Alexandre de Moraes. Por Tarso Genro

Reflexões sobre o papel do ministro do STF na resistência à autocracia bolsonarista

Em A Terra é Redonda

Muitas pessoas de dentro das instituições do Estado – aqui quero me referir a estas sem compará-las com aquelas que na sociedade civil e nos partidos lutaram heroicamente para sustar o avanço do fascismo – merecerão serem lembradas ao longo da nossa história por não desistirem da democracia, num momento de avanço do fascismo em nosso pais. São merecedoras de destaque, pela sua coragem e determinação de denunciar e resistir aos assédios do mal, à ira do seu mito e inclusive aos apelos de moderação da sua conduta.

Estes apelos à moderação para resistir eram e são feitos como se estivéssemos enfrentando adversários políticos normais da democracia, não um grupo criminoso organizado no Estado para dissolver o Estado de Direito e subordinar todos os seus aparatos à direção unívoca e arbitrária do seu líder – megalômano sem projeto – e também diretor criminoso de um grupo político familiar e não familiar, totalmente fora da lei e radicalmente contra a ordem democrática de 1988.

O deputado socialista Giacomo Matteotti, radical na luta antifascista, democrata de esquerda e igualmente de oposição à linha dos comunistas italianos, na fervilhante disputa sobre o futuro da Itália no Século XX, apresentara ao Parlamento (sessão de 30 de maio de 1924) provas das ilegalidades, financiamentos criminosos, violências e assassinatos cometidos por Mussolini e suas esquadras na campanha eleitoral. Era o dia em que Matteotti fora à tribuna fazer mais uma acusação contra o Duce, afirmando que ele “usaria da força” para – a partir da maioria eleitoral obtida mediante violências e fraudes eleitorais – impor uma ditadura à República italiana.

Mussolini furioso – no ato e ainda no recinto parlamentar – ordenou então aos seus que castigassem Matteotti “por sua insolência”. Depois de pronunciar sua oração, em 30 de maio de 1924 o deputado ameaçado dissera aos seus colegas de bancada: “Agora podem preparar minha oração fúnebre”. Em 10 de junho de 1924, em Roma, ele é assassinado a punhaladas, depois de ter sido espancado por seus múltiplos assassinos. Assassinatos análogos a este, já ocorreram no país e mais ocorreriam não fossem a resistência popular e a coragem de algumas pessoas de dentro e de fora do próprio aparato de Estado.

Prestemos atenção em dois pequenos fatos que caracterizam todo um período neste ciclo: um cidadão indicado como líder de um grupo neonazista em Casca, no Rio Grande do Sul, sente-se à vontade para entrar com violência num escritório de advocacia, neste 23 de novembro de 2022 e espancar uma advogada que denunciara ameaças neonazistas na cidade, seguindo-a até a rua, onde abertamente prossegue com sua explosão de ódio. O cidadão – evidentemente de extrema periculosidade – vai à Polícia, é ouvido e a seguir liberado. No dia da eleição, nas regiões em que o candidato Lula, tem apoio maciço, ônibus são bloqueados, as pessoas são obrigadas a postar-se como presas, com as mãos à cabeça, num processo de intimidação pública à cidadania, que não se via nem nas eleições rituais durante o regime militar.

Contraponto: em pleno ano da graça de 1972 em que a ditadura civil-militar no Brasil estava em alta, mas sob a chancela do Ministério da Educação – com a anuência do Conselho Federal de Educação e Cultura – é republicado o livro antológico de Djacir Menezes O Brasil no pensamento brasileiro (de 1956), composto por textos lapidares da nossa elite intelectual, das mais variadas origens ideológicas. Parte da esquerda ainda tentava resistir de forma armada à ditadura –sem sucesso por falta de meios e apoio popular – e Golbery ainda não tinha entrado em ação de forma aberta, para encaminhar a distensão “lenta, gradual e segura”.

