Carta aberta aos meus familiares

Por Marco Vasques*, em Desacato

Caros familiares,

Estou cansado. Muito. Os últimos quatro anos foram sombrios e difíceis. Somos diferentes, heterogêneos e temos desejos muitas vezes opostos. Já tivemos muitas divergências, inclusive políticas, mas isso nunca esteve acima de nossos horizontes comuns. Nunca xingamos uns aos outros, no passado, apenas por estarmos em campo oposto da luta política; nunca ficamos sem nos falar por conta da escolha deste ou daquele candidato; nunca nos desrespeitamos e nos ferimos de maneira raivosa e desumana. Mesmo em campos opostos nos respeitávamos, porque tínhamos uma certa medida de amor e uma outra certa dose de tolerância nos almoços de domingo promovidos pela nossa matriarca.

Bem, faz quase quatro anos que um dos meus sobrinhos, um garoto de apenas 18 anos que tentava ingressar no curso de Direito, mandou a seguinte mensagem: “vitamina B17, para acabar com gays, comunistas e artistas”. Essa mensagem, desferida no pequeno grupo familiar de quatro irmãos, feriu meu coração de tal forma que, ainda hoje, lembro-me do exato dia e hora em que o horror se instalou no meio de nossas relações. Vocês sabem muito bem que não aceitei a provocação, porque ela ultrapassou todos os limites possíveis de civilidade. Essa mensagem reúne, em poucas palavras, homofobia, inocência política e histórica e, também, a criminalização da arte e da cultura, isto é, a criminalização da minha profissão. Em resumo: o sumo do discurso de ódio que estamos vivendo, infelizmente, mais uma vez, já estava no germe da frase que nos mutilou e nos mutila, ainda!

Era véspera de eleição, e o Brasil estava tomado e enlouquecido pela raiva que a imprensa cultuou contra o Partido dos Trabalhadores. Sim, a grande mídia funcionou como assessora de imprensa da Lava Jato e, como tal, nunca fez uma cobertura crítica.

Eu já estava muito abatido com o Golpe Parlamentar sofrido pela primeira mulher a ocupar o posto máximo de nossa nação. O episódio sangra e vive em mim até hoje. Quando nossos corações se separaram? Em qual curva do rio nossas lágrimas se dividiram? Logo nós, que passamos tantas dificuldades juntos. Que superamos tantas limitações e que fortalecemos nossos laços para superar as dificuldades que se agigantavam em nossas vidas? Está tudo tão explícito. Na minha cabeça, já na eleição passada, um candidato que segura uma criança e faz com que ela reproduza o sinal de uma arma com uma das mãos, por exemplo, já seria o suficiente para nossos olhares se solidarizarem e perceberem que algo está errado.

Meus caros, esqueçam o ódio. Não estou escrevendo para falar das altas exorbitantes dos alimentos; dos cortes de verbas das universidades públicas; das perseguições a professores; do elogio ao racismo; do desrespeito com as mulheres; da inflação; da raiva insana aos povos originários; da corrupção; das rachadinhas; dos cem anos de sigilo; do orçamento secreto, do elogio à tortura e à Ditadura; da catástrofe na administração da pandemia; do desmonte do Sistema Único de Saúde; da fome galopante em nossa sociedade; da agressão aos profissionais da imprensa; dos cortes em verbas em pesquisa, educação, saúde e políticas sociais; da perseguição a artistas; da ira à comunidade LGBTQIAP+; do desmatamento de nossas florestas; das milícias digitais; das notícias falsas; enfim, infelizmente esta carta jamais acabaria se fosse enumerar a hecatombe e o horror que se instalou em nossas vidas nos últimos quatro anos.

Escrevo justamente para dizer que tudo isso pode ser superado e combatido no próximo domingo. Há muitas feridas atormentando nossos dias. E, talvez, uma das mais doloridas e das mais difíceis de cicatrizar seja a interrupção da luz que unia nossos corações. Não era uma luz perfeita; nunca foi. Mas havia um brilho e um amor cultivado por nós. Cada um à sua maneira, é verdade. Sempre soubemos da existência de um lugar que nos unia. E esse lugar foi sequestrado, foi roubado. Escrevo, também, para dizer que desejo muito reencontrar essa luz em vocês, mas, para isso, peço que parem de beijar a sombra e de namorar com o horror. Desejo que vocês recuperem o que têm de melhor e mais solar.

Como pode um ser que nunca habitou nossa intimidade nos destruir tanto? Como pode vocês preferirem andar de mãos dadas e amasiados com quem nunca brilhou, lutou, chorou e sonhou os nossos sonhos? Como pode? Enfim, termino reproduzindo um dos versos do poeta Augusto dos Anjos: “meu coração tem catedrais imensas”. Sonho muito com a possibilidade de vocês entrarem, novamente, numa dessas catedrais que habitam meu coração!

Vídeo: leitura da atriz Clarice Steil Siewert

*Marco Vasques é poeta, escritor, crítico de teatro e editor do Caixa de Pont[o]
– jornal brasileiro de teatro

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