*Cláudia de Pinho, Cristiane Pankararu, Douglas Krenak, Gustavo Soldati, Marciano Toledo da Silva e Naiara Bittencourt, na Terra de Direitos
A 15ª Conferência das Partes da Convenção Sobre a Diversidade Biológica (COP15) começou no dia 07 de dezembro, em Montreal, Canadá. Com previsão de finalização em 19 de dezembro, se encerra a sua primeira etapa, com desafios e preocupações para o cumprimento dos objetivos da Convenção.
A COP é emblemática pois definirá o novo Marco Global para a Biodiversidade (GBF), vez que as Metas de Aichi (2010-2022) – metas estabelecidas para a preservação da biodiversidade na última década – são consideradas fracassadas. Outros temas na centralidade do debate da COP 15 são a biologia sintética (SynBio), o sequenciamento genético digital (DSI) e a finalização do grupo de acompanhamento do artigo 8j da CDB, que trata dos direitos dos povos indígenas e comunidades locais.
A delegação brasileira, ainda sob a gestão de Jair Bolsonaro (PL), tem assumido posições majoritariamente perversas para a proteção da biodiversidade e dos direitos dos povos e comunidades tradicionais. A ação da delegação oficial tem bloqueado veementemente o avanço da construção de um bom texto para o novo marco global. No entanto, também é a voz que reclama por novos e maiores recursos para a implementação da Convenção. Sem receber formalmente representantes indígenas, de comunidades locais e do movimento agroecológico, os representantes oficiais do Brasil parecem ignorar que o bolsonarismo e sua boiada foram rechaçados nas eleições de outubro deste ano. O tema de biologia sintética tem sido um dos principais entraves e focos da delegação e tem causado preocupação inclusive para delegações de outros países.
Apresentamos, uma brevíssima síntese de debates já realizados nesta primeira semana da COP 15 para alguns desses temas, e que foram acompanhados direto do Canadá pelos integrantes do Grupo de Trabalho em Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) participantes da COP15,
Marco Global da Biodiversidade
Possivelmente, o mais ambicioso desafio da COP15 é “atualizar” as Metas de Aichi, construindo um novo Marco Global para a Diversidade Biológica pós 2020. A minuta deste novo marco chegou à Conferência das Partes com muito dissenso. Após uma semana de negociações diárias, o texto mantém uma “seção introdutória”, contendo antecedentes, expectativas e considerações, e no qual encontramos a necessidade de respeitar as contribuições e os direitos dos povos indígenas e comunidades locais, reconhecimento de diferentes sistemas de valores nas diferentes relações entre “culturas e naturezas” e “responsabilidade de gênero”. O texto, então, apresenta 4 grandes objetivos para 2050, associados aos próprios objetivos da Convenção: conservação, desenvolvimento sustentável, repartição de benefícios. O quarto objetivo associa-se a processos de implementação das metas. Finalmente, o texto apresenta 22 metas para 2030.
A minuta do novo Marco é essencialmente “biologizante”, foca espécies, ecossistemas, serviços ecossistêmicos. O reconhecimento dos direitos tradicionais como um “princípio” não é suficiente para fortalecer as lutas dos povos e comunidades tradicionais em seus territórios. Defendemos que o reconhecimento esteja nos objetivos e nas metas. Isto é, o texto da minuta do novo Marco Global exclui ou pouco reconhece os sujeitos que conservam a biodiversidade.
Na Meta 1 do novo Marco é relativizada a “redução das ameaças à biodiversidade”. É necessário que o novo texto inclua, como meta, a redução das ameaças aos saberes e territórios tradicionais, reconhecendo-os como um dos principais processos na construção e manutenção da biodiversidade. Entretanto, apesar da tentativa de diálogo com a Delegação brasileira, esta inclusão na fase atual de negociação não foi aceita.
A minuta da Meta 3, relativa a estratégias de conservação baseada em áreas, como Unidades de Conservação, é outro ponto fundamental do Marco. Também conhecida como Meta 30×30, pois sugere que 30% das áreas de importância biológica estejam protegidas até o ano de 2030, e indica a possibilidade de considerar “outras medidas eficazes”, como os territórios indígenas e tradicionais. O Brasil, informalmente, tem defendido este reconhecimento. Além disso, defende que a meta deva ser nacional, e não global.