Na obra estão Moysés Vellinho, José Honório Rodrigues, Alceu de Amoroso Lima, Anísio Teixeira, Pontes de Miranda, José de Alencar, Victor Nunes Leal, Josué de Castro, Gustavo Corção e Caio Prado Júnior, para mencionar apenas alguns dos “grandes” que foram selecionados. Concluam sobre a diferença com o tempo presente: de um lado, nos idos de 1970, uma ditadura que tem um projeto autoritário de país, integrado no campo imperialista e antissoviético, que publica textos de diferentes visões de mundo, no auge da sua força.

De outro lado – hoje – num Governo de medíocres incultos, sectários e extremistas de direita, indica-se para Ministério de Educação um tal de Weintraub, que cultuava como seu líder intelectual e moral um “astrólogo” facínora, tido por ele como referência ética e cultural. É o mesmo governo que designa como Ministro de Relações Exteriores um tipo ignorante como Ernesto Araújo, que aposta que o melhor para o seu país é ser um pária mundial! A identificação do nosso país com Olavo de Carvalho e com a vontade retrógada e medieval de nos tornarmos um país pária mundial vai custar muito para ser superada nos países civilizados, independentemente dos seus Governos, mais ou menos acessíveis à democracia política moderna.

Como isso foi possível? Quando foi implantado o Regime Militar de 1964 os militares já tinham uma elite política a seu serviço na sociedade civil, promovendo a organização do golpe e formando, depois, um poderoso partido político servil ao governo, cujo funcionamento disciplinado ocorreu por no mínimo dez anos, até desgastar-se, processualmente com as crises sucessivas do modelo econômico. É importante salientar que no golpe de 1964 os militares tinham um projeto para o país e tinham uma representação política forte nos partidos da direita conservadora, que interagiam com a intelectualidade da academia e fora dela e com as lideranças mais proeminentes da sociedade civil orientada para o conservadorismo e o ritualismo democrático.

No golpismo bolsonárico o “líder” se apressou em montar estruturas paralelas junto ao crime organizado e armar civis para disputar o monopólio da força e das armas com as próprias instituições militares. No episódio atual, portanto, Bolsonaro – o “mito” – tentou formar o “partido militar” depois da eleição, buscando cooptar centenas de militares para cargos de governo, mas sem conseguir dominar a caserna. Sua pobreza moral e intelectual, sua incapacidade de formular um projeto de nação, por mais tacanho que fosse, impediu que ele se tornasse um verdadeiro líder das corporações armadas, o que impediu a tentativa de mais um golpe clássico, de caráter militar, na América Latina, que poderia ter sucesso se conseguisse acolhimento no exterior.

Talvez aquele volume de Djacir Menezes seja pouco lembrado pelos nossos jovens pensadores da política e da sociologia no Brasil, embora ele possa fazer toda a diferença para marcar a especificidade, entre o que ocorreu no Brasil nos anos do Regime Militar – à época associado plenamente aos desígnios imperialistas dos Estados Unidos – e aquilo que ocorreu de distópico e duplamente decadente, no regime político representativo do nosso país, que redundou na eleição de um Capitão reformado que veio “para destruir”, como ele mesmo declarou em várias oportunidades.

A decadência da nossa representação liberal-democrática ocorreu, de uma parte, primeiramente porque no próprio exercício democrático da política (que se mantém à beira do precipício infinito) a ordem passou a ser rompida sem que fosse rasgada formalmente a Constituição; num segundo momento, tal ruptura processual tornou-se hegemônica, por um largo tempo, com o apoio dos principais meios de comunicação, esperançosos – junto com a maioria dos empresários que os financiam – que Jair Bolsonaro destruísse a proteção social e trabalhista, depois de obter uma ampla maioria popular.

