É necessário impor o rigor da lei a quem incutiu a violência política na cabeça de milhões de seguidores
Por Leonardo Sakamoto, no UOL/ Brasil de Fato
Em seis dias, o presidente Jair Bolsonaro perderá o foro privilegiado, escudo que usou para cometer crimes com a complacência do centrão e as vistas grossas da Procuradoria-Geral da República. A partir daí, será mais fácil responsabilizá-lo pela violência de caráter político incitada por ele e pelo terrorismo promovido em seu nome, como a bomba plantada no caminhão de combustíveis em Brasília. Caberá ao sistema de Justiça escolher se abraçará o deixa-disso ou a Constituição.
A partir de Primeiro de Janeiro, ele voltará a ser tratado como um cidadão comum, perdendo o direito de responder processos no Supremo Tribunal Federal. Com isso, ações que o envolvam caem para a primeira instância – com exceção de casos que ministros do STF desejem manter sob sua responsabilidade. Na lista, podem estar os inquéritos sobre as milícias contra as instituições democráticas, nas mãos de Alexandre de Moraes.
No limite, Jair pode até ter a prisão decretada por juízes de primeira instância que aceitem a argumentação do Ministério Público de que ele é corresponsável por atos de violência política. Por muito, muito menos, teve gente que ganhou um Airbnb gratuito de longa estadia na carceragem da Polícia Federal durante os anos da Lava Jato.
Se alguém incita uma multidão a despejar esterco na rua torna-se corresponsável quando o produto começa a feder e atrair todo tipo de vermes e bichos, não podendo se isentar apelando à liberdade de expressão. Por mais que se comporte como hipossuficiente, Bolsonaro não é.
Ele atiçou seguidores contra as instituições e a ordem pública, plantando mentiras na cabeça de milhões, mesmo sabendo que, entre eles, há maníacos e pessoas com transtornos mentais. Não apenas facilitou que a extrema direita adquirisse armas, mas incentivou que isso acontecesse. “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado”, disse no dia 27 de agosto de 2021. “Eu sei que custa caro. Aí tem um idiota: Ah, tem que comprar é feijão. Cara, se você não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar.”
George Washington Sousa, preso por planejar a explosão de um caminhão de combustíveis perto do Aeroporto de Brasília, disse que a declaração do presidente sobre não ser escravizado é que o levou a adquirir um arsenal.
E basicamente pediu para que os seguidores fossem às últimas consequências. No dia 17 de maio deste ano, afirmou que isso poderia ser necessário para a garantia de preservação da democracia, sua visão violenta de democracia, no caso. E foi bem direto: “Não interessa os meios que um dia porventura tenhamos que usar”. Tipo, explosivos e milhares de litros de gasolina.
Não é a mão de Jair que plantou a bomba perto do aeroporto, ateou fogo em ônibus e carros nas ruas da capital federal, incendiou caminhões em Itaúba (MT) ou tentou matar policiais a bala em Novo Progresso (PA). Mas foi a repetição de seus discursos, de seus decretos armamentistas e de sua difusão de desinformação que tornaram tais atos uma obrigação a seus seguidores, quase uma missão divina.
No livro “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, a filósofa Hanna Arendt conta a história da captura do carrasco Eichmann, na Argentina, por agentes israelenses, e seu consequente julgamento. Ela, judia e alemã, chegou a ficar presa em um campo de concentração antes de conseguir fugir para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.
Ao contrário da descrição de um demônio que todos esperavam em seus relatos, originalmente produzidos para a revista New Yorker, o que ela viu foi um funcionário público carreirista, que não refletia sobre suas ações e atividades e que repetia clichês. Ele não apresentava distúrbios mentais ou caráter doentio. Agia acreditando que, se cumprisse as ordens que lhe fossem dadas, seria reconhecido entre seus pares por isso.
A autora não quis com o texto, que acabou lhe rendendo ameaças na época, suavizar os resultados da ação de Eichmann, mas entendê-la em um contexto maior. Para Arendt, a maldade foi sendo construída aos poucos na Alemanha, por influência de pessoas e diante da falta de crítica, ocupando espaço quando as instituições politicamente permitiram. O vazio de pensamento é o ambiente em que o “mal” se aconchega, abrindo espaço para a banalização da morte e da violência.
É assustador saber que alguém visto como “comum” pode ser capaz, nos contextos histórico, político e institucional apropriados, tornar-se o que convencionamos chamar de monstro. Ou seja, os monstros são nossos parentes, vizinhos ou podemos ser nós mesmos. Pode ser o cara que é dono do posto de combustível, como George.
Desde o assassinato de Marcelo Arruda por Jorge Guaranho, que inaugurou a série de execuções de petistas pelas mãos de bolsonaristas durante as eleições, Jair diz que não incita a violência. Mas a sobreposição de seus discursos ao longo do tempo distorce o mundo e torna a agressão banal. Ou, melhor dizendo, “necessária” para tirar o país do caos e levá-lo à ordem.
Isso acaba por alimentar a intolerância, que depois será consumida por seguidores inconsequentes que fazem o serviço sujo. Como George.
A boa notícia da releitura de Hanna Arendt, se é que há uma, é que quando o movimento totalitário cai, os fanáticos podem mudar. Ou seja, há luz no fim deste mandato.
“Os membros dos movimentos totalitários, inteiramente fanáticos, enquanto o movimento existe, não seguem o exemplo dos fanáticos religiosos morrendo como mártires, embora estivessem antes dispostos a morrer como robôs, mas abandonam calmamente o movimento como algo que não deu certo e procuram em torno de si outra ficção promissora, ou esperam até que a velha ficção recupere força.”
O grosso daqueles que foram incendiados no período eleitoral deve voltar ao “normal”. O que não significa que parte da sociedade não se mantenha em guerra, alimentada pelo ressentimento ou pelo não reconhecimento de derrota eleitoral de seus líderes. E, dentre ela, uma pequena parte aceitará ir às últimas consequências, “não interessando os meios que um dia porventura terão que usar”.
Para diminuir o impacto do terrorismo de extrema direita, além da punição aos envolvidos e aos seus financiadores, é necessário impor todo o rigor da lei a quem incutiu a violência política na cabeça de milhões de seguidores.
Será um bom teste para o Poder Judiciário. Caso Bolsonaro viva um vida tranquila após deixar o poder, seja em um condomínio pago pelo PL, em Brasília, seja voltando ao Vivendas Barra, no Rio, significa que temos um sistema de Justiça tão complacente quanto foi o centrão e a PGR.
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Bolsonaro presente no Carnaval da Alemanha, em 2020. Suástica desenhada no interior da bandeira do Brasil foi removida após recomendação de promotores públicos de Düsseldorf. Foto: DW