Da impunidade ao golpe em andamento. Por Francisco Rohan de Lima*

Exame da biografia de Bolsonaro revela uma ficha corrida de crimes graves, sem qualquer punição. Tratada com condescendência ou casuísmo, dos militares ao STF, a insolência de violar a lei em público tornou-se seu principal “capital político”

Para Luiz Maklouf Carvalho, in memoriam

em Outras Palavras

A impunidade das classes dominantes é um fenômeno universal. Mesmo nos países desenvolvidos do Ocidente, a punição de criminosos ricos ou de líderes políticos poderosos pode ser considerada uma exceção. Mas, no Brasil, a impunidade das elites políticas e econômicas é a regra e atinge as raias do absurdo. Sem falar nas preliminares e nos recursos e embargos inesgotáveis.

A mais recente tentativa de golpe de Estado no Brasil, ainda em andamento, numa insinuação de conciliação, corre o risco de ser classificada como apenas uma tarde chuvosa de vandalismo desenfreado dos “aloprados” para espantar o tédio dos acampamentos clamando pelo golpe militar. Tudo isso, qual fosse sem qualquer articulação ou objetivo de interromper a ordem democrática, apesar dos seguintes fatos:

  1. a verbalização e postagens dos manifestantes no sentido contrário;
  2. as inúmeras conspirações de grupos de Whatsapp, reveladas em gravações digitais sequestradas pela Polícia Federal;
  3. a descoberta há poucas semanas de uma trama terrorista para explosão de artefatos no aeroporto de Brasília, que inclui a confissão de um dos autores do pretenso atentado;
  4. a reiterada pregação de quebra da ordem constitucional pelo ex-presidente da República, inclusive a cada comemoração da data de independência do país;
  5. a recusa injustificada do ex-presidente em reconhecer a derrota para o candidato vencedor e de negar-se a transmitir-lhe o cargo presidencial, ingressando nos Estados Unidos com passaporte diplomático, o que não poderia ocorrer após o dia 31 de dezembro de 2022;
  6. os ataques verbais dirigidos aos jornalistas, ministros da Suprema Corte, adversários políticos, seus ex-apoiadores, ex-mulheres, e o incitamento constante dos extremistas contra os demais poderes da República;
  7. os ataques reiterados à legislação eleitoral e a convocação dos representantes diplomáticos estrangeiros para denúncia, sem qualquer evidência, de fraude e contra o uso das urnas eletrônicas, o que incluiu a tentativa de restaurar o voto por escrito, responsável por fraudes históricas e comprovadas;
  8. o intercâmbio permanente entre a extrema-direita brasileira e a extrema-direita norte-americana, no caso com Steve Bannon e Jason Miller, ex-assessores de Trump, que não esconderam o contentamento com o vandalismo no Brasil;
  9. a “coincidência” espantosa de estarem fora do país, num sugerido e implícito álibi, o clã do ex-presidente da República, seu ex-ministro da Justiça, membro de Polícia Federal, e ex-secretário de segurança pública, supostamente incumbido de zelar pela segurança no Distrito Federal; e (até o momento)
  10. a minuta do decreto de Estado de Defesa, o corpo de delito do golpe urdido na cúpula do poder, redigido por alguém em linguagem culta e jurídica de elaboração intelectual acima da capacidade do ex-ministro da Justiça, encontrada entre os papéis de sua residência em ação de busca e apreensão.

Se não houve uma trama golpista nesses fatos, vistos isoladamente ou em seu conjunto, devemos revisar todos os manuais de golpes políticos, pelo menos desde que Caio Julius César foi apunhalado pelas costas no chão do Senado romano1, em 15 de março do ano 44 a.C., inaugurando o sentido político da expressão “Idos de março”, usada anteriormente em Roma para significar o prazo de pagamento de dívidas.

Se há algo de que Jair Bolsonaro não pode ser acusado é de esconder suas intenções. O desejo de receber atenção da mídia ainda que seja, principalmente, pelas barbaridades que diz a cada vez que se manifesta, é incontrolável. Desse modo, basta a qualquer um de nós ler os jornais, as revistas, os livros sobre o ex-presidente, para saber como tudo começou. Vejamos os fatos.