A maioria delegante outorga nas eleições, então, um mandato legítimo para a extrema direita expandir tranquilamente seu ódio assassino, abrigada dentro das instituições do Estado, que estão divididas e vacilantes, entre o oportunismo adesista ao fascismo, como ocorrera na Alemanha e na Itália e a manutenção da legalidade democrática do pacto de 1988. Feitas as principais reformas, todavia, vem o Orçamento Secreto, que traz à tona um projeto de poder que desloca do poder orçamentário as elites capitalistas para fora das “regras do jogo” previsto na Lei Maior, quando estas passam a buscar na chamada “terceira via” uma solução para sua crise de hegemonia política.

A instituição militar, portanto, não gerou de forma organizada uma situação eleitoral favorável para Bolsonaro ser reeleito, nem se entregou em massa para sua defesa incondicional, diferentemente do que ocorrera em 1964. As formas de ilegalidade cometidas em 1964 – pronunciamento militar seguido da destruição do tecido constitucional legítimo para tentar legitimar outro – foi gerada por militares e civis que se rebelaram “nos idos de março” contra a “causa” comunista, com a defesa de um projeto de Estado-nação forte e autoritário, que – segundo seus líderes civis e militares – integraria o país (por uma ditadura datada) no “mundo ocidental e cristão”.

Já no caso do ascenso do “regime bolsonárico” – um político medíocre que disse ser adepto do assassinato dos seus adversários e ter afirmado que viria para “destruir”, há uma corrosão do sistema “por dentro” das instituições. E ele o faz com o apoio majoritário do Congresso e ergue o fascismo – sem o apoio expresso ou o estímulo das instituições militares – à condição de uma alternativa política concreta, quase consagrada num processo eleitoral de reeleição, no qual ele lutou até o fim para fraudar. Os tempos já eram outros, a grande imprensa e as elites burguesas saturaram da sua vulgaridade e temeram que a destruição do país, que ele já estava executando, pudesse chegar aos seus negócios de uma maneira avassaladora.

M. filho do século é o livro de Antonio Scurati, que narra a ação política de Mussolini entre o período que vai de 1919 e 1925, narrativa calcada numa vasta documentação da época, que mostra o ascenso da vontade contra a força das instituições. Aponta os namoros dos velhos políticos liberais italianos com o autoritarismo, a cínica postura dos monárquicos, a tentativa de cooptar os intelectuais – no que M. foi bem-sucedido em parte – a grandeza épica da fala do “mito”, reinventando o passado e redesenhando as promessas para ao futuro, junto aos ouvidos das massas cansadas do liberal–democratismo retórico, sem resultados na sua vida cotidiana.

O filho do século, no protofascismo brasileiro, todavia, não estava próximo às estruturas do Estado, nos lugares onde se reproduzia o golpismo bolsonárico (Congresso e Executivo), nem na sociedade civil, que as lideranças fascistas tentavam se organizar com dinheiro e com as promessas utópicas da volta ao passado medieval. Nem era um partido de oposição, nem um mito, nem um grupo; nem era um político de vulto e de responsabilidade como Lula. O filho do século não estava fascinado em observar diretamente o “fascismo societal” em curso, pois era “por dentro do Estado”, submetendo Executivo e as representações do Parlamento que o golpe poderia prosperar. Não tremeu de medo nem vacilou: usou e usa capa preta e não tem vínculos ideológicos com a esquerda.

“Xandão”, sem se impressionar com os blefes golpistas e suas ameaças de morte, é o nosso filho do século nas instituições do Estado, de modo inverso ao de Mussolini, descrito por Scuratti: sua arma foi e é a Constituição e sua vontade corajosa dentro do STF, foi a maior de todas, desde que a Constituição de 1988 foi proclamada por Ulysses Guimarães, que tinha ”nojo da ditadura” e de todos os ditadores. Provisoriamente, a democracia venceu, mas agora temos que vencer o ódio que os fascistas disseminaram como uma peste medieval, cuja vacina – desdobrada no tempo – deve ser mais democracia, mais comida na mesa, mais educação, liberdade e reconciliação com um futuro de segurança e paz: sem armas e sem gangues de assassinos daqueles “filhos do século” que cultuam a morte e a violência infinita.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

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