“Na ponta da bala”: Brasil chega a 276 assassinatos no campo em seis anos

Segundo a CPT, 41% dessas mortes estão relacionadas a outros tipos de violência, como pistolagem e ameaças de expulsão; dados parciais foram apresentados durante o lançamento, em Brasília, de uma campanha que reúne mais de cinquenta organizações sociais

Por Mariana Franco Ramos, em De Olho nos Ruralistas

“Aqui em Brasília eles violam nosso direito na caneta e lá na nossa base eles violam na bala”, resume Simão Guarani Kaiowá. Sobrevivente do Massacre de Caraapó, que deixou seis indígenas feridos e um morto em 2016, no Mato Grosso do Sul, ele foi um dos líderes camponeses que compartilharam relatos durante o lançamento da Campanha contra a Violência no Campo, nesta terça-feira (02), em Brasília.

Mais de cinquenta organizações sociais de todo o país já se juntaram na frente de ação, cujo objetivo é dar visibilidade para a realidade enfrentada nas comunidades. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), 276 pessoas foram assassinadas no campo desde 2016, quando ocorreu o golpe que derrubou Dilma Rousseff (PT) do poder. As principais vítimas foram os sem-terra (98), os indígenas (54) e os posseiros (28). Os dados parciais devem compor o próximo relatório da CPT.

A pistolagem das chamadas agromilícias está diretamente relacionada a uma parte considerável dos crimes. Em 2016, correspondeu a 28% dos casos e, em 2022, dos 25 registrados, pelo menos 38% tiveram a incidência dessa prática.

No mesmo período, a CPT contabilizou 2.678 ocorrências de violência contra as pessoas, resultando em 7.344 vítimas. No total, mais de 5,5 milhões de cidadãos foram afetados, em especial, crianças, jovens e mulheres. O trabalho escravo cresceu 113%, em 2021.

Os registros são enviados pelos agentes de base da Pastoral, por movimentos sociais do campo e pela imprensa. Mas, conforme a CPT, não abarcam toda a realidade. Ainda conforme a organização, as situações se acirram à medida em que as políticas públicas e de fiscalização são desmontadas.

SOBREVIVENTE RELATA AMEAÇAS EM CARAAPÓ

“Para as polícias não tem como pedir mais a nossa segurança, porque a própria polícia mata nossos companheiros e fornece arma e bala para nos atacar”, diz Simão. De acordo com ele, três Guaranis Kaiowá foram assassinados desde o mês passado. “Ontem (01) o meu tio foi baleado no braço e o carro dele teve quinze perfurações de bala”, contou.

O próprio Simão sofre, até hoje, as consequências dos tiros que levou no abdômen e no tórax, há seis anos. Naquela ocasião, o agente de saúde Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza foi morto e outros seis indígenas ficaram feridos. O massacre ocorreu na Reserva Tey’i Kue, inserida nos limites de demarcação da Terra Indígena (TI) Dourados Amambai Peguá, em Caarapó (MS).

Pressionados pela mobilização dos fazendeiros contra a demarcação, os moradores decidiram retomar a Fazenda Yvu, localizada às margens da reserva e dentro dos limites da TI. “As pessoas que estão massacrando estão impunes, enquanto nós temos três lideranças presas, por estarem lutando por seu território”, critica.

Um dos líderes citados é Leonardo de Souza, pai de Clodiodi. Ele foi detido em 2018 e denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) por supostamente ter mantido policiais reféns e por torturá-los. “Quem atirou e quem matou está tudo solto”, completou. “Isso dói na gente. A lei que garante nosso território é a marca vermelha do nosso sangue”.

“ESTAMOS VIVENDO NA PONTA DA BALA”, CONTA LÍDER CAMPONÊS

Nascido e criado no Povoado Alegria, no município de Timbiras, no leste do Maranhão, Ismael Cunha, de 51 anos, está ameaçado de morte. “Desde 2002 a gente resolveu fazer a retomada do território”, conta. “Era controlado pelo latifúndio, a gente trabalhava e tudo tinha que ter uma participação para a pessoa que se dizia dona”.

