Incêndio em unidade de saúde de TI Yanomami revela ineficiência em operações contra garimpeiros

As Associações Yanomami Urihi e Hutukara voltam a denunciar a situação extrema de violação de direitos dos povos do território Yanomami

POR LÍGIA APEL, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI REGIONAL NORTE 1

A Urihi Associação Yanomami denunciou no dia 6 de dezembro, um incêndio na Unidade Básica de Saúde Yanomami (UBSY) de Homoxi, região localizada às margens do rio Catrimani, na Terra Indígena Yanomami (TIY), em Roraima. Em nota, o presidente da Urihi, Junior Hekurari, informou sobre o incêndio e disse que foi um ato criminoso cometido pelos garimpeiros que vivem na região, como forma de retaliação à operação Guardiões do Bioma, realizada pela Polícia Federal (PF) e Ibama no dia anterior, 5 de dezembro.

“Houve uma operação do Ibama e da Polícia Federal lá no Homoxi, onde queimaram máquinas e helicópteros dos garimpeiros. E aí, esse Posto da Unidade de Saúde apareceu queimado. Eu acredito que foram os próprios garimpeiros que tocaram fogo na Unidade, por raiva”, explica Hekurari.

A opinião é compartilhada por Dario Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, que divulgou imagens do posto queimado e afirmou que foram “os garimpeiros que queimaram o nosso posto de saúde Yanomami na região de Homoxi”.

“os garimpeiros que queimaram o nosso posto de saúde Yanomami na região de Homoxi”

A versão das lideranças foi desmentida pelos garimpeiros que afirmaram ser o próprio Ibama o autor do incêndio da UBSY. Em um outro informe, a acusação dos garimpeiros é contestada por Urihi Associação Yanomami por meio da publicação de imagens que revelam o posto intacto durante operação do órgão ambiental. Na postagem é informado, também, que o próprio Ibama desmentiu a acusação dos garimpeiros.

“Os garimpeiros têm divulgado que foi o Ibama que queimou, mas não foi. Na manhã da quinta-feira (08/12) tivemos acesso a um vídeo que mostra a unidade de saúde intacta durante a operação do Ibama. Também, recebemos informações que o órgão alegou que as denúncias dos garimpeiros são falsas e disse repudiar ‘qualquer ato ou ataque contra seus servidores, que atuam estritamente dentro dos limites legais, em operações conjuntas de combate aos crimes ambientais’”, informam os indígenas na postagem.

“Os garimpeiros têm divulgado que foi o Ibama que queimou, mas não foi”

Na tentativa de responsabilizar o Ibama, garimpeiros filmaram indígenas Yanomami de outra região, por eles aliciados, atribuindo à instituição a autoria do crime. “Os garimpeiros filmaram os Yanomami, e durante as gravações sugeriram que o crime havia sido cometido pelo Ibama. Neste mesmo vídeo, o invasor não revela sua identidade, apenas induz os indígenas a contestarem os fatos ocorridos naquela região. Os indígenas que foram filmados não pertencem à região do Homoxi, fazem parte da região do Haxiú, e segundo relatos, os mesmos trabalham juntamente com os garimpeiros, em troca de alimentação e roupas”, revela a nota

A postagem denuncia, ainda, a situação de violência que se mantém em território Yanomami: “A Terra Indígena Yanomami segue tomada pelos invasores, que aliciam as mulheres e induzem os homens a realizarem trabalhos, largando seus modos de vida”.

“A Terra Indígena Yanomami segue tomada pelos invasores”

Projeto político

Para Júnior Hekurari, as operações da Polícia Federal e Ibama trazem resultados positivos, mas os “garimpeiros são estratégicos e a área onde estão, são lugares muito grandes”, explica. Para ele, a resolução do problema depende da união dos órgãos competentes com uma operação continuada com planejamento e inteligência.

“Tem que se juntar a Polícia Federal, Ibama, Exército, porque o Exército é importante porque parte da TIY é fronteira, então é de Segurança Nacional. Então, tem que se juntar para fazer uma grande operação, continuada, planejada, de inteligência, em todo o território Yanomami. Com apoio do Exército, apoio do governo federal, helicópteros, tem que se concentrar todas essas operações dentro da TIY. Assim, vão limpar a TIY”, afirma a liderança ao lembrar da Operação Selva Livre realizada na década de 1990 e que obteve resultados importantes na desintrusão dos garimpeiros. “Já funcionou. Na década de 90, 92, tinha mais de 40 mil garimpeiros. A Operação Selva Livre se concentrou em Surucucu. Então, eles resolveram isso e mostraram que isso tem resultado. Se intencionam fazer isso de novo, vão limpar tudo”, considera Hekurari.

