneça no campo.

Quem acompanha de perto esse movimento é a educadora e estudante de licenciatura Edinalva Monteiro, 26, que cresceu no movimento e vive há dez anos em um assentamento em Lagoa Grande do Maranhão (MA), com mais cem outras famílias e onde ela é professora de matemática.

Estudante em uma escola rural, ela entrou para o MST na adolescência e conta que hoje dá aulas na escola em que estudou, enquanto lembra como a vida nos assentamentos mudou ao longo dos anos.

“Onde cresci, não tinha acesso à internet e a energia elétrica demorou para chegar. O assentamento mudou muito, a infraestrutura, de forma geral, é bem melhor hoje”, diz.

Sobre a diferença entre as gerações do movimento, ela também destaca o maior acesso às políticas públicas. “Antes, o acesso era mais complicado e sair do campo era praticamente obrigatório. Nossos pais queriam isso para nós. Agora, como resultado das nossas lutas, a gente pode cursar o ensino médio dentro do assentamento, não precisa mais deixar a terra para ter educação.”

O movimento diz que, apesar dos desafios colocados para a educação do campo, foram construídas cerca de duas mil escolas ao longo de quase quatro décadas e o Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária) possibilitou escolarização e acesso ao ensino superior.

Apesar dos avanços, os assentamentos em partes do interior do Brasil têm potencializado os problemas que afetam os moradores do campo, como a desigualdade no acesso à internet de alta velocidade, falta de estradas e insegurança.

NOVA GERAÇÃO COLOCA DIVERSIDADE E AGRICULTURA SUSTENTÁVEL EM PAUTA

Quando a mãe de Kelvin Nicolas, 20, soube que estava havendo a ocupação de uma propriedade em Piracicaba (SP), o acampamento Nelson Mandela, não teve dúvidas: reuniu os oito filhos, deixou a casa que dividia com os irmãos e entrou para o movimento.

“Ficamos em Piracicaba até 2017, nessa ocupação, mas por serem terras muito caras, a possibilidade de conseguirmos ser assentados era pequena. O acampamento se desfez e se juntou a um outro assentamento, em Limeira. Minha mãe se foi há dois anos, mas continuo na luta”, conta.

Hoje ele ajuda a organizar cursos livres de formação em áreas, como agroecologia (modelo de agricultura sustentável e que preserva recursos naturais) administração, arte, cultura do campo e organização popular. Nicolas, que vive no acampamento “Marielle Vive”, em Valinhos (SP), também participa da coordenação de um coletivo LGBTQIA+ dentro do MST.

“O campo sempre foi um lugar masculinizado, de força bruta. As minorias nunca foram compreendidas, e muitas vezes saíam do campo para a cidade, como uma tentativa de autoafirmação. Nosso desafio é a humanização do campo e construir uma reforma popular em que todos se sintam incluídos.”

A nova geração de militantes também tem colocado a igualdade de gênero como ponto central. Filha de dois dirigentes que participaram das principais ocupações de terra no Nordeste na década de 1990, Rosa Amorim, 25, passou a infância em espaços coletivos de cuidado, criados para que as mães dos acampamentos encontrassem tempo para a atividade política.

Ela, que buscará uma cadeira de deputada estadual em Pernambuco, está entre os 15 pré-candidatos do MST a cargos assembleias estaduais e na Câmara dos Deputados em 2022. “A decisão de lançar candidaturas em todo o Brasil depois de 38 anos mostra o nosso avanço. Precisamos ocupar espaços de decisão, com candidaturas de jovens, mulheres e LGBTQIA+.”

Ela ressalta que é responsabilidade da nova geração avançar, entre outras discussões, na defesa da alimentação sem agrotóxicos. “A imagem que se tinha na sociedade era do MST invasor, mas a gente vem desconstruindo isso aos poucos. Alimentar-se hoje é um ato político, o nosso boné entrou na moda, porque a sociedade reconhece o nosso trabalho histórico.”

“O movimento quer ser reconhecido pela produção de alimentos saudáveis. Há comunidades trabalhando com a venda direta e o uso de tecnologia para fazer esses produtos chegarem até a casa das pessoas. Com a pandemia a procura por esses alimentos aumentou mais ainda”, diz o professor Fernandes.

CORTE DE VERBA PREJUDICA ACESSO À EDUCAÇÃO E PERMANÊNCIA NO CAMPO

Apesar do maior acesso à formação, os jovens reclamam que as parcerias do MST com escolas e universidades foram prejudicadas, com o corte de recursos vindos do governo federal para o Pronera, que completou 24 anos em abril.

De acordo com o Incra, já foram ofertados 499 cursos, que vão de turmas de EJA (Educação de Jovens e Adultos) a programas de pós-graduação. Os cursos atenderam em torno de 186,7 mil pessoas, em parceria com 94 instituições.

Só que as parcerias atuais têm dependido mais da iniciativa do movimento e de docentes das universidades para sair do papel, por falta de orçamento.

Por falta de verba, em maio, o Incra chegou a suspender todas as atividades envolvendo deslocamento para eventos, segundo a Folha revelou na época. Entre as atividades afetadas estavam as entregas de títulos de propriedade. Na ocasião, o presidente Jair Bolsonaro disse que falaria com o ministro da Economia, Paulo Guedes, para que ele destinasse recursos do Orçamento ao órgão.

A reportagem também apontou que o governo Bolsonaro transformou radicalmente o programa de reforma agrária no país, apostando apenas em entrega de títulos a antigos assentados.

orçamento para aquisição de terras despencou 99%, de R$ 930 milhões em 2011 para R$ 2,4 milhões neste ano, e o mesmo aconteceu com a verba discricionária total do Incra, que caiu de R$ 1,9 bilhão em 2011 para R$ 500 milhões em 2020.

A edição mais recente da Pesquisa Nacional sobre a Educação na Reforma Agrária, publicada em 2015 em conjunto com o Ipea, aponta que 52,2% dos cursos do Pronera, de 1998 a 2011, eram de EJA fundamental; 30,9%, de ensino médio; 16,9%, de formação superior.

Questionado agora sobre as reclamações de falta de investimentos no Pronera, o Incra respondeu que a execução das ações de escolarização e formação educacional no campo está sob responsabilidade das secretarias estaduais, distrital e municipais de educação.

“O Ministério da Educação, por meio do Pronacampo, apoia técnica e financeiramente os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. O Pronera tem contribuído, de forma complementar, com a educação de jovens e adultos em assentamentos da reforma agrária e do Programa Nacional de Crédito Fundiário, além de comunidades quilombolas. A execução do programa pelo Incra tem sido planejada e executada conforme a disponibilidade orçamentária e financeira.”

Em 2022, dos R$ 4,59 milhões empenhados para ações de educação no campo, R$ 312,5 mil foram pagos até 28 de julho, segundo dados do Incra solicitados pela Folha. O valor pago neste ano corresponde a 10% do total de 2012.

Doações de alimentos para famílias vulneráveis durante a Jornada de Lutas Abril Vermelho do MST, no Paraná. Foto: Giorgia Prates.

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