Quilombos no MA sofreram oito ataques desde o fim das eleições

Casos incluem ameaças de expulsão e até de morte por parte de fazendeiros, incêndios, desmatamento ilegal e invasões; organizações sociais denunciam inércia dos governos e pedem proteção à vida, à saúde e à integridade dos moradores

Por Mariana Franco Ramos, em De Olho nos Ruralistas

Quilombos no Maranhão estão sofrendo ataques sistemáticos desde o fim do segundo turno das eleições, quando Jair Bolsonaro (PL) foi derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas urnas. Segundo a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado (Fetaema), ao menos oito casos graves já foram registrados, sendo quatro deles no povoado Marmorana e Boa Hora III, região de conflito no município de Alto Alegre do Maranhão.

Recordista de assassinatos no campo — foram nove em 2021 —, conforme relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Maranhão novamente desponta como principal foco dos crimes contra quilombolas. Em trinta anos, a Fetaema registrou mais de 140 homicídios e uma taxa de resolução baixíssima, de 5%, como o De Olho nos Ruralistas noticiou: “Assassinatos, incêndios e envenenamento marcam conflitos no campo no Maranhão“.

Há pouco menos de um mês, o observatório mostrou, em vídeo, que fazendeiros estão aproveitando o fim do governo para desmatar, destruir e invadir, em diversos cantos do país. De lá para cá, o número de ocorrências cresceu, assim como o temor dos moradores. Assista:

MORADORES ACUSAM FAZENDEIRO DE DESTRUIR POÇO E FICAM SEM ÁGUA

Antônio Márcio de Sousa Oliveira, dono da loja Exata Magazine, é apontado como articulador das ocorrências em Marmorana. Segundo a denúncia recebida pela Fetaema, no dia 26 de setembro ele já havia destruído um poço artesanal. Hoje, os moradores precisam usar a água de um açude destinado a cavalos e bois. Depois, em 31 de outubro, uma roça foi criminosamente incendiada. As famílias plantavam no local, de 60 hectares, alimentos como arroz, milho e palmeiras de babaçu. O fazendeiro nega as acusações.

Em novembro, os ataques continuaram. Em alguns deles, homens desconhecidos chegaram armados e, com o uso de drones, passaram a monitorar as atividades cotidianas dos moradores. No dia 18, dois incêndios atingiram as residências de Jessica dos Reis Martins e Jardiel da Silva. A companheira de Silva, Ana Carla, grávida de sete meses, passou mal, em razão de ter inalado fumaça.

O casal perdeu todos os seus pertences e agora depende de doações para se alimentar. As vítimas registraram boletins de ocorrência na delegacia da cidade.

BOLSONARO CUMPRIU “PROMESSA” DE NÃO DEMARCAR TERRITÓRIOS

“O Bolsonaro cumpriu o que tinha falado em 2018, que não ia demarcar um palmo de terra indígena nem fazer regularização fundiária de quilombolas”. A declaração é de Edimilson Costa da Silva, secretário de políticas agrárias da Fetaema, que denuncia a inércia por parte do governo federal na resolução do problema.

“Ele deu poderes aos fazendeiros para invadir terras ocupadas já há bastante tempo, não só por quilombolas, mas também por quebradeiras de cocos, comunidades tradicionais, e até mesmo áreas de assentamento de reforma agrária”, conta. “A gente tem feito várias denúncias aqui e internacionais para tentar amenizar a situação”.

Representantes da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) estiveram recentemente no local. “O caso foi tratado até no Conselho Interamericano de Direitos Humanos (CIDH)”, diz Silva.

As Polícias Civil e Militar, com apoio da Secretaria do Meio Ambiente (Sema), flagraram, também em 18 de novembro, desmatamento ilegal de 73 hectares de mata nativa e de palmeiras de babaçu. Oliveira foi preso em flagrante, por não possuir a licença de autorização de supressão vegetal, entretanto, pagou uma fiança e saiu em liberdade. “O grileiro chegou, disse que a área era dele, sem apresentar nenhuma documentação lícita, e provocou desmatamento”, relatou.

PROCESSO DE TITULAÇÃO AVANÇOU POUCO DESDE 2006

Formado por trinta famílias de trabalhadores rurais — em torno de 160 pessoas, incluindo idosos e crianças  —, o Território Marmorana e Boa Hora III existe há mais de cem anos e é reconhecido pela Fundação Cultural Palmares desde 2007. O processo de titulação, porém, tramita junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) desde 2006, com poucos avanços, conforme os camponeses.

As comunidades se dedicam à coleta extrativista, que consiste especialmente na extração do coco babaçu das matas do entorno, bem como da agricultura camponesa, de forma coletiva e por divisão de gênero. Cultivam roças de feijão, milho, arroz, batata, mandioca e frutas nativas. Promovem, ainda, a pesca artesanal, além de criarem animais, como bois, galinhas, bodes, patos e porcos, para subsistência.

Movimentos e organizações sociais do Maranhão, integrantes da Campanha Contra a Violência no Campo, divulgaram em 23 de novembro uma nota pública denunciando os ataques sofridos. “A situação de violência e perigo em que se encontram os moradores do Território Quilombola Boa Hora III e Marmorana é por demais grave”, escreveram.

No documento, eles pedem que os governos adotem medidas para proteger “a vida, a saúde e a integridade pessoal” de todas as famílias, cobram a conclusão do processo de titulação, o início de uma investigação ampla dos crimes cometidos, a doação de cestas básicas para as famílias que perderam tudo em razão do incêndio e a reconstrução das casas incendiadas.

