Lélia Gonzalez e a nação para o povo!

As posições políticas e reflexões de Lélia Gonzalez continuam balizadoras para os movimentos populares que assumiram a tarefa de reconstruir o nosso país impactado pelo modelo econômico ultra-neoliberal, ultraconservador e fascista

Por Simone Magalhães*, na Página do MST

Na tarde do dia 28 de abril de 1987, Lélia González compareceu à sessão da subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias do Congresso Nacional, para discursar sobre “O negro e a sua situação” e, em seguida, apresentar, juntamente às representações do movimento negro brasileiro, propostas à Assembleia Nacional Constituinte (ANC), com vistas à integração na Constituição Federal de 1988.[1]

O quadro que pintei na cabeça: Lélia González e Helena Theodoro, convidadas pela deputada federal recém-eleita Benedita da Silva, descosturando, com estilete, a cortina do mito da democracia racial!

Quando convidada para discursar na ANC, Lélia González (1935-1994) já gozava de reconhecimento militante no âmbito do movimento negro e de notoriedade intelectual na vida acadêmica. Uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1987, Lélia ajudou a criar também o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) e o Coletivo de Mulheres Negras N’Zinga. A partir desses espaços, do movimento negro nacional e da interlocução internacional com o movimento Pan-africanista, Lélia se dedicou a entender as particularidades do capitalismo brasileiro, e a compreender como o mito da democracia racial operava para silenciar e subalternizar o povo preto. Nessa trajetória, suas elaborações denunciaram reiteradamente a estrutura e a permanência do racismo e do sexismo na cultura brasileira.

Antes de qualquer discussão sobre o tema do negro, era salutar para Lélia González retomar o fio da história para desembrulhar o novelo encoberto pelo mito da democracia racial. Esse era o ponto! Partindo daí, Lélia González afirmou em sua intervenção que para falar em Projeto de Nação era necessário considerar que este não poderia ser assim nomeado caso não fosse considerada a participação do povo, e do povo preto!

Vejam que estou falando de sociedade o tempo inteiro, não falei em nenhum momento em nação brasileira, uma vez que o projeto de nação brasileira ainda é o projeto de uma minoria dominante, o projeto do qual a população, o povo, isto é, o conjunto dos cidadãos, não participa, e nesse conjunto de cidadãos temos 60% que são negros. E, para criarmos uma nação, temos que criar o impulso comum de projeto com relação ao futuro. E, para podermos ter impulso com relação ao futuro, temos de conhecer o nosso. E a história do nosso país é uma história falada pela raça e classe dominante, é uma história oficial, apesar dos grandes esforços que vêm sendo realizados no presente momento (GONZALEZ, 2020, p. 229).

Lélia compareceu à Constituinte porque compreendia muito bem o papel das instituições e o seu potencial para combater o racismo e o sexismo na sociedade brasileira.

A Abolição de 1888, para Lélia, retirou o povo preto da centralidade produtiva econômica, que passou à marginalização econômica e social, se formando como exército industrial de reserva e subordinado às condições de trabalho mais aviltantes. Essa transformação foi bastante benéfica ao capitalismo brasileiro porque ampliou a sua acumulação com a superexploração da mão de obra negra e, a partir dela, construiu as bases para o desenvolvimento industrial no início do século XX com a cultura cafeeira.

É inovadora, ainda, a análise de Lélia segundo a qual, mesmo empobrecida, a parcela pobre de grupos brancos desfruta de vantagem frente aos pretos, pois aqueles recebiam os dividendos do racismo. É o que assevera Lélia:

[…] a opressão racial nos faz constatar que mesmo os brancos sem propriedade dos meios de produção são beneficiários do seu exercício. Claro está que, enquanto o capitalista branco se beneficia diretamente da exploração ou superexploração do negro, a maioria dos brancos recebe seus dividendos do racismo, a partir de sua vantagem competitiva no preenchimento das posições que, na estrutura de classes, implicam as recompensas materiais e simbólicas mais desejadas. Isso significa, em outros termos, que, se pessoas possuidoras dos mesmos recursos (origem de classe e educação, por exemplo), excetuando sua afiliação racial, entram no campo da competição, o resultado desta última será desfavorável aos não brancos” (GONZALEZ, 2020, p.229).

Ou seja, para Lélia, grupos brancos pobres também se beneficiam do racismo, pois obtém recompensas materiais e simbólicas, uma espécie de salário psicológico do racismo.

A mulher negra é o sujeito mais violentamente atingido pelo capitalismo, racismo e sexismo, pois é ela quem sustenta econômica e moralmente a sua família, e mesmo quando tem escolaridade e os requisitos profissionais para ocupar postos elevados de trabalho é preterida. Por isso Lélia é certeira em seu diagnóstico:

[…] Quanto à mulher negra, sua falta de perspectiva quanto à possibilidade de novas alternativas faz com que ela se volte para a prestação de serviços domésticos, o que a coloca numa situação de sujeição, de dependência das famílias de classe média branca. A empregada doméstica tem sofrido um processo de reforço quanto à internalização da diferença, da “inferioridade”, da subordinação. No entanto, foi ela quem possibilitou e ainda possibilita a emancipação econômica e cultural da patroa dentro do sistema de dupla jornada, como já vimos.” (GONZALEZ, 2020, p. 35).