No exato momento que este texto está sendo construído, o Grupo de Contato sobre o Marco Global discute a Meta 12, quando a delegação brasileira defende o pagamento por serviços ambientais como um processo de restauração e conservação ambiental. Esta mesma visão também foi defendida pelo país na discussão do Objetivo 2, quando a valoração da biodiversidade foi defendida. Há pouco tempo, quando era discutida a Meta 10, o Brasil solicitou a retirada do termo “princípios agroecológicos” como uma referência de manejo sustentável.
Agroecologia e o Marco Global Pós 2020
A maior parte das discussões sobre a inclusão da “agroecologia” no Marco Global da Biodiversidade Pós 2020 foram minimizadas pelos países presentes no espaço de negociação (num processo organizado para diversas reuniões simultâneas e excludentes, tradução para os participantes da COP).
Infelizmente, o Brasil e a Argentina têm protagonizado discursos para a exclusão a tudo que possa ser relacionado à agroecologia nos objetivos e metas do Marco Global. Porém, defendem qualquer coisa que beneficie as corporações industriais e a “digitalização” dos processos de produção agroalimentar mundial (commodities) através dos mecanismos da (bio)economia verde referentes nas chamadas “soluções baseadas na natureza” e “serviços ambientais”: as “roupas verdes do capitalismo” ganhando protagonismo efetivo na Conferência.
Mesmo sendo a primeira COP após a assinatura da Declaração dos Direitos dos Camponeses e de Outras Pessoas que Trabalham em Zonas Rurais, ainda há resistências na incorporação dos termos da Declaração nas decisões da COP 15 e do Marco Global.
Sequenciamento Genético Digital
O Sequenciamento Genético Digital possibilita a transferência e depósito de informações genéticas, desenvolvida pelos povos através de processos de seleção e de geração de conhecimento tradicional correspondente, armazenados em bancos digitais concentrados nos países do norte e de livre acesso por empresas e corporações. Esta COP 15 deveria decidir sobre o acesso e repartição de benefícios oriundos dessas informações digitalizadas.
Os países membros da Conferência (as partes) até o momento, indicam que uma solução para a partilha justa e equitativa dos benefícios oriundos do uso econômico de seqüências digitais devem, entre outras coisas:
(a) ser eficientes, viáveis e práticas; (b) gerar mais benefícios, incluindo tanto monetários quanto não monetários, do que custos; (c) ser eficazes; (d) proporcionar certeza e clareza jurídica para fornecedores e usuários de seqüência digital informações sobre recursos genéticos; (e) não dificultar a pesquisa e a inovação; (f) ser consistente com o acesso aberto aos dados; (g) não ser incompatível com as obrigações legais internacionais;
(h) apoiar-se mutuamente em outros instrumentos de acesso e compartilhamento de benefícios; (i) levar em conta os direitos dos povos indígenas e comunidades locais, incluindo com respeito aos conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos que possuem.
Mas os países ignoram a necessidade de fomentar a implementação de mecanismos que busquem verificar a rastreabilidade e a origem das informações nos processos de manejo da biodiversidade pelas comunidades tradicionais, o que garantiria a repartição de benefícios “justa e equitativa”.
De modo geral, o texto é bastante liberal, facilita a apropriação dessas informações pelas grandes empresas e indica que “a rastreabilidade de todas as informações de sequência digital sobre recursos não é atualmente viável”, deixando em aberto e desprotegidos os interesses de povos indígenas e comunidades locais.
A solução para o compartilhamento dos benefícios resultantes do uso de informações de sequência digital sobre recursos genéticos será finalizada e estabelecida na COP16, bem como um mecanismo global de compartilhamento de benefícios do uso dessas sequências.
Foi proposta a adoção de um mecanismo multilateral para a repartição dos benefícios oriundos da DSI, o que difere do atual mecanismo bilateral da CDB e da Lei 13.123/2015, a lei nacional de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado. O Brasil defende a repartição de benefícios em um sistema híbrido.