A Fetaema também acionou o governo do Maranhão, por meio da Sema, e o Ministério Público Federal (MPF), solicitando que investiguem os crimes e protejam os moradores. O MPF, por sua vez, ajuizou uma ação civil pública, em tramitação na Vara Federal de Bacabal, para que o Incra conclua o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) das comunidades e promova a execução de medidas administrativas e judiciais necessárias em defesa do patrimônio e da posse dos quilombolas.

SITUAÇÕES NÃO SÃO NOVIDADE, MAS SE AGRAVARAM NAS ÚLTIMAS SEMANAS

Os casos em Alto Alegre do Maranhão não são isolados. A Fetaema acompanha mais de 200 conflitos agrários no estado. “E a todo momento a gente recebe denúncias”, diz o secretário de políticas agrárias. “O maior número de assassinatos foi de quilombolas — só neste ano, já foram três”, completa. “Percebe-se que eles são os mais lesados nesse contexto”.

Em 17 de novembro, moradores da localidade Mimoso, em Caxias, denunciaram ações frequentes e intensas de desmatamento ilegal de córrego na área de conflito. De acordo com eles, vários homens estariam se deslocando para o território, ocupado por posseiros, a fim de garantir a empreitada criminosa dos fazendeiros.

O mesmo aconteceu no Quilombo Onça, em Santa Inês, no dia 31 de outubro, e em Pindoval de Fama, em Turilândia, em 24 de novembro, quando um homem aproveitou o jogo da seleção brasileira contra a Sérvia, pela Copa do Mundo, para incendiar mais de 300 hectares.

“São casos que estão se perpetuando há bastante tempo, mas a situação foi piorando”, explicou Edimilson Costa da Silva. “Eram intimidações, ameaças e ficava por aquilo; agora estão levando maquinário, fazendo destruição da vegetação. É conflito agrário atrelado com ambiental”. Outros povoados tradicionais, como Jaguarana, Riacho dos Cavalos, Axixá, Carolina e Santa Rosa, também sofrem com ameaças de expulsão e morte.

SOJEIRO PARANAENSE AMEAÇOU IDOSA E ESPALHOU TERROR NA REGIÃO

A situação mais recente se deu no Território Quilombola Tanque da Rodagem/São João, na zona rural do município de Matões. O sojeiro paranaense Eliberto Stein ameaçou uma senhora, afirmando que ela teria de encontrar e comprar outra terra para morar.

Segundo a CPT, a mulher de 68 anos informou que o genro de Stein simulou uma arma usando uma das mãos e a mostrou à idosa para sinalizar o que aconteceria caso os moradores não saíssem. A família disputa terras na região para implantação de monocultivo de soja.

Não foi a primeira vez que o empresário espalhou o terror na região. Em setembro de 2021, os quilombolas apreenderam dois tratores e um correntão utilizados por ele e por um de seus sócios, Silvano Marcelo de Oliveira, para desmatar grandes áreas de Cerrado. De acordo com a CPT, os fazendeiros se beneficiaram de uma licença com suspeita de irregularidade expedida pela Sema.

Na ocasião, os moradores fecharam a rodovia MA-262 em protesto. Jagunços armados formaram outro bloqueio na estrada e permaneceram por cinco dias, amedrontando as famílias. Ainda segundo a Pastoral, os bloqueios só foram desfeitos depois que a Polícia Militar recolheu o maquinário e o devolveu aos empresários sem qualquer procedimento de investigação. Os jagunços fugiram e ninguém foi punido.

GOVERNO DO MARANHÃO DIZ QUE “ACOMPANHA” CONFLITO

A reportagem do De Olho nos Ruralistas procurou o governo do Maranhão para saber que medidas estaria adotando para coibir os ataques a quilombos. A Polícia Civil enviou uma nota informando que a delegacia de Alto Alegre do Maranhão começou a ouvir os moradores das comunidades Boa Hora e Marmorana, que registraram suas respectivas ocorrências, e que o caso é acompanhado pela 16ª Delegacia Regional de Bacabal.

A PC-MA comunicou, ainda, que requisitou a presença de uma equipe do Instituto de Criminalística (Icrim) para realizar a perícia nos locais, com o objetivo de coletar indícios de crime, e que o material vai auxiliar nas investigações. A Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop), por sua vez, disse que acompanha o conflito na comunidade e que “adota medidas visando a sua resolução”.

O órgão destacou que, em outubro , articulou ações de segurança e fiscalização ambiental que resultaram na execução de operação conjunta entre a Secretaria de Segurança Pública, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Naturais e Sedihpop para averiguar a ocorrência de crimes ambientais e ameaças que estariam prejudicando os moradores da comunidade.

“Em seguida, no trâmite da Portaria Conjunta n. 01/2022 – Sedihpop/Sema, a secretaria apontou, em processo de licenciamento ambiental identificado dentro do território, a necessidade de realização de consulta prévia, livre e informada, de modo a preservar os direitos da comunidade tradicional ali localizada”, prossegue a nota. “Desde então, as ações de repressão às ilegalidades detectadas estão sendo conduzidas pelos órgãos competentes”.

A Superintendência Regional do Incra informou que o processo de titulação referente às comunidades encontra-se atualmente na fase de elaboração do RTID. A autarquia acrescentou que “tem adotado todos os procedimentos estabelecidos pela legislação vigente”.

Imagem principal (Reprodução): fazendeiros aproveitam fim do governo Bolsonaro para desmatar territórios ancestrais e ameaçar quilombolas

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