À medida em que foi estabelecendo diálogo com o movimento de mulheres latino-americano e caribenho, Lélia ampliou o espectro de sua análise e passou a abarcar também a reflexão sobre o racismo na América Latina e Caribe.

“O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e indígenas na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento, tão bem analisada por cientistas brasileiros. Transmitida pelos meios de comunicação de massa e pelos sistemas ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores da cultura ocidental branca são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca comprova sua eficácia e os efeitos de desintegração violenta, de fragmentação da identidade étnica por ele produzidos, o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue”, como se diz no Brasil) é internalizado com a consequente negação da própria raça e da própria cultura” (GONZALEZ, 2020, p.130).

As análises e o pensamento de Lélia Gonzalez iam assumindo um caráter continental, na medida em que abarcavam o debate das desigualdades raciais, étnicas e culturais dos países latino-americanos e caribenhos. Daí a sua compreensão de não poder mais falar apenas de si mesma enquanto mulher negra, mas como parte de um bloco histórico que incluía as ameríndias e amefricanas do continente, é que ela foi capaz de concluir ser necessário pensar e propor um feminismo afro-latinoamericano.

[…] O feminismo latino-americano perde muito da sua força ao abstrair um dado da realidade que é de grande importância: o caráter multirracial e pluricultural das sociedades dessa região. Tratar, por exemplo, da divisão sexual do trabalho sem articulá-la com seu correspondente em nível racial é recair numa espécie de racionalismo universal abstrato, típico de um discurso masculinizado e branco. Falar da opressão da mulher latino-americana é falar de uma generalidade que oculta, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato de não serem brancas” (GONZALEZ, 2020, p. 130).

E conclui :

É importante insistir que, no quadro das profundas desigualdades raciais existentes no continente, se inscreve, e muito bem articulada, a desigualdade sexual. Trata-se de uma discriminação em dobro para com as mulheres não brancas da região: as amefricanas e as ameríndias. O duplo caráter da sua condição biológica – racial e sexual – faz com que elas sejam as mulheres mais oprimidas e exploradas de uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente. Justamente porque esse sistema transforma as diferenças em desigualdades, a discriminação que elas sofrem assume um caráter triplo: dada sua posição de classe, ameríndias e amefricanas fazem parte, na sua grande maioria, do proletariado afro-latino-americano” (GONZALEZ, 2020, p. 130).

Tanto lá em 1987 como agora, em 2022, as posições políticas e as reflexões de Lélia Gonzalez continuam balizadoras e podem ser referências aos movimentos populares que assumiram a tarefa de reconstruir o nosso país, impactado pelo modelo econômico ultra-neoliberal, ultraconservador e fascista do último período, que trouxe a fome para 33 milhões de pessoas, jogou 36 milhões à pobreza extrema e impulsionou a violência política e o fanatismo religioso no país. Diante da possibilidade de inscrever o povo como sujeito ativo na construção do país, por meio da Constituição de 1988, Lélia Gonzalez manejou o acúmulo político e social das lutas do povo negro para afirmar que a democracia brasileira só teria substância se fosse capaz de colocar o povo negro na centralidade das políticas públicas operadas pelo estado brasileiro.

Se estivesse entre nós agora, diante da possibilidade histórica aberta ao povo brasileiro de construir um projeto de país verdadeiramente popular, o que recomendaria Lélia Gonzalez? Uma pista nos foi dada:

O nosso projeto de nação está presente em nossas instituições negras, está presente, por exemplo, em uma umbanda que recebe de braços abertos católicos, espíritas, budistas etc. O nosso projeto é efetivamente de democracia, de sociedade justa, com todos os segmentos que a acompanham e igualitária com relação a todos os segmentos” (GONZALEZ, 2020, p. 234).

Para ser projeto de nação, se for “Nação”, deve ser forjado com e pelo povo; deve assegurar justiça e democracia. Para ser democrático, este projeto deve ser antirracista e antissexista!

Caracas, 6 de novembro de 2022.

Nota

[1] O Discurso na Constituinte de Lélia González encontra-se no livro Por um feminismo afro-latino-americano, que reúne diversos textos de Lélia, organizado Por Flávia Rios e Márcia Lima, publicado em 2020 pela editora Zahar. Para a elaboração do presente texto, utilizei como referências as elaborações de Lélia contidas nos seguintes ensaios: Discurso na constituinte (1987); Racismo e sexismo na cultura brasileira; Por um feminismo afro-latino-americano; A questão negra no Brasil. Todos esses ensaios estão reunidos no livro mencionado acima e organizado por LIMA & RIOS.


*Militante do Setor de Educação e atualmente brigadista na Venezuela, membro do Grupo de Estudos Terra, Raça e Classe do MST.

**Editado por Solange Engelmann

Lélia González concluir ser necessário pensar e propor um feminismo afro-latinoamericano. Foto: Fundação Cultural Palmares/Divulgação 

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