Segundo ele, de dois ou três anos para cá o conflito aumentou demais, graças à chegada de outros grileiros, provenientes do Ceará. “Tivemos um companheiro assassinado lá e um atentado contra outro companheiro”, lamenta. Raimundo Rodrigues da Silva, mais conhecido como Brechó, foi morto em fevereiro de 2014. “E, ultimamente, quem está na lista para ser assassinado sou eu”.

O território, onde vivem 400 famílias, em torno de 800 pessoas, possui 14 mil hectares. “O único apoio que recebemos é da CPT e da paróquia”, diz. De acordo com o Mapa de Conflitos da Fiocruz, fazendeiros e latifundiários grilaram a área na década de 50. “Eles (madeireiros) querem passar por cima de qualquer maneira”.

“É o único território no município onde existe madeira ainda e a gente está na defesa para que não se destrua tudo, mas de alguma forma o latifúndio quer passar por cima da gente”, explica o camponês.

Há aproximadamente quinze dias, a situação se agravou. Os moradores decidiram não deixar mais nenhum trator ou caminhão adentrar a comunidade. “Os caras então disseram que iriam matar a gente”, relatou Cunha. “Tanto eu como meus companheiros estamos vivendo na ponta da bala”.

PARA ORGANIZAÇÕES, GOVERNO BOLSONARO ESTIMULA DEVASTAÇÃO

O lançamento da “Campanha Contra a Violência no Campo: em defesa dos povos do Campo, das Águas e das Florestas” aconteceu no auditório do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), na capital federal. O evento faz parte da programação do Seminário da 6ª Semana Social Brasileira.

“Nunca antes um governo atuou de forma tão escandalosa e premeditada no sentido de estimular a devastação”, denunciou o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira. “O governo federal instaurou uma crise e essa crise é um projeto, que visa a retirar os direitos do povo. Sem povo e sem território, esse é o projeto”.

Ele lembrou que existem mais de 1.280 terras indígenas no Brasil e que pouco mais de 300 estão legalizadas. “Desde 2017 nenhuma é demarcada”, destacou. “Temos cerca de 900 mil indígenas, de 304 povos, a maior diversidade do mundo, e falamos mais de 180 línguas diferentes”.

“Para combater a violência no campo é preciso acabar com o latifúndio”, defendeu Alair Luiz dos Santos, da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag). “O latifúndio, com a sua ganância, derruba as cercas dos agricultores familiares e impede as comunidades quilombolas e ribeirinhas de transitarem em seu território”.

Segundo ele, precisamos de politicas públicas e de uma reforma agrária com dignidade, “que não seja só distribuição de terra, que respeite as comunidades tradicionais existentes e que corrija a distorção que existe no Brasil na questão do uso da terra”.

Para Dom José Ionilton Lisboa de Oliveira, bispo da Prelazia de Itacoatiara (AM) e presidente da CPT, a paz no campo virá somente quando o direito dos povos for respeitado. “Apenas quando a reforma agrária for realizada, quando o trabalho dos pequenos agricultores, seringueiros, for valorizado, quando a demarcação das terras indígenas e a titulação das comunidades quilombolas for realizada”.

Dom Ionilton reforçou a necessidade de fortalecer os organismos de fiscalização e controle “das ações nefastas que destroem a natureza e matam o nosso povo”. “Basta de violência no campo. Queremos que a justiça e a paz se abracem”.

Alessandra Farias, da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), Andréia Silvério e Carlos Lima, da coordenação nacional da CPT, Darci Frigo, da Plataforma Dhesca, Sandra Maria, da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), e Jordana Ribeiro, do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), também compuseram a mesa.

De Olho nos Ruralistas lançará nos próximos dias uma série de vídeos sobre povos do campo atingidos pela violência nos últimos anos.

Foto principal (Mariana Franco Ramos): relatos de líderes camponeses do MS e do MA marcaram lançamento de campanha

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