Biologia Sintética
Biologia Sintética é um ramo da biotecnologia que engloba os organismos editados geneticamente (CRISPR), engenharia metabólica, entre outras novas biotecnologias. O tópico está sendo muito debatido na COP15 em virtude da necessidade dos países em entender sobre quais produtos estariam chegando ao mercado e qual o impacto destes na conservação da biodiversidade e também para as comunidades indígenas e tradicionais. Enquanto a maior parte dos países pede por um processo de estudo e acompanhamento do mercado, o Brasil mantém a posição de não considerar biologia sintética uma ameaça, barrando, assim, qualquer negociação da COP 15 nesse tema. Essa posição intransigente reflete o interesse da indústria que prefere que nenhuma informação sobre biologia sintética seja compilada e estudada para que as análises de risco e detecção destes produtos avance no Brasil e no resto do mundo.
Organismos Geneticamente Modificados com impulsores genéticos (OGMs) ou gene drives
Até o momento as decisões sobre avaliação e gestão de riscos endossam a decisão sobre gene drives tomada nas COPs 13 e 14 (Cancun e Egito), indicando que os novos OGMs com estas formas de engenharia genética devem ser autorizados caso a caso e com base no princípio da precaução, o que efetivamente não ocorre.
No documento adotado pelas Partes ficou acordado que guias para análise de risco de No documento adotado pelas Partes ficou acordado que serão desenvolvidas guias para análise de risco de organismos contendo gene-drives pelo grupo “Grupo de Especialistas Técnicos Ad Hoc (AHTEG) de análise de risco”. Um aspecto importante da decisão foi a inclusão da Decisão 14/33 da COP anterior sobre a divulgação de qualquer conflito de interesse por membros do novo grupo AHTEG que se formará. Indicou-se que o grupo também elabore materiais de orientação voluntária para apoiar a avaliação de risco de organismos vivos modificados, caso a caso, contendo acionamentos genéticos de engenharia. A decisão também fomenta que os Estados divulguem informações e compartilhem experiências úteis sobre avaliação de OGMs com gene drives.
A sociedade civil pede, desde 2016, que se faça uma moratória internacional sobre gene drives, mas isso não é sequer debatido com profundidade pelos países.
Respeito e Participação dos Povos Indígenas e Comunidades Locais (Artigo 8J)
O artigo 8j da CDB indica a necessidade de que os países respeitem, preservem e mantenham o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica, com a devida participação e repartição dos benefícios. oriundos desses saberes e práticas.
A CDB estipulou um grupo de trabalho com um mandato que se encerra nesta COP 15, para acompanhar a implementação do artigo pelas Partes, aprimorando mecanismos de participação também na Convenção. Já ficou decidido que o Grupo de Trabalho 8j deve ser mantido até a próxima COP 16 (prevista para 2024) para desenvolver um novo programa, especialmente trabalhando no âmbito do Marco Global da Biodiversidade Pós 2020, com a participação plena e efetiva dos povos indígenas e comunidades locais.
A próxima COP 16 deve ser discutida a possível formação de um órgão subsidiário permanente da CDB ligado ao artigo 8(j), não apenas um Grupo de Trabalho com funcionamento temporário. Organizações e povos reivindicam que deveriam ser indicadas representações de povos indígenas e comunidades locais para compor este órgão.
Fórum de Povos Indígenas e Comunidades Locais (IPCL)
Há participação de 497 inscritos como povos indígenas e apenas 15 de comunidades locais nesta COP 15. Ainda há dificuldade de participação e incidência pelas comunidades locais. Discute-se a possibilidade de ampliar as formas de incidência de povos indígenas e comunidades locais nas próximas edições da COP, com dois grupos com espaço e tempo para intervenções.
* Cláudia de Pinho – integrante da Rede Nacional Povos e Comunidades Tradicionais, Rede de Comunidades pantaneiras e GTbio – ANA
Cristiane Pankararu – povo Pankararu, integrante da Apib, GTbio-ANA e do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen)
Douglas Krenak – povo Krenak e integrante do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen)
Gustavo Soldati – professor, pesquisador e integra GTbio. Sociedade Brasileira de estudos EtniBotanicos (SBEEB)
Marciano Toledo da Silva – integrante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e do GTbio
Naiara Bittencourt – assessora jurídica de Terra de Direitos e integrante do GTbio