  1. Em 1986, Jair Bolsonaro tornou-se conhecido ao publicar um artigo, em Veja, reclamando do baixo soldo pago aos militares2. Foi preso por indisciplina, mas foi identificado como uma liderança pela soldadesca. Deveria ter sido expulso das Forças Armadas, por inaceitável indisciplina, mas foi perdoado e continuou sua carreira. A única mancha veio, anos depois, com o comentário do ex-presidente, general Ernesto Geisel, que o avaliou: “Um mau militar.”3
  1. Em 1987, a mesma Veja revelou uma trama terrorista, que visava à explosão de bombas em locais estratégicos do Rio de Janeiro.4 A revista obteve um croqui supostamente elaborado por Jair Bolsonaro, que foi acusado de conspiração e condenado no primeiro julgamento e, posteriormente, apesar do empenho do Ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, em expulsá-lo, foi absolvido, por 9 votos contra 4, pelo Superior Tribunal Militar.5 Ao invés de ser condenado, expulso e preso, foi reformado e ganha até hoje uma boa aposentadoria dos cofres públicos. Em seguida à absolvição do capitão, sob o título “Palavra final”, Veja reafirmou Bolsonaro como o autor do croqui, dizendo “Bolsonaro: o croqui é verdadeiro”.6 Nunca foi contestada.7
  1. Em 1988, Bolsonaro foi eleito para a Câmara de Vereadores da cidade do Rio de Janeiro, sustentando um discurso pela transparência e a moralidade, contra o nepotismo, funcionários-fantasmas e o excesso de gastos na Câmara; apresentou alguns poucos projetos sobre aposentadoria de servidores, saúde e transporte de militares, nenhum deles em favor da cidade; terminou 1990 como o pior vereador carioca.8 Ao invés de puni-lo com a derrota nas eleições, os eleitores cariocas o conduziram à Câmara de Deputados, enviando-o à Brasília. E ainda elegeram sua então mulher, Rogéria Bolsonaro, à Câmara de Vereadores da cidade do Rio de Janeiro, primeira da família a juntar-se ao marido na ocupação de cargos políticos.
  1. Sim, logo Rogéria seria seguida (e substituída) pelos filhos Flávio, Carlos e Eduardo, e por Ana Cristina Siqueira Valle, estruturando o negócio da família, mais tarde conhecido como “rachadinha”, uma prática contumaz no meio político, ou seja, a transferência do pagamento para o político responsável pela nomeação do funcionário de “confiança”, ou seja, crime de peculato, tipificado no Código Penal como “Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.”9
  1. Ao longo da década de 1990, 2000, 2010 e 2020, Bolsonaro se manifestou enfaticamente a favor da tortura, do fechamento do Congresso e do STF, da ditadura, além da pregação de guerra civil, com a morte de 30 mil pessoas, “começando pelo presidente Fernando Henrique Cardoso”. Ao invés de cassar o seu mandato parlamentar, seus pares o absolveram, em todos os casos, e o ignoraram no último. Quando indagado na televisão, pelo entrevistador Jô Soares sobre a declaração agressiva a FHC, explicou que não fosse por essa declaração nunca teria sido chamado ao programa.10
  1. O ex-presidente não foi sequer acusado de abuso de liberdade de expressão, não foi processado por ninguém. O parlamentar mais indecoroso jamais foi incomodado por isso. Mesmo sendo um parlamentar medíocre, com apenas dois projetos apresentados ao longo de 28 anos – um deles instituindo por lei a pílula do câncer, ideia que repetiria tentando inserir na receita de cloroquina o tratamento para a covid-19, conforme foi verificado na CPI da Covid – foi sucessivamente reeleito pelos eleitores do Rio de Janeiro. Desde que iniciou sua carreira política, e até o ano de 2022, o capitão não soube o que é perder uma eleição.
  1. Em 2007, quando o casamento entre Bolsonaro e Cristina Valle estava em crise terminal, Cristina foi ao Banco do Brasil e descobriu que sua chave não abria o seu cofre. Um chaveiro especializado foi chamado e, ao abrir a caixa metálica, Cristina descobriu que seu dinheiro e joias haviam sido roubados. Valores estimados e atualizados em mais de R$ 1 milhão. Como sabemos disso? O chaveiro que fez o serviço não foi pago pelo trabalho e contou à imprensa. Disse ele: “Quando viu que não tinha nada lá, a mulher do Bolsonaro disse que foi roubada e chamou todo mundo de ladrão. Ela endoideceu e começou a gritar que o Bolsonaro, mancomunado com o Banco do Brasil, foi lá e tirou tudo dela”.11 Cristina registrou o caso em um boletim de ocorrência na 5ª DP do Rio de Janeiro. A impunidade prevaleceu pelo acordo de separação, negociado com a ex-mulher, sobre valores muito maiores envolvidos, representados por imóveis, carros e dinheiro.
  1. Em 2007, casou-se com Michelle e debitou R$ 1.700 das passagens para a lua de mel na conta da Câmara de Deputados, conforme bem apurado pelos repórteres Eduardo Militão, Eumano Silva, Lúcio Lambranho e Edson Sardinha, em Nas asas da mamata: A história secreta da farra das passagens aéreas no Congresso Nacional. Isso depois de, em 2011, ter mobilizado indevidamente o Itamaraty para ajudá-lo na Noruega nas desavenças conjugais com sua ex-mulher Cristina Valle.12
  1. Em 2013, uma delegação de quatro membros da Comissão Nacional da Verdade, encarregada de investigar os crimes cometidos por militares no período autoritário, foi fazer uma inspeção no antigo DOI-Codi, no Rio de Janeiro. Um desses membros era o atual senador Randolfe Rodrigues (AP). Bolsonaro intrometeu-se na visita, agendada previamente com o Exército, e foi barrado. Segundo o senador Rodrigues, o deputado Bolsonaro chamou-o de moleque e aplicou-lhe um soco no estômago. A confusão ganhou o noticiário. Bolsonaro telefonou a uma pessoa de quem a repórter Juliana Dal Piva estava próxima e, falando tão alto que podia ser ouvido, informou ao ouvinte: “Viu o que eu fiz hoje? Com aquilo ganhei uns 400 mil votos”.13 Continuou impune e sendo seguidamente reeleito.
  1. Em 2003, o ex-presidente, então deputado federal, insultou verbalmente, e em frente às câmeras de TV, a deputada Maria do Rosário, dizendo que ela não merecia ser estuprada; em seguida afirmou que não tinha medo de perder o mandato na Comissão de Decoro; de fato, nada aconteceu. O incidente se repetiu da tribuna da Câmara em 2014. O caso foi à justiça e Maria do Rosário finalmente prevaleceu. O processo, todavia, se alongou por cinco anos, para que a vítima fosse indenizada e o réu se retratasse somente em 201914;
  1. Em 2016, o então deputado, ao votar a favor do impeachment de Dilma Rousseff, enalteceu a figura de seu torturador durante o período em que a ex-presidente esteve presa no período da ditadura, sem nenhum receio de parecer cruel; nada lhe aconteceu. Na campanha de 2018, durante pronunciamento no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, Bolsonaro disse que as reservas indígenas e quilombolas atrapalhavam a economia do país. “Eu já fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles”, afirmou.
  1. Denunciado por racismo, o caso foi ao STF. Mas a 1ª Turma, composta de cinco ministros, produziu um empate até o quarto voto. O relator, Marco Aurélio Mello, e o ministro Luiz Fux votaram para rejeitar a acusação e enterrar as investigações sobre racismo. Luís Roberto Barroso e Rosa Weber votaram pelo recebimento da denúncia e pela abertura da ação penal. Então, Alexandre de Morais desempatou a favor do ex-presidente. Transcrevo o G1:

“Para Moraes, as declarações de Bolsonaro, embora ‘grosseiras’ e ‘vulgares’, não extrapolaram para um discurso de ódio. ‘Ou seja, declarações absolutamente desconectadas da realidade. Mas no caso em questão, na contextualidade da imunidade, não me parece que, apesar da grosseria, apesar do erro, da vulgaridade, do desconhecimento das expressões, não me parece que a conduta do denunciado tenha extrapolado os limites da liberdade de expressão qualificada e abrangida pela imunidade material. Não teria a meu ver extrapolado um verdadeiro discurso de ódio, de incitação ao racismo ou à xenofobia’, disse Moraes. ‘Suas declarações, principalmente as mais grosseiras e vulgares em momento algum tiveram intuito, pelo menos o intuito objetivo que se percebe, de negar o sofrimento ou ser contra, o sofrimento causado aos negros e seus descendentes pela escravidão’, completou o ministro. Moraes afirmou ainda que as declarações do presidenciável foram dadas em um contexto de crítica a instrumentos e políticas governamentais. Na avaliação do magistrado, ‘quem deve analisar [as falas] é o eleitor’ e os cidadãos. ‘O cerne da manifestação é uma crítica a políticas de governo, a políticas com as quais não concorda o denunciado, não chegando a extrapolar para um discurso de ódio’, ressaltou o ministro.15

  1. Se tivesse sido aceita a denuncia, Jair Bolsonaro se tornaria réu. Na condição de réu não poderia ocupar a presidência da República segundo jurisprudência do próprio STF. Vale dizer, a impunidade evitou o impedimento ao cargo. No caso da acusação de injúria e incitação ao crime de estupro, envolvendo a deputada Maria do Rosário, o que o deixou livre foi a extinção do processo, com o cumprimento imediato da pena: mero pedido de desculpas e pagamento de indenização irrisória.16
  1. Em 2019, sob a frágil alegação por Flávio Bolsonaro de quebra de seu sigilo bancário pelo Coaf – o que é uma falácia já que o Coaf não invade a conta bancária dos depositantes, simplesmente aponta anomalias indicadas pelos bancos –, o ministro Dias Toffoli veio em socorro do clã e emitiu uma liminar impedindo o uso dos dados identificados pelo Coaf e paralisou a investigação sobre as rachadinhas.
  1. No mesmo ano, uma das alegações da defesa no caso da rachadinha era que, com a eleição, o foro privilegiado para apreciação do caso deveria se deslocar para Brasília, ou ainda que os crimes tivessem ocorrido durante o mandato no Rio de Janeiro, a investigação deveria ocorrer sob a tutela do Tribunal de Justiça. De qualquer modo, com foro privilegiado. Desta vez, coube ao ministro Luiz Fux, durante o plantão, conceder a liminar em benefício da defesa, mesmo contra jurisprudência firmada do STF de que, com o fim do mandato, extingue-se o foro privilegiado. Acabado o recesso, o ministro Marco Aurélio Mello reassumiu o caso e, como havia informado previamente – dizendo que casos como aquele que contrariavam a jurisprudência da corte ele tinha por hábito “remeter ao lixo”, foi o que fez.
  1. Porém, o processo no Rio de Janeiro seguia tumultuado por interferências indevidas, substituição de juízes, cassações de quebra de sigilo, politicagem interna no Ministério Público Estadual, que terminou por perder um prazo processual. Enquanto isso em Brasília, o ministro João Otávio de Noronha, do STJ, no plantão judiciário, concedeu liminar para que Fabrício Queiroz, um arquivo vivo e queixando-se de abandono pelo clã, fosse para prisão domiciliar. Noronha voltaria a interferir a favor do clã, passando a integrar a 5ª Turma do STJ, onde o ministro Félix Fischer conduzia o caso e vinha negando todos os pedidos da defesa. Noronha pediu vistas, suspendeu julgamentos, introduziu novos temas no debate, praticamente invertendo o papel do relator em revisor. Climão na Corte. Ao fim, Flávio Bolsonaro conseguiu o que queria e a quebra de sigilo foi vencida.17
  1. Em 2021, depois de ter suspendido procedimentos investigatórios por cerca de um ano, o STF resolveu examinar a questão do foro privilegiado para um senador investigado por práticas quando era deputado estadual e, surpreendentemente, contrariando sua própria jurisprudência, a Corte, por sua 2ª Turma, sob a relatoria de Gilmar Mendes, concedeu o foro privilegiado a Flávio Bolsonaro. Com isso, a investigação voltou à estaca zero. Alguém pode indagar e estranhar sobre a relação entre as rachadinhas de Flávio Bolsonaro, cujos valores alcançam mais de R$6 milhões, e as impunidades a Jair Bolsonaro. É que os fatos apurados até o momento mostram que a prática ilegal está estruturada sobre todos os membros políticos da família (há dúvidas apenas sobre Eduardo Bolsonaro), alcançando facilmente o patriarca.18 Como escreveu Juliana Dal Piva: “O passado assombra o futuro do presidente e do clã Bolsonaro”.
  1. Em 2020, em uma decisão absolutamente inconstitucional, a juíza Cristina Serra Feijó, da 33ª Vara Cível do Rio, proibiu a TV Globo de exibir qualquer documento ou peça das investigações sobre o esquema de rachadinha no gabinete do senador Flávio Bolsonaro, quando exercia o cargo de deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Na censura prévia, a magistrada atendeu a um pedido de liminar dos advogados que defendem o senador. A emissora recorreu ao Tribunal de Justiça e o desembargador Fabio Dutra do TJRJ, manteve a censura prévia,19 contrariando decisões pacíficas da Suprema Corte. A TV Globo apelou ao Supremo. Transcrevo os jornais: “O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou nesta segunda-feira, 19, um recurso apresentado pela TV Globo e manteve a decisão da Justiça do Rio que proibiu a emissora de exibir qualquer documento ou peça do processo sigiloso da investigação das rachadinhas envolvendo o senador Flávio Bolsonaro”.20 Que tal?
  1. Em 2021, o país teve a oportunidade de assistir, perplexo, a um teatro de horrores. Em 27.04.2022, escrevi no blog de Lúcio Flávio Pinto o seguinte: “Aliás, o mês de abril sozinho é um espanto. Em abril completou um ano da mais assombrosa reunião de ministros da história política e administrativa de um governo brasileiro. Assistimos, bestificados, a um festival de baixaria, cujo tema e objetivo, para além de cuidar das hemorroidas, eram a subversão da ordem, armas a serem distribuídas à população, boiadas passando por sobre a legislação ambiental, incentivos à violência contra juízes, interferências indevidas no aparelho repressor para proteção da família e amigos. A ata da reunião ministerial é um corpo de delito. Somente faria sentido se fosse uma célula subversiva de radicais políticos reunidos para derrubar o regime.” O ex-presidente cumpriu o que ameaçou. Interferiu na Polícia Federal e no Ministério da Justiça. Colocou nos postos chaves seus amigos de confiança. Houve tentativas de impedi-lo de operar o aparelhamento e de investigação etc., com resultado zero. A punição foi uma queda nas pesquisas de opinião sobre o governo. Nada mais do que isso
  1. A cada setembro Bolsonaro sequestrou a Semana da Pátria e alardeou o golpe de Estado. Em 2021, diante do fracasso de sua tentativa explícita, pediu socorro a Michel Temer, por seu relacionamento com o ministro Alexandre de Moraes. O ex-presidente achou ótimo deixar o ostracismo para abrandar a reação do STF, que nunca veio.21 Em 2022, um ano depois, o ex-presidente repetiria tudo do que disse haver se arrependido e desculpado no ato anterior e voltou a pregar o golpe. Impunemente.22
  1. Finalmente (até agora), em 2023, vem à baila, a minuta do decreto do Estado de Defesa, mecanismo de intervenção constitucional, que vinha sendo preparado e discutido no ano anterior, cujo teor é o desenho pronto e acabado do golpe de Estado. Especulo: aquele ministro de Justiça (sic) de Bolsonaro, um policial de origem, não tem estofo e intelecto jurídico para elaborar a minuta capturada pela PF. Aquela peça saiu, imagino eu, de pena mais erudita. Atenção; todo cuidado na proteção da vida do ex-ministro de Bolsonaro. Trata-se de um arquivo vivo de valor inestimável. Até a próxima liminar de soltura antes que ele abra o bico. Nada de se ofender, por favor. Isso já foi feito com Fabrício Queiroz.

