E agora, para onde vamos? Por Eva Alterman Blay

Por Eva Alterman Blay, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

Jornal da USP

Pode parecer um programa estranho a realização de um festival literário no Museu Judaico em São Paulo. Pois ocorreu nos dias 6 a 9 de outubro, numa data simbolicamente judaica: entre o Dia do Perdão (Iom Kipur) e a Festa das Cabanas (Sucot), quando os judeus que saíram da escravidão do Egito dormiam em cabanas no deserto ao buscarem Jerusalém.

Pois eu e Suely Carneiro fomos provocadas a discutir, num evento público, a simplérrima questão: “E agora, para onde vamos?” Ocorre que nós, judeus-brasileiros e os afro-brasileiros, encaramos nossas histórias como uma sankofa, o pássaro que, no dizer de Abdias Nascimento, olha para frente e para trás, toma o passado para entender o presente. Acrescento, com as reflexões de Teresa de Lauretis, no livro de Aleida Assmann, Espaços da Recordação – Formas e Transformações da Memória Cultural: para construir nossa identidade, individual ou coletiva, buscamos a história mediada pelo “sexo, pela ética e pela política”.

Retomamos, da história vivida por nossos ancestrais, próximos ou longínquos, os valores que nos conformam, que a sociedade nos transmite. Na academia houve uma difícil resistência à história oral, a história de vida, como método de investigação os quais, para mim, são fundamentais há décadas. Através dos relatos vividos consegui entender e transformar o que na minha geração se ensinava na escola desde o primário: por exemplo, que o povoamento do Brasil se dera pela vinda de degredados, proscritos, pessoas desclassificadas que Portugal enviava para a colônia. Foi necessária uma visão crítica da colonização para enxergar o que ficara escondido, isto é, que para cá vieram principalmente aqueles acusados de judaizantes.

Ao recuperar nossa própria história, pudemos compreender quem éramos nós. Embora a literatura escolar tenha posteriormente modificado aquela perversa narrativa, desconfio que o preconceito inscrito na mentalidade e na cultura brasileira ainda opera. Veja-se que até uns dez anos atrás a palavra judeu era um nome “feio” e nós próprios nos denominávamos “israelitas”. Para recuperar a história dos judeus que vieram para o Brasil visitei e coletei as histórias daqueles que foram para o interior do Amazonas, que navegavam do Marrocos para o porto de Belém ainda no começo do século 19, e que hoje são os remanescentes daqueles pioneiros e vivem exatamente como toda a desassistida população no norte do País.

Coletei as histórias no interior da Bahia, em Pernambuco até o Rio Grande do Sul, passando pela Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, até se fixar no Brasil e especialmente em São Paulo. Conheci famílias perseguidas e destruídas por serem comunistas, visitei famílias de deportados (sim, houve imigrantes deportados pelo nazismo). O título de meu livro, O Brasil como Destino (Editora Unesp, 2020), espelha o mosaico das histórias que, com várias companheiras, coletei há cerca de 40 anos. São o fundamento das gerações atuais, famílias descendentes daqueles que vieram antes da Segunda Guerra mundial e aos quais outras levas de imigrantes de judeus se somaram.

Do mesmo modo, está necessário, para recuperar a própria história, descolonizar a versão da história da população negra trazida como escravizada. E certamente o morticínio da população negra no Brasil, de mulheres, homens e sobretudo de jovens, é fruto da manutenção de uma mentalidade escravocrata, patriarcal, misógina que persiste na história brasileira. A comunidade afrodescendente está recuperando seu próprio passado para entender a história presente.

Nossas histórias – judeus e negros – se assemelham, embora diversas. Os preconceitos são diferentes? Como recolocar essas questões no momento presente tão conservador, violento e perigoso? Se essas questões se recolocam, os caminhos de resistência que nós feministas já trilhamos nos ensinam que as lutas quotidianas individuais e coletivas terão de continuar.

Contei um pouco dessa trajetória no afetivo e carinhoso encontro que tive com Suely Carneiro. Foi um diálogo, uma soma de experiências que levaram a iluminar o que é o Brasil hoje e como precisamos nos libertar dos preconceitos e discriminações que impedem o exercício de nossa plena cidadania.

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