Quarto relatório da série Dossiê Bolsonaro mostra que áreas invadidas nas terras Munduruku e Yanomami triplicaram desde 2019, enquanto o presidente criou resoluções para facilitar o garimpo; no Congresso, bolsonaristas financiados pela mineração tentam legalizar extração criminosa em reservas e garantir benefícios ao setor
Por Luís Indriunas, em De Olho nos Ruralistas
— Eu tenho vontade de garimpar. Eu já garimpei também. Eu tinha um jogo de peneira, tinha uma bateia, sempre estava no meu carro e não podia ver um córrego que caia de boca lá.
A frase do presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ), dita para apoiadores em abril de 2020, mostra sua obsessão pelo garimpo. A candidato à reeleição já expressou, mais de uma vez, seu desejo de ressuscitar os tempos de Serra Pelada, no Pará, quando, nos últimos anos da ditadura militar, um verdadeiro formigueiro humano de mais de 100 mil garimpeiros se formou para extrair metais preciosos do seio da terra, trabalhando em condições degradantes e, por vezes, sub-humanas.
Mas, ao mesmo tempo em que trabalha para beneficiar cooperativas e grupos criminosos atuando no garimpo ilegal na Amazônia, Bolsonaro mantém os incentivos às grandes mineradoras e atende aos interesses do MDB na composição de cargos da Agência Nacional de Mineração (ANM).
Essa política dual adotada no setor minerário é o tema do relatório “As Veias Abertas”, o quarto da série Dossiê Bolsonaro, do De Olho nos Ruralistas, que explora a política fundiária do atual governo.
Os três primeiros documentos da série detalham a face bananeira do presidente, o loteamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a ocupação do Ministério do Meio Ambiente (MMA) pelo setor privado, respectivamente.
Na sua articulação pelo avanço do garimpo, Bolsonaro tem o apoio do Grupo de Trabalho da Mineração na Câmara dos Deputados, cujo relator, Joaquim Passarinho (PL-PA), defende a exploração mineral em terras indígenas. Enquanto a lei não vem, o presidente assinou oito decretos que beneficiam pequenas e médias mineradoras e facilitam o garimpo ilegal. Entre eles, está o nº 10.965, de 11 de fevereiro de 2022, que prevê que a ANM estabeleça “critérios simplificados para análise de atos processuais e procedimentos de outorga”, principalmente no caso de empreendimentos de pequeno porte. A normativa beneficia garimpeiros e a indústria de construção civil, que se utiliza de minerais como argilas, cascalhos, brita, calcário, cálcio e rochas ornamentais.
Clique aqui para baixar o dossiê na íntegra.
INVASÕES TRIPLICAM ENTRE OS YANOMANI E OS MUNDURUKU
Durante o governo Bolsonaro, houve um aumento de 334% na área de mineração destinada ao garimpo de ouro e estanho nas terras dos Munduruku, no sudoeste do Pará. Os dados são provenientes da plataforma MapBiomas e foram compilados com exclusividade pelo De Olho nos Ruralistas para o relatório “As Veias Abertas“.
A área destinada somente ao estanho teve um aumento exorbitante de 4.215,5%. Em 2018, o garimpo deste minério ocupava 53,6 hectares, passando a 2.314 hectares em 2021. No mesmo período, a Terra Indígena (TI) Apyterewa, em São Félix do Xingu (PA), apresentou um aumento de 475,9% na área garimpada por ouro. O garimpo na TI Yanomami, na divisa entre Amazonas e Roraima, teve aumento de 328,6%.
Na TI Munduruku, no Pará, a exploração ilegal de minerais tem provocado uma série de problemas para a etnia, como a contaminação de rios, peixes e pessoas por mercúrio, além de ampliar os conflitos por terras. Um estudo publicado em 2021 por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com a ONG WWF-Brasil, mostrou que, de cada dez indígenas participantes, seis apresentavam níveis de mercúrio acima de limites seguros. Entre as consequências da contaminação pelo metal estão a malformação em bebês, doenças neurológicas, problemas de visão e audição e problemas de neurodesenvolvimento — este último afetando 15,8% das crianças do território.
Pará e Roraima foram os estados onde o garimpo em escala não-industrial mais avançou durante o governo de Jair Bolsonaro. A área em Roraima, que era de 462,5 hectares em 2018, passou a 1.657,9 hectares em 2021 – um aumento de 258,5%. Estão nesse local boa parte dos 20 mil garimpeiros que os Yanomami estimam haver em seu território, minerando ouro e cassiterita.
Foi em Roraima, em outubro de 2021, que Bolsonaro se tornou o primeiro presidente da República a visitar uma área de garimpo ilegal, localizada dentro da terra indígena Raposa Serra do Sol. Ali, perante dezenas de garimpeiros, ele defendeu a aprovação no Congresso do Projeto de Lei (PL) nº 191/2020, de autoria do Poder Executivo, que estabelece condições simplificadas para a pesquisa e a lavra de recursos minerais em terras indígenas.
NA CÂMARA, BOLSONARISTAS LIDERAM GRUPO DE TRABALHO
Diante da ofensiva da exploração mineral em todo o território nacional, a abertura de um Grupo de Trabalho (GT) para a revisão do Código de Mineração tornou-se um dos principais instrumentos de aliança entre o lobby do setor minerário — tanto da mineração industrial quanto do garimpo — e os interesses dos parlamentares.
Instituído em 16 de junho de 2021 pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o GT Minera surgiu uma semana depois da polícia reprimir um protesto de indígenas contra a entrada em votação do PL 490/2007, que institui o marco temporal, e também contra o PL 191/2020, que muda as regras da mineração e possibilita a exploração em terras indígenas.
Entre os parlamentares que atuam na articulação do lobby do garimpo, os mais expressivos são o deputado federal Joaquim Passarinho, hoje relator do GT, e o senador Zequinha Marinho, ambos do PL do Pará. Passarinho defende a legalização da atividade garimpeira e a oferta de áreas públicas onde o impacto ambiental seja menor. Ele também é um interlocutor frequente de políticos locais, como o vereador de Itaituba (PA) Wescley Tomaz (MDB), considerado o “vereador dos garimpeiros” e com acesso livre à alta cúpula do governo federal, conforme revelado pela Agência Pública.
Um setor que tem apresentado mobilidade importante no governo Bolsonaro é vinculado à mineração de rochas ornamentais e construção civil. O Sindicato da Indústria de Rochas Ornamentais, Cal e Calcários do Espírito Santo (Sindirochas-ES), o Centro Brasileiro dos Exportadores de Rochas Ornamentais (Centrorochas) e a Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP) estão entre as organizações recebidas pelo Ministério de Minas e Energia (MME). O principal articulador junto ao governo Bolsonaro é o deputado ruralista Evair de Melo (PP-ES), que chama a atenção pela interlocução com o setor minerário. Candidato à reeleição, o deputado bolsonarista, que costuma receber doações do agronegócio, obteve R$ 30 mil de Gustavo Probst, um dos diretores da Colores Mármores e Granito, exportadora de rochas ornamentais.
EX-RELATORA E MEMBRO DO GT, DEPUTADA É FINANCIADA POR MINERADORAS
Em Minas Gerais, o bolsonarismo conta com Greyce Elias para a revisão do Código de Mineração. Logo que iniciou seu mandato, ela atuou junto à ANM, promovendo audiências, reclamando da falta de estrutura em visitas às instalações da agência e solicitando informações sobre o trabalho dos servidores. A deputada defende a fusão da agência com o Serviço Geológico do Brasil (antiga Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais), empresa pública responsável por gerar e disseminar conhecimento geocientífico. Seu objetivo era aumentar os quadros da ANM para acelerar as autorizações de lavra.
O interesse pela ANM não é novo para Greyce. Seu marido, Pablo Cesar de Souza, foi indicado por Aécio Neves (PSDB-MG) para ocupar a superintendência de Minas Gerais, em 2017, ainda no governo Temer, enquanto Aécio era senador. Sua nomeação provocou o pedido de demissão de 21 servidores, que a consideraram “temerária ou, no mínimo, desconfortante” pela falta de conhecimento técnico do marido da deputada. Hoje Pablo é assessor da presidência do Senado e doou R$ 20 mil para a campanha de sua mulher à reeleição.
A deputada mineira também está bastante presente nas discussões das barragens, enquanto seu maior doador da campanha, seu irmão Frederico Elias, é proprietário da PCH Dourados Usina Ltda, que possui licença de operação para barramento do Rio Dourados, no município de Abadia dos Dourados (MG). Ela, Frederico e outros dois irmãos são sócios do Recanto das Cerejeiras Empreendimentos Imobiliários Ltda, onde a família atua em parceria com os empresários Paulo e Baltazar Moreira Alves, proprietários da Sevimol, uma das maiores distribuidoras de ferro e aço do Alto Paranaíba, Triângulo Mineiro e Noroeste do estado.
Em 2018, Greyce recebeu R$ 10 mil de Tales Pena Machado, vice-presidente do Sindicato da Indústria de Rochas Ornamentais, Cal e Calcários do Espírito Santo (SindiRocha) e dono da exportadora de rochas ornamentais Magban.
BOLSONARO CONSERVOU INFLUÊNCIA DO MDB SOBRE O SETOR MINERÁRIO
Há catorze anos o MDB está presente no Ministério de Minas e Energia (MME), mais especificamente na estrutura da mineração. Essa influência se manteve praticamente a mesma desde os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, do PT, e ganhou projeção durante a gestão de Michel Temer. Embora Jair Bolsonaro tenha indicado um ministro militar, não houve alteração na distribuição de poderes dentro da pasta.
O atual diretor-geral da ANM, Victor Hugo Froner Bicca, é um servidor de carreira, que já trabalhou para os governos dos emebedistas Luiz Henrique da Silveira e Eduardo Pinho Moreira, em Santa Catarina, e foi assessor da Diretoria-Geral do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) em 2011, durante a gestão de Edison Lobão (MDB-MA) no MME. Seu irmão João Manoel Froner Bicca foi vereador pelo MDB em São Borja (RS). Sua mulher, Rosana Márcia Conde Bicca, candidata a vereadora em São José (SC) em 2004, também é integrante do partido.
Ele será substituído em dezembro, de acordo com as regras da agência, pelo maranhense Mauro Henrique Moreira Sousa, advogado da União e consultor jurídico do MME desde a primeira gestão de seu conterrâneo Edison Lobão, em 2009. Dessa vez, o aspirante a diretor-geral da autarquia teve sua indicação relatada por Chico Rodrigues (União-RR), ex-líder do governo no Senado, fazendeiro, réu por invasão de terras públicas e conhecido nacionalmente por tentar esconder dinheiro na cueca durante operação da Polícia Federal que investigava desvios de verbas direcionadas à compra de testes rápidos para Covid.
O senador é defensor do que chama de “garimpo artesanal” e da imposição de limites à atuação de fiscais ambientais na abordagem aos garimpeiros.
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Imagem principal (Renato Aroeira/De Olho nos Ruralistas): governo Bolsonaro atua para beneficiar garimpeiros enquanto mantém privilégios das grandes mineradoras.