Não esqueçamos que, desde Roma, segundo as narrativas de Plutarco, Suetônio e Cassio Dio, o caos é o pântano que produz os ditadores. O assassinato de Júlio César, produzido pela conspiração que levou ao golpe, e abortado pela intervenção de Marco Antônio, culminou em longa guerra civil, com o grande caos, que resultou em Otávio (depois renomeado como Augusto), o ditador responsável pela execução de 300 senadores e cavaleiros.

Aprendemos, assim, que quando as instituições falecem, seja pelo achincalhe e ataque dos conspiradores, seja por sua autodestruição corruptiva, o imperativo da ordem a qualquer custo se impõe, primeiro para debelar o caos e, logo em seguida, para instaurar a ditadura.

Não nos enganemos, se a aposta no caos prosperar, o povo vai cansar e agradecer quando os tanques saírem dos quartéis. Já vimos esse filme em que morremos no final. Na ocasião mais recente, duraram 20 anos. Desta vez, basta de cordialidades à brasileira. Sem anistia, sem preliminares, sem embargos de gaveta, sem conversas ao pé de ouvido, sem mágicas processuais, por favor. Chega de impunidades para os poderosos.

Notas
1 Segundo Plutarco (46-120 d.C.), em Vidas paralelas, o ataque fatal foi no Teatro de Pompeu, mas Shakespeare alterou para o Senado, o que convenhamos é mais apropriado, e não apenas para efeito dramático.

2 Veja, 03.09.1986, artigo O salário está baixo, por Capitão Jair Messias Bolsonaro.

3 Ernesto Geisel, entrevista para Fundação Getúlio Vargas, para Maria Celina D’Araujo e Celso Castro, em 28.07.1993. Geisel completou: “Neste momento em que estamos aqui conversando, há muitos dizendo: ‘Temos que dar um golpe. Temos que derrubar o presidente! Temos que voltar à ditadura militar!’ E não é só o Bolsonaro, não! Tem muita gente no meio civil que está pensando assim”.

4 Veja, 28.10.1987.

5 Veja, 22.06, 1988. Votos favoráveis a Bolsonaro: Sérgio de Ari Pires, Aldo Fagundes, Antônio Carlos de Seixas Telles, Roberto Andersen Cavalcanti, George Belham da Motta, Paulo César Cataldo, Alzir Chalub, Rui de Lima Pessoa e Rafael de Azevedo Branco. Votos contra Bolsonaro: José Luís Clerot, Haroldo Erichsen da Fonseca, Luís Leal Ferreira, Antônio Geraldo Peixoto.

6 Veja, 22.06.1988.

7 Todas as informações coletadas e consolidadas em O cadete e o capitão, de Luiz Maklouf Carvalho, Todavia, 2019.

8 Jornal do Brasil, Informe JB, 31.01.1991.

9 Artigo 312 do Código Penal.

10 Ver no YouTube e Google, sob os nomes Bolsonaro tortura, Bolsonaro ditadura, Bolsonaro FHC. Bolsonaro fechamento do Congresso e do STF; tudo isso antes e durante o exercício da presidência da República.

11 Época, 28.09.2018.

12 Folha de S.Paulo, 22.09.2018.

13 Juliana Dal Piva, em O negócio do Jair, Zahar, pág. 18.

14 Folha de S.Paulo, 23.05.2019, às 18h41min.

15 Portal G1, das organizações Globo, de 11.09.2018, ás 17h11min.

16 Idem.

17 Juliana Dal Piva, em O negócio do Jair, Zahar, 2022, pág. 253, 254, 255, 256 e outras.

18 Juliana Dal Piva, O negócio do Jair, Zahar, 2022.

19 O Globo, 16.09.2020.

20 O Estado de São Paulo, 19.10.2020.

21 UOL, 09.09.2021, às 18:34.

22 Foi noticiado em todos os jornais do Brasil. Basta buscar no Google chaves como “Bolsonaro golpe”, “Bolsonaro 7 de Setembro”, etc.

Ilustração: Duke

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

17 − um =