“Tem que se juntar a Polícia Federal, Ibama, Exército, porque parte da TIY é fronteira, então é de Segurança Nacional”

A Operação Selva Livre foi realizada pelo Exército Brasileiro no início dos anos 1990 e se concentrou na região de Surucucu, com a missão de “evacuar” os invasores da TIY. A operação identificou pistas de pouso, fez contato com os garimpeiros para “evacuação” voluntária com prazos determinados, acionou a Polícia Federal para providências criminais ao encontrar aeronaves e garimpos em funcionamento e emitiu ordem de prisão a venezuelanos armados que estavam em território nacional.

Segundo o Irmão Carlos Zacquini, que atua com os Yanomami desde os anos 1960, a Operação Selva Livre, realizada na mesma época da demarcação do território Yanomami, foi a única vez em que garimpeiros foram retirados da TIY com eficiência. “Em 90, 91 e 92 houve a única operação de retirada de garimpeiros da Terra Indígena Yanomami bem-sucedida. Comandada pelo delegado Paulo Cotrim, da PF. Nessa época a Terra Indígena Yanomami foi demarcada e homologada. Foram dinamitadas, inclusive várias pistas de pouso. Antes e depois disso só aconteceram ações pontuais, sem continuidade, e a situação só foi piorando”, explica.

“A Operação Selva Livre foi a única vez em que garimpeiros foram retirados da TIY com eficiência”

Júnior Hekurari e Zacquini entendem que são projetos políticos que definem a retirada ou o fortalecimento do garimpo no território Yanomami. Para Zacquini as denúncias que saíram na imprensa sobre a construção de uma grande estrada na TIY que favorece o garimpo com maquinário pesado não pode ser feita sem a conivência do governo. “A revelação no Fantástico [Rede Globo em 11/12] que construíram 150 km de estrada na TIY, é muito significativa. Uma coisa dessa só é possível com a conivência do governo, se não com o apoio dele”, opina.

A principal conclusão que se chega quando se olha para o histórico de denúncias, reivindicações e recomendações é a extrema necessidade de desintrusão do garimpo na TIY. O incêndio à UBSY é uma forma de retaliação às ações da PF e do Ibama na região e revela sólidas estruturas de garimpo construídas em meio a floresta, bem como as violências sofridas pelos indígenas que vivem em áreas impactados pelo garimpo. Dentre elas está a situação das crianças com desnutrição grave da comunidade Kataroa, na região do Surucucu, onde a USBY está desativada desde o ano passado e que, agora, foi destruída pelo incêndio.

“O incêndio à UBSY é uma forma de retaliação às ações da PF e do Ibama na região”

Uma das preocupações prementes para Júnior Hekurari é como será resolvida esta situação. A região Homoxi é habitada por cerca de 700 indígenas. Em setembro do ano passado, a UBSY foi paralisada por conta das ameaças que os servidores vinham recebendo dos garimpeiros. “Estamos preocupados com essa UBSY, quem vai reconstruir? Tudo que existe ao sistema não indígena se chama planejamento, né? Tem orçamento para fazer. Mas, sabemos muito bem que orçamento da saúde Yanomami, orçamento da saúde indígena foi cortado mais de 70%. Estamos sofrendo. Então, a gente pergunta, quem vai fazer? Quem vai reconstruir a UBSY do Homoxi? Enquanto isso, as comunidades vão ser muito prejudicadas, não têm atendimento. É uma preocupação muito grande”, protesta o presidente.

“Estamos preocupados com essa UBSY, quem vai reconstruir?”

Uma breve memória de uma longa história

As violações de direitos e as violências à integridade física e à própria existência sofridas pelos Yanomami e demais povos que vivem na TIY são denunciadas há décadas. Mas nos dois últimos anos, com a pandemia, o descaso e negligência do Estado na sua proteção e o aumento expressivo do contingente de garimpeiros no território Yanomami, as denúncias passam a ser feitas de forma mais sistemática.

Dentre as principais delas estão a desnutrição severa em crianças Yanomami, a falta de atendimento médico,  o aumento das mortes  de crianças, a degradação das florestas e rios, os ataques  de garimpeiros à comunidades, o tráfico de armas em território Yanomami, o atropelamento de indígenas, a abertura   de estradas clandestinas na floresta, os desvios de medicação destinada ao Distrito Yanomami e a intervenção na saúde indígena. Essas e outras dezenas de denúncias trazidas pela imprensa revelam a cruel realidade vivida pelos Yanomami nos últimos anos. Realidade que viola todas as leis brasileiras, inclusive a Constituição Federal e os acordos internacionais que o Brasil é signatário, os quais garantem a proteção dos povos indígenas e suas formas de vida.

“As denúncias trazidas pela imprensa revelam a cruel realidade vivida pelos Yanomami nos últimos anos”

A relação entre a ausência de saúde para essa população e a invasão de garimpeiros na TIY é direta, uma vez que sem floresta, não há animais nem frutas. Sem rios saudáveis, não há peixes nem água potável. Sem alimento e sem água, não há vida.

Lideranças indígenas denunciam, incansavelmente, os diversos impactos provocados pelo garimpo em suas vidas. O relatório “Yanomami Sob Ataque”, publicado pela Hutukara Associação Yanomami, em abril desse ano, traz o relato de uma liderança da comunidade Palimiú, localizada às margens do rio Uraricoera, que expoõe ao Ministério Público Federal os impactos acometidos pelo garimpo no sistema produtivo de seu povo: “[antes da invasão] a pesca era boa, a caçaria era boa, mas agora não, o rio está contaminado (xami) e a caça emagreceu (varopë romihipë)”.

Os depoimentos indígenas reunidos no relatório “descrevem áreas degradadas pela atividade, tanto na margem do rio, quanto no interior da floresta, que antes faziam parte da sua área de uso cotidiano e que hoje não podem mais ser acessadas pelas famílias. Assim, para caçar, pescar e coletar frutos devem-se deslocar para locais mais distantes, o que tem comprometido o tempo disponível para outras tarefas”. O impacto, portanto, é direto em suas formas de vida.

“Antes da invasão a pesca era boa, a caçaria era boa, mas agora não, o rio está contaminado e a caça emagreceu”.

Em 4 de dezembro de 2021, a antropóloga Adriana Athila e o missionário do Cimi da Regional Norte 1, que acompanha os Yanomami, Carlo Zacquini publicaram, na Folha de São Paulo, o artigo “Yanomamis revivem ameaça de extermínio com garimpo e omissão governamental”. Nele, trazem informações sobre a invasão de garimpeiros em território Yanomami na década de 1980 e comparam o quadro de saúde que se instaurou entre os Yanomami na época e em 2021, ambos agravados pela invasão garimpeira e pela negligência e omissão do Estado

“No final da década de 1980, o povo Yanomami teve seu território invadido por garimpeiros, o que causou epidemias, desnutrição infantil e a morte de pelo menos 15% da sua população”, informa o artigo, que ainda relaciona a degradação ambiental provocado pelo garimpo com o “morticínio” Yanomami.

“As mortes eram acompanhadas da degradação da terra-floresta Yanomami, a “urihi”, como a chamam. Caça e pesca foram afugentadas e, junto com a água e as pessoas, contaminadas por mercúrio. Helicópteros e aviões cruzavam o espaço aéreo sob as cabeças dos indígenas. Centenas de pistas clandestinas anunciavam a velocidade do morticínio, logo ali, bem ao lado das grandes casas comunais” (malocas), atesta a publicação.

“O povo Yanomami invadido por garimpeiros,causou a morte de pelo menos 15% da sua população”

A atualidade das denúncias

Passados mais 40 anos, “o extermínio volta a rondar a terra indígena, que sofre com a explosão da mineração ilegal e enfrenta uma grave crise sanitária, apesar de decisões recentes do STF que obrigam o governo federal a retirar invasores e adotar medidas de saúde pública”.

Em 15 de novembro de 2021, após várias denúncias e reivindicações documentadas e entregues aos órgãos públicos pelas organizações indígenas, o procurador Alisson Marugal do 7º Ofício da Procuradoria da República de Roraima e o procurador Fernando Merloto Soave do 5º Ofício da Procuradoria da República no Amazonas emitiram a Recomendação nº 1/2021/MPF/AM e RR. O documento foi endereçado ao Ministério da Saúde, ao Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde (Denasus), à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e à Coordenadoria Distrital do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y). O documento traz uma longa lista de considerações referentes à situação de saúde dos Yanomami, principalmente ao orçamento e a condução e operacionalização do atendimento no território.

“O extermínio volta a rondar a terra indígena, que sofre com a explosão da mineração ilegal”

Segundo dados do Portal de Transparência da Sesai, em 13 de novembro de 2021, foram destinados mais de 54 milhões de reais à saúde Yanomami e, de acordo com os dados disponíveis na Plataforma Brasil, quase 96 milhões de reais foram repassados à Missão Evangélica Caiuá.

No entanto, apesar dos recursos investidos, as lideranças da TI Yanomami denunciam na Carta “Posicionamento do Fórum de Lideranças da TI Yanomami sobre a saúde dos povos Yanomami e Ye’kwana”, publicada em 07 de setembro de 2021 e entregue ao MPF em outubro de 2021, a grave e sistemática crise do serviço de saúde, relatando a ausência de atendimentos, a mortalidade infantil e o avanço das doenças.

As denúncias são corroboradas pelos “diversos procedimentos em trâmite na Procuradoria da República em Roraima e no Amazonas, evidenciando a piora nos indicadores de saúde, especialmente de mortalidade infantil, subnutrição e malária”, afirma a carta.

“As denúncias evidenciam a piora nos indicadores de saúde, especialmente de mortalidade infantil”

As denúncias voltam a rondar

Hoje, mais de um ano após a análise de Athila e Zacquini e da Recomendação nº 1/2021/MPF/AM e RR, as denúncias feitas pelas organizações dos Yanomami mostram que a situação se não continua a mesma, se agravou.

Voltam as denúncias de desvio dos recursos destinados à saúde Yanomami, os pedidos judiciais de intervenção federal setor e as imagens da consternadora realidade vivida pelas crianças Yanomami. Voltam, também, as recomendações dos órgãos e instâncias do Estado de Direitos para que se evite o genocídio Yanomami.

O MPF, em abril desse ano, apresentou à Justiça Federal um pedido para obrigar a União a retomar ações de proteção e operações policiais contra o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. Em maio, a Câmara dos Deputados cria comissão para acompanhar os casos na TIY e a Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal aprova diligências externas para apurar as ações de combate ao garimpo ilegal em uma terra indígena Yanomami.

“As denúncias mostram que a situação se não continua a mesma, se agravou”

No último dia 7 de dezembro, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) emitiu a Recomendação nº 33 para o novo governo que tomará posse em 2023, solicitando “prioridade máxima e urgência no atendimento das demandas apresentadas pelo povo Yanomami”. O Conselho exige do Estado a adoção de uma política indigenista que respeite a Constituição Federal e os acordos internacionais em defesa dos povos originários.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também manifestou suas preocupações “sobre os desafios de governar um país em escombros” e emitiu seu parecer sobre as necessidades e demandas indígenas que precisam ser adotadas com urgência. “O futuro governo tem desafios enormes, mas precisará, desde logo, nos primeiros dias e independentemente da estrutura orgânica que a política indigenista finalmente tenha dentro do Executivo, apontar o caminho que deseja seguir em relação aos povos indígenas”.

“O futuro governo deve apontar o caminho que deseja seguir em relação aos povos indígenas”

Para o Cimi “é inadmissível que a fome, a miséria e a violência sejam vistas como elementos da normalidade”, pois a normalidade para os ancestrais indígenas Yanomami é o da vida saudável e da morte natural. “Nossos ancestrais não adoeciam tanto quanto hoje. Gozavam de boa saúde a maior parte do tempo. Tampouco ficávamos doentes todos ao mesmo tempo. As pessoas não morriam tanto. Os mais idosos se extinguiam como brasa de fogueira, quando tinham a cabeça branca e os olhos cegos. Naquele tempo, os Yanomami amavam de verdade a beleza e o frescor da floresta”, assim define Davi Kopenawa em seu livro “A Queda do Céu”.

Unidade de Saúde Homoxi. Ao lado o avanço da cratera feita pelo garimpo Foto Júnior Hekurari

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