Interferência do Executivo no STF pode gerar punição ao Brasil, como na Venezuela

Por Karen Couto, na ConJur

Embora tenha passado ao segundo turno da eleição presidencial em segundo lugar, Jair Bolsonaro saiu vitorioso do pleito do último dia 2 porque muitos aliados seus conseguiram se eleger para o Congresso Nacional. Assim, é certo que, se for reeleito, o presidente terá força para causar problemas ao Supremo Tribunal Federal, inclusive pedindo impeachment de ministros. E ele até já andou falando em aumentar a composição do STF, com o óbvio objetivo de diminuir a independência da corte.

Caso esse cenário se torne realidade a partir do ano que vem, a interferência do Poder Executivo no Judiciário pode causar problemas ao Brasil. E a Venezuela está aí para provar: em 2009, nossa vizinha foi condenada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos justamente por causa da intromissão de seu governo na corte suprema do país. O caso Apitz Barbera y otros vs.Venezuela é um precedente importante, que deve servir de alerta para os brasileiros.

O caso tratou da remoção de três magistrados da corte depois que eles proferiram uma sentença que invalidou um ato administrativo do Executivo venezuelano. Em razão dessa decisão, os três foram investigados pela Inspetoria Geral dos Tribunais (IGT), com a acusação de terem cometido “erro inescusável”. Depois, foram denunciados ao CFRSJ, órgão judicial criado provisoriamente pela Assembleia Constituinte para proceder ao exame da disciplina dos juízes enquanto não fossem instalados os Tribunais Disciplinares previstos na Constituição Bolivariana da Venezuela, de 15 de dezembro de 1999.

Em 30 de outubro de 2003, foi decretada a destituição dos magistrados. Inconformados, eles recorreram administrativamente e apresentaram pedido de amparo ao contencioso administrativo, que acabou sendo rejeitado. E o recurso sequer foi julgado.

A destituição dos magistrados foi objeto de queixa à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que demandou a República Bolivariana da Venezuela na Corte IDH, que, por sua vez, condenou o país por violação aos direitos consagrados nos artigos 8 (Garantias Judiciais) e 25 (Proteção Judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O governo teve de pagar indenização às vítimas e reintegrá-las ao Poder Judiciário, com direito a salários, benefícios sociais e classificação devidamente corrigidos.

A Corte IDH destacou em sua sentença que a independência dos juízes deve ser garantida pelo Estado. O objetivo da proteção é evitar que o sistema judicial, em geral, e seus membros, em particular, sejam submetidos a restrições indevidas no exercício de suas funções por parte de órgãos estranhos ao Poder Judiciário, ou mesmo por parte dos magistrados de tribunais superiores. No caso concreto, entendeu-se que punir juízes por atos executados no exercício de sua jurisdição constitui atentado à independência funcional.

Embora a denúncia feita à Corte IDH também tenha alegado que o governo venezuelano aumentou o número de magistrados da corte para reduzir a força do Poder Judiciário (como Bolsonaro agora cogita fazer no Brasil), a corte entendeu que não havia provas de aparelhamento político.

Mesmo rumo
No entendimento de operadores do Direito ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, uma aventura bolsonarista semelhante à empreendida por Hugo Chávez (comandante da Venezuela à época dos fatos) pode ter desfecho parecido. Embora reconheçam que o contexto político do Brasil seja diferente, eles argumentam que qualquer ofensiva contra os ministros do STF teria de ser muito bem fundamentada, ou então poderia ser aplicado o precedente de Apitz Barbera y otros vs.Venezuela.

“A consequência seria o desfazimento do ato. O Brasil seria obrigado a desfazer o ato, voltar à situação anterior sob pena ou acumulado com multa. Essa é uma questão muito, muito grave. O Brasil tende a cumprir sentença da Corte Interamericana ou determinação da Comissão Internamericana, sob pena de ficar numa situação extremamente difícil sob o ponto de vista dos órgãos da Organização dos Estados Americanos”, opinou Belisário dos Santos Júnior, sócio do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados e membro da Comissão Internacional de Juristas, com sede na Suíça.

O advogado destaca ainda que o argumento de “garantia de uma melhor governança”, usado por Bolsonaro, não é fundamento para remover um ministro do STF. “No caso do Brasil, embora um pouco diferente, a independência dos poderes é um pilar da Constituição de 1988 e, portanto, como o presidente da República está fundando a sua ideia puramente em garantir uma melhor governança, na realidade é porque ele se incomoda com o Supremo, que cassa suas decisões.”

Nesse sentido, o constitucionalista Lenio Streck alerta para o possível aparelhamento do STF com a troca de ministros por meio do instrumento do impeachment. “Se ministros do STF podem ser impichados por seus votos e suas posições, então já não teremos democracia e nem Estado de Direito. Quem mandará será a política. Em uma democracia, quem deve filtrar e controlar os excessos da política é o Direito. E não o contrário.”

Segundo Cristiano Vilela, sócio do escritório Vilela, Miranda e Aguiar Fernandes, o apoio que terá do Congresso em um segundo mandato deve levar Bolsonaro a aumentar o atrito entre os poderes, o que pode causar embaraços ao país.

“Caso haja um enfrentamento direto entre os poderes e a tomada de medidas que venham a ferir a autonomia e a independência de cada um deles, aí, sim, estaremos diante de uma medida que afronta a Constituição, a Convenção Americana de Direitos Humanos e os tratados internacionais.”

Vilela destaca que a proposta de aumento de magistrados do Supremo pode, sim, resultar em uma interferência no Poder Judiciário. “A situação brasileira, de eventual aumento do número de magistrados, embora seja um caso distinto do ocorrido na Venezuela, poderá levar a um questionamento perante a mesma corte, visto se tratar igualmente de uma medida que busca se contrapor à independência e à autonomia do Poder Judiciário.”

Streck, por sua vez, afirma que há riscos para a democracia quando um poder se impõe sobre outro, como ocorreu na Venezuela.

“Se o Executivo resolver intervir no Poder Judiciário e a Suprema Corte nada fizer, ou nada puder fazer, então já estaremos em um Estado de exceção. Já não haverá democracia.”

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