Saúde Digital: possibilidades, riscos e… políticas!

Em parceria com grupo de pesquisadores latinoamericanos, Outras Saúde abre série de debates sobre o papel das novas tecnologias médicas e da Inteligência Artificial no SUS. Na estreia, assessor da OPAS considera a hipótese de uma Reforma Sanitária Digital

Por Alessandra Monterastelli, em Outra Saúde

Quando se pensa em saúde digital, aplicativos desenvolvidos pela iniciativa privada podem ser os primeiros a vir à mente. Desde apps para controlar o ciclo menstrual até aqueles que são ligados a algum plano de saúde ou clínica. Em 2022, a gestão de Jair Bolsonaro incentivou a criação do Open Health, que consiste no compartilhamento de dados do Sistema Único de Saúde com empresas privadas prestadoras de serviços, health techs e operadores de planos de saúde – sob a promessa de “otimização do atendimento”. Agora, o novo governo anunciou a criação de uma Secretaria de Saúde Digital, voltada ao acompanhamento de tecnologias do Sistema Único de Saúde (SUS) e serviços de telessaúde. Que todos estes fatos, às vezes contraditórios entre si, revelam sobre o advento e o sentido das novas tecnologias médicas e da inteligência artificial?

Na primeira edição de uma série especial de entrevistas mensais promovidas pelo Outra Saúde em parceria com a Estratégia Latino-Americana para a Inteligência Artificial (ELA-IA), o assessor especialista na Área de Sistemas de Serviços da Organização Panamericana de Saúde no México, Armando de Negri Filho, respondeu às perguntas sobre a possibilidade de uma reforma sanitária digital em prol das necessidades da população. Segundo ele, a nova pasta criada pela gestão Lula não deve se concentrar apenas em certificar novas startups na área – que crescem vertiginosamente no Brasil e no mundo – mas precisa gerar um impacto no SUS com o objetivo de estimular um “programa de desenvolvimento geral”.

Em artigo publicado nesta semana, Luiz Vianna Sobrinho, doutor em Bioética e Saúde Coletiva pela Fiocruz e presente na entrevista coletiva, escreveu sobre como iniciativas de saúde digital desenvolvidas por empresas do Norte Global vem entrando no continente africano, como substitutos de sistemas fragilizados – ou inexistentes – de saúde.  Essas corporações identificam em países subdesenvolvidos com precário acesso à saúde nichos de mercado para produtos tecnológicos, que deveriam, segundo De Negri, ser “ferramentas complementares a um sistema organizado de saúde, que é essencialmente formado por relações humanas”. A digitalização ampla e autorregulada extrapola as barreiras da necessidade diante da falta de regras de um sistema de saúde constituído, e grandes empresas transformam rapidamente tecnologias em uma espécie de resposta – que ignora a premissa do direito à saúde universal. “Temos a oportunidade e o dever ético de pensar na maneira que vamos introduzir essas ferramentas digitais, não como substitutivos de serviços de saúde, mas sim como ferramentas integradas à uma estratégia pública”, argumentou De Negri.

Soluções digitais podem colaborar na ampliação e estruturação do sistema público de saúde, desde que estejam alinhadas ao objetivo de combater desigualdades – caso contrário, a tecnologia pode, inclusive, gerar novos desequilíbrios sociais, com diferenças de qualidade entre serviços a depender do paciente ou região, até a substituição de recursos essenciais. Um avanço positivo seria o uso da tecnologia para a participação ativa da população na construção e melhora do sistema de saúde. O que De Negri chama de “poder do testemunho” se uniria a estudos demográficos, de inovação e epidemiológicos para identificar problemas no interior do funcionamento diário do SUS. O trabalho da Inteligência Artificial e das novas tecnologias a favor da participação social e de diálogos contribuiria para gerar outras referências para o sistema, na forma em que este se organiza e dimensiona. E contribuiria para o que o representante da OPAS chamou de “desalienação”. “O direito à saúde não é entendido pela maioria da população em sua dimensão concreta”, explicou. As pessoas se tornam passivas diante a insuficiência do sistema, como se se tratasse de generosidade do governo. Uma possibilidade das novas tecnologias poderia ser, por exemplo, conscientizar sobre o direito à saúde, tornando-o um “movimento de requerimento”.

Apesar de se diferenciar da realidade em diversos países africanos, o contexto brasileiro dos últimos seis anos – que inclui, por exemplo, o achatamento da classe média – propiciou o avanço das startups de saúde, especialmente na atenção primária. Segundo De Negri, a falta de leis que acompanhem as necessidades de ordenamento no setor vem deixando o sul global “desarmado para a disputa” e impede que o público se torne objeto de amparo e proteção. “Vivemos em sociedades dominadas pela lógica capitalista em que, por exemplo, a lei de patentes estabelece um predomínio sobre o interesse público”, exemplificou. A ONU, Unesco e OMS já debatem a ética para iniciativas que envolvem inteligência artificial, para pensar o controle do intercâmbio de informações coletadas pelas tecnologias e sua aplicação nas sociedades. O desafio é, segundo De Negri, evitar que países fiquem dependentes dos serviços de big techs privadas no setor da saúde, sem limitar a capacidade de inovação.

Na América Latina, esse desafio é particularmente exacerbado pela dificuldade de “entender onde começa e termina o que é de interesse público e privado”. Essa confusão, que vai muito além do setor da saúde, impede dispositivos jurídicos para a regulamentação do mercado e poda a participação do Estado na produção de tecnologias, limitando-o apenas à mediação de inovações desenvolvidas por meios privados. Nesse cenário, a necessidade pública fica de lado. Hoje, afirmou De Negri, os sistemas de saúde latino-americanos são insuficientes, segmentados (por conta da disputa do privado) e fragmentários – isto é, incompletos em termos das respostas que podem dar. No SUS, por exemplo, alguns setores podem funcionar muito bem, enquanto outros não cumprem com a demanda.

“A melhor defesa do SUS e do público que podemos ter é garantir seu funcionamento em um nível de qualidade e suficiência que desautorize o privado”, argumentou o representante da OPAS. E quando se fala de suficiência, é preciso deixar claro que a saúde digital não é uma “fórmula mágica” e não pode compensar insuficiências do SUS. “As soluções não podem existir por elas mesmas, mas precisam de um sistema que dê amparo para que possam atingir seus objetivos”, concluiu. Um aplicativo de saúde que oferece algum tipo de contato rápido e específico, sem ligação com outros canais de atendimento, não pode resolver, segundo o especialista, problemas individuais de pacientes ou problemas coletivos de saúde pública.

O programa refletiu sobre como a saúde digital não pode ser vista apenas como mera teleconsulