Parte do GT de Relações Exteriores da transição, Adriana Abdenur defende fortalecimento da cooperação Sul-Sul
Por Anna Beatriz Anjos, Agência Pública
O governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve colocar a questão climática como centro da estratégia de inserção internacional do Brasil. Essa é a avaliação da socióloga Adriana Abdenur, integrante da equipe de transição de Lula no grupo de trabalho das Relações Exteriores e diretora executiva da Plataforma CIPÓ, instituto de pesquisa dedicado a questões de clima, paz e governança. Em entrevista à Agência Pública, ela defende que clima e meio ambiente podem ajudar o país a retomar a credibilidade perdida durante os anos de governo de Jair Bolsonaro e alcançar protagonismo a nível global.
Junto aos ex-ministros Izabella Teixeira e Jaques Wagner e ao ex-secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e diretor da Open Society Foundations Pedro Abramovay – todos também na equipe de transição –, Abdenur elaborou um documento com diretrizes para a política externa brasileira entregue a Lula durante a 27ª Conferência do Clima da ONU, a COP27, realizada em novembro no Egito. A conferência foi simbólica por ter sido a primeira viagem internacional do petista após sua eleição. Em pronunciamento oficial durante o evento, Lula se comprometeu com alguns dos pontos abordados pelos autores no documento, como a reativação do Fundo Amazônia com a Noruega e Alemanha e a intenção de oferecer o Brasil como sede da COP30, em 2025.
O documento recomenda ainda que o Brasil retome os espaços de cooperação Sul-Sul escanteados por Bolsonaro, como o BRICS (bloco formado com Rússia, Índia, China e África do Sul), mas também os arranjos regionais, como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), abandonadas pelo atual presidente. “Sabemos que os desafios climáticos e ambientais perpassam as fronteiras da região, são compartilhados diretamente pelos países, sobretudo os sul-americanos, mas alguns também com a América Central e o Caribe. Portanto, precisamos recuperar e ampliar essa cooperação regional, inclusive de forma preventiva”, destaca a socióloga.
Além disso, o texto sugere o fortalecimento de arranjos de integração entre países amazônicos, como a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Durante a campanha, o ex-chanceler e principal conselheiro de Lula para as Relações Exteriores, Celso Amorim, já havia sugerido que o presidente eleito propusesse uma cúpula da OTCA logo no primeiro ano do governo, intenção reforçada pelo petista na COP27. “Temos uma nova possibilidade de cooperação, não apenas porque o novo governo vai priorizar a normalização das relações com a Venezuela, mas também porque temos um momento muito interessante de alinhamento político entre o Brasil e a Colômbia”, explica Abdenur.
Outro tema que Lula mencionou em suas manifestações durante a conferência do clima foi a necessidade de reforma da governança global, que pode ser um ponto de pressão do Brasil durante 2024, ano em que ocupará a presidência do G20, o grupo das maiores economias do mundo. “O Brasil deve retomar a discussão da reforma da governança global levantando, novamente, as bandeiras defendidas historicamente pelos países em desenvolvimento e colocando a agenda climática e ambiental como indo além da mitigação, trazendo atenção para adaptação, perdas e danos, financiamento climático e desenvolvimento sustentável, tendo o conceito de justiça climática no cerne de todas essas agendas”, pontua Abdenur.
Leia abaixo a íntegra da entrevista.
O documento fornece diretrizes para que o clima e o meio ambiente sejam agendas centrais na política externa brasileira. Por que isso será importante para o país a curto e longo prazo?
No curto prazo, a retração da política externa durante os últimos quatro anos de governo Bolsonaro levou a uma baixa de credibilidade do país nos fóruns internacionais, o que tem um impacto transversal sobre a atuação do Brasil não apenas em termos de política externa, mas em toda a sua estratégia de inserção internacional. Isso passa pela questão do desmatamento. Há uma grande preocupação na comunidade internacional em relação às mensagens e políticas anti-ambientais promovidas pelo governo Bolsonaro, então o documento aponta essa questão como central para a recuperação da credibilidade do Brasil, mas também para o resgate da capacidade de negociação que o nosso país tem não apenas em temas climáticos e ambientais, como em todas as pautas que fazem parte dessa agenda. A longo prazo, sabemos que a crise climática é inescapável. Isso já está plenamente documentado, por exemplo, pelos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas [IPCC] e, portanto, há um imperativo de cooperação, ou seja, o Brasil precisa não apenas se preparar, por exemplo, através da adaptação, mas também contribuir para as soluções. Não apenas de mitigação, mas também adaptação, perdas e danos, financiamento climático. Mais amplamente, outros países e algumas regiões já enxergam a questão climática como central a uma visão geopolítica de atuação no plano internacional. Isso também traz as suas oportunidades. Ou seja, a sustentabilidade na produção e no comércio das commodities ou no desenvolvimento de um setor de serviços que seja mais sustentável e mais justo pode se transformar em vantagens competitivas na medida em que consumidores estão cada vez mais cientes da origem e dos impactos da produção de commodities, por exemplo, e exigem produtos mais sustentáveis. A questão climática pode ser colocada como uma oportunidade para que o Brasil se destaque política e economicamente.
Em pronunciamento oficial na COP27, Lula sinalizou que seu governo proporá a realização da Cúpula dos Países Membros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Qual o histórico da OTCA e porque ele deve ser prioridade para o Brasil?
A OTCA não é uma organização nova, ela surge a partir de 1995 como resultado do Tratado de Cooperação Amazônica assinado lá atrás, durante a Guerra Fria, em julho de 1978, com objetivos explícitos de preservação do meio ambiente e uso racional dos recursos naturais na Amazônia. É uma organização única e estratégica para o momento atual porque reúne os países da bacia amazônica, e portanto representa um espaço de cooperação que pode ser aproveitado mais amplamente para que novas bases de integração regional possam ser colocadas, sobretudo nessa área climática e ambiental. Passamos por um momento em que a construção da confiança mútua entre os países da região amazônica foi muitíssimo abalada e portas se fecharam, sobretudo da parte brasileira. Agora, temos uma nova possibilidade de cooperação, não apenas porque o novo governo vai priorizar a normalização das relações com a Venezuela, mas também porque temos um momento muito interessante de alinhamento político entre o Brasil e a Colômbia. É claro que estamos observando, no caso do Peru, o novo episódio de instabilidade, que faz parte de um padrão recorrente no país, mas havendo ali alguma retomada de normalidade, existe também a possibilidade da ampliação da cooperação em torno das questões amazônicas. A OTCA tem sido tocada pelo Brasil com muita destreza diplomática: vale a pena lembrar que, no caso da Venezuela, havia participação tanto do governo de Nicolás Maduro quanto da representação do Juan Guaidó [presidente autoproclamado da Venezuela]. E o embaixador brasileiro que esteve a cargo disso soube tocar isso com muita destreza. Então, há todo um trabalho que tem sido tocado, a despeito das orientações do governo Bolsonaro, que pode ser aproveitado.
Além da OTCA, já existem outras possibilidades de cooperação internacional entre os países amazônicos?
Queria destacar dois outros elementos muito estratégicos. Há o Parlamento Amazônico, um espaço promissor que pode ser fortalecido inclusive como forma de trazer a sociedade civil mais próxima à OTCA. Pelo Tratado, ela é uma organização entre Estados, mas é importante que haja inclusão de parlamentares e consequentemente da sociedade civil. O outro elemento é o Observatório Regional da Amazônia, uma sala de situação, um Early Warning System em construção dentro do âmbito da OTCA que reúne dados sobre questões pertinentes à região, desde a gestão hídrica até questões relevantes às populações indígenas, e que pode servir como base para novos laços de cooperação técnica entre os países. Eu visitei esse espaço, existe literalmente uma sala com telões e especialistas que estão construindo essas bases de dados, acompanhando e tentando detectar possíveis crises hídricas na Amazônia, por exemplo, e é um esforço muito impressionante que considero poder servir como base para novos laços bilaterais e multilaterais na região.
O documento recomenda ainda ao governo Lula a revitalização “de arranjos regionais esvaziados pelo atual governo”, com o protagonismo do tripé Mercosul-Unasul-OTCA e o fortalecimento da CELAC, além da retomada de espaços de cooperação Sul-Sul como o BRICS. Por que eles são estratégicos, na sua avaliação?
Há a necessidade de reinvestir na integração regional e isso pode ser feito a partir de diferentes arranjos regionais, alguns dos quais foram plenamente esvaziados, como no caso da Unasul. Outros, sobretudo o Mercosul, têm sido objeto de uma agenda de flexibilização que precisa ser revista. Os temas de clima e meio ambiente são essenciais à recolocação de agendas de integração dentro desses arcabouços regionais porque sabemos que os desafios climáticos e ambientais perpassam as fronteiras da região, são compartilhados diretamente pelos países, sobretudo os sul-americanos, mas alguns também com a América Central e o Caribe. Portanto, precisamos recuperar e ampliar essa cooperação regional, inclusive de forma preventiva. Como a América Latina e o Caribe podem se preparar para os desafios colocados pela emergência climática e ambientais? Mas também como novas formas de cooperação podem surgir para fortalecer a soberania e resiliência da região? Temos que lembrar que, não apenas em relação à crise climática, mas no contexto da pandemia de Covid-19 e das respostas altamente injustas apresentadas pelos países ricos, há uma necessidade, por exemplo, de reestruturar cadeias de valor de forma a assegurar a soberania e a segurança alimentar, energética e hídrica aqui na região. Então essas organizações são fundamentais.
Esses espaços já existiam antes com foco em cooperação econômica, por exemplo. Por que são tão estratégicos também para a cooperação em clima e meio ambiente?
O Brasil pode colocar diferentes partes da agenda climática e ambiental dentro dessas organizações de acordo com a composição dos Estados membros e, enfim, das capacidades para lidar com determinadas questões. Na Unasul, por exemplo, seria possível não apenas fortalecer a agenda ambiental, que já existe através de um conselho, como também a questão da saúde pública, que tem sua intercessão com a emergência climática – a gente vê isso na pandemia que ainda vivenciamos na região – e também potencialmente através da criação de um novo conselho de clima e desenvolvimento sustentável para a região como um todo. Em relação à CELAC, é um espaço muito importante para o Brasil porque inclui os países do Caribe. Muitos deles já desempenham um papel fundamental na construção das agendas climáticas nos espaços da COP que não recebem a atenção adequada: a gente sabe que esses espaços são dominados pelos países ricos e pela agenda da mitigação, que é muito importante, mas é necessário abrir mais espaço para a adaptação, perdas e danos e financiamento climático. Em Sharm el-Sheik houve um avanço importante liderado pelos países mais vulneráveis e pela sociedade civil que desembocou na criação de um fundo para perdas e danos, mas isso ainda não representa um compromisso por parte dos países ricos em termos de financiamento climático para essa agenda. É uma bandeira que o Brasil pode levantar no contexto da governança global, mas que também pode avançar através da CELAC, dado que esses países estão incluídos ali e que estão já bem organizados em torno dessa agenda, que pode ser bem estratégica para o Brasil.
O fortalecimento dos BRICS faz sentido diante da guerra na Ucrânia e as tentativas de isolamento da Rússia, sobretudo com sanções econômicas?
O BRICS já existe, o Brasil já investe nesse arranjo desde a sua formação – inclusive, foi fundamental para sua criação. É uma coalizão que já dispõe de mecanismos concretos, sobretudo o novo banco de desenvolvimento, e, através dessa configuração, o Brasil pode contribuir para agendas que estão mais distantes das questões de paz e segurança internacional, eu diria que em especial as agendas de cooperação técnica, não apenas entre os BRICS, mas também com países terceiros, por exemplo, na África Subsaariana ou até mesmo aqui na América Latina e Caribe. Acho que cabe ao Brasil aprofundar as discussões de cooperação em questões como agricultura de baixo carbono, mas também é um arranjo que permanece importante para uma agenda que será muito cara ao novo governo: a reforma da governança global, em especial as instituições de Bretton Woods. O BRICS já desempenha historicamente um papel nesse sentido, pressionando pelas reformas. Mas chegou o momento em que esse caminho pode assumir um recorte mais concreto através da Iniciativa de Bridgetown [plano levado à COP27 pela primeira-ministra de Barbados Mia Mottley para que organismos financeiros internacionais facilitem o acesso a recursos aos países em desenvolvimento que mais sofrem com os impactos das mudanças climáticas].
Por que é necessária a reforma da arquitetura de financiamento climático internacional, principalmente das Instituições de Bretton Woods – o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial –, criadas no fim da Segunda Guerra Mundial para instaurar uma nova ordem econômica mundial no período pós-guerra?
Tanto o Banco Mundial quanto o Fundo Monetário Internacional estão absolutamente defasados em relação à nova realidade climática e às demandas colocadas pelos países em desenvolvimento. A Iniciativa de Bridgetown é muito importante e deve ser defendida pelo Brasil porque podemos voltar a desempenhar um papel fundamental na defesa de uma governança mais equitativa, justa e eficaz, e isso passa também pela defesa dos países de renda média baixa e renda baixa, que estão muito bem representados nessa iniciativa.
O documento fala também em construir “soberania nacional com responsabilidade”. O que significa esse conceito e como ele se opõe ao sentido de soberania adotado nos últimos quatro anos pelo governo Bolsonaro?
O Brasil historicamente defende um discurso de soberania, inclusive em relação à Amazônia, mas diferentes lideranças atribuem significados distintos a essa expressão. O que a gente percebe é que o presidente Bolsonaro enxerga a cooperação internacional e a soberania nacional como elementos mutuamente excludentes. Ou seja, ele enxerga, por exemplo, nas Nações Unidas e na cooperação mais amplamente uma ameaça à soberania nacional. Ao passo que o presidente Lula entende que, quando a cooperação internacional é construída com respeito mútuo e eficácia, pode contribuir para soberania nacional na medida em que amplia as capacidades do país de negociação não apenas na área climática, mas em outras também – comercial, política, etc. Para o presidente Lula é preciso estabelecer canais fortes de cooperação para fortalecer a soberania nacional. Essa é a diferença.
Vocês também sugerem que, colocando a justiça climática como cerne de sua estratégia internacional, o Brasil pode “influenciar, a partir de uma perspectiva do Sul, uma agenda que tradicionalmente é pautada a partir do Norte”. Quais mudanças essa nova perspectiva pode trazer?
Podemos identificar três mudanças necessárias na agenda climática. Em primeiro lugar, é necessário ir além da mitigação, que domina historicamente a agenda das COPs climáticas. É um tema essencial, mas não basta porque, sobretudo para os países em desenvolvimento, existe uma real necessidade de maior investimento em adaptação climática, em perdas e danos e, portanto, em financiamento climático. Em segundo lugar, a agenda de desenvolvimento sustentável, que tem perdido fôlego em relação a outras agendas da governança global, precisa ser resgatada, pois, novamente, não podemos ter ação climática sem paralelamente ou em conjunto investir no desenvolvimento. Estamos vivenciando um momento de grandes retrocessos no desenvolvimento, não apenas no combate à pobreza, mas também na erradicação da fome, então é necessário que isso seja resgatado, inclusive nos mais altos fóruns internacionais. Finalmente, existe uma grande lacuna na agenda internacional que é a pauta da biodiversidade. O Brasil é o país mais biodiverso do mundo e a Convenção Sobre Diversidade Biológica [CBD, na sigla em inglês], assim como a Convenção Para o Combate À Desertificação [UNCCD, na sigla em inglês], recebem pouquíssima atenção em comparação à Convenção do Clima. Essa é uma agenda absolutamente estratégica, não apenas para o Brasil, mas para os países em desenvolvimento, inclusive porque grande parte dos países ditos megadiversos é de países em desenvolvimento. É importante também chamar a atenção para a intercessão entre as agendas, porque a gente sabe – isso já está amplamente documentado pelos cientistas – que atacando com eficácia a perda de biodiversidade também vamos solucionar parte do problema climático.
Durante a COP27 e a cúpula do G20, foi anunciado o acordo de cooperação entre Brasil, RDC e Indonésia para a proteção das florestas tropicais. Embora tenha sido firmada durante o governo Bolsonaro, a aliança também está nos planos de Lula, que prometeu em seu discurso na COP dar continuidade à iniciativa. Na sua análise, como o presidente eleito deve tratar essa parceria? O foco deve ser em financiamento ou abarcar outros aspectos?
Na verdade, essa é uma ideia bem mais antiga. O ex-ministro [do Itamaraty] Celso Amorim já defendeu em outras ocasiões uma cooperação entre bacias hidrográficas. E o presidente Lula, em seu discurso na COP, se comprometeu a levar adiante esse arranjo. Acho que isso tem pelo menos dois aspectos promissores. Em primeiro lugar, envia uma mensagem política bastante interessante de que a cooperação internacional também pode ser liderada por países do Sul, não apenas em termos de preservação dos biomas sensíveis, que são as florestas tropicais nesse caso, mas também em termos da promoção de cadeias de produtos livres de desmatamento, outros crimes ambientais e violações de direitos humanos. Isso precisa incluir não apenas países produtores que detêm florestas e onde a produção de commodities as está pressionando, o que inclui Brasil, Indonésia e a República Democrática do Congo, mas também os países que são importadores desses produtos e que, portanto, também têm o seu papel no esforço de acabar com esses crimes ambientais. Em segundo lugar, Brasil, Indonésia e República Democrática do Congo são países megadiversos, então o BIC pode se tornar também uma plataforma para mobilizar maior apoio pela agenda da diversidade biológica que mencionei anteriormente.
Em 2024, o Brasil presidirá o G20. Que oportunidades isso representa para o país, de forma geral e na agenda climática e do desenvolvimento sustentável?
Entendo como uma oportunidade imensa para a qual o Brasil precisa chegar muito bem preparado na intenção de levantar bandeiras não apenas da soberania alimentar, do uso mais justo da terra, levando em conta os desafios socioeconômicos provocados pela crise da inflação e pela interrupção das cadeias de suprimento, que a gente observa serem consequências também da pandemia de Covid, mas de uma função que o G20 desempenha desde a sua fundação que é o enfrentamento das crises financeiras globais. E aqui a ampliação do endividamento de países em desenvolvimento, sobretudo dos países mais pobres, é uma questão central. É preciso que o G20 seja aproveitado para lidar com essa crise que só se amplia à medida em que países ricos têm maior capacidade de enfrentamento da pandemia e da crise climática enquanto países de renda média baixa e renda baixa se encontram cada vez mais endividados. Apesar de o Brasil hoje em dia ser um país de renda média alta, acho que seria muito coerente com o seu histórico diplomático defender a causa do enfrentamento desse endividamento de uma maneira que também permita a esses países [de renda média baixa e renda baixa] se adaptarem cada vez mais à emergência climática. Quando digo que o Brasil precisa se preparar para essa presidência do G20, incluo não apenas o governo, mas também a sociedade civil. É muito importante que as universidades, think tanks, institutos de pesquisa, sindicatos e movimentos sociais se antecipem e ajudem a pautar os temas que o Brasil irá levantar no âmbito do G20.
Para o Brasil, como a agenda climática se relaciona com a pressão pela reforma da governança global?
Vivemos um momento em que o que se passa por reforma da governança global está sendo colocado predominantemente pelos países ricos e tende a ignorar as demandas históricas dos países em desenvolvimento. Um exemplo disso é a chamada Our Common Agenda, ou Nossa Agenda Comum, proposta pelo secretário-geral da ONU. É uma agenda que superficialmente parece colocar vários pontos importantes, mas que deixa de lado demandas históricas colocadas pelos países em desenvolvimento em relação à reforma da governança global. Isso inclui não apenas a reforma do Conselho de Segurança, que fica completamente engavetada por ela, mas também a centralidade das pautas do desenvolvimento, combate à pobreza, erradicação da fome e combate às desigualdades socioeconômicas. Isso é que deveria ser o cerne dessa agenda. O Brasil deve retomar a discussão da reforma da governança global levantando, novamente, as bandeiras defendidas historicamente pelos países em desenvolvimento e colocando a agenda climática e ambiental como indo além da mitigação, trazendo atenção para o que eu já mencionei: adaptação, perdas e danos, financiamento climático e desenvolvimento sustentável, tendo o conceito de justiça climática no cerne de todas essas agendas.
O que você pode dizer sobre os avanços dessas discussões no Grupo de Trabalho das Relações Exteriores?
Posso afirmar que há plena consciência, inclusive dentro do Itamaraty, da necessidade de ampliar as capacidades de atuação na agenda climática ambiental e de biodiversidade, independentemente do desenho institucional que o presidente Lula escolher. Aí queria frisar também algo que já foi colocado publicamente no boletim da transição, que é o fato de que a inadimplência do Brasil perante dezenas de organizações internacionais desemboca no risco muito iminente em muitas dessas organizações do Brasil perder poder de voto, inclusive na Assembleia Geral da ONU, que traz consequências muito concretas para várias áreas das políticas públicas. São R$ 5,5 bilhões devidos às organizações, e isso afeta não apenas a credibilidade, mas a capacidade de negociação do Brasil, inclusive nessa temática climática ambiental. É muito importante que o Brasil retome os pagamentos, priorizando, novamente, os espaços onde há risco iminente de perda de poder de voto.
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Imagem: Adriana Abdenur, integrante da equipe de transição de Lula no grupo de trabalho das Relações Exteriores – Gabrielle Alves/Plataforma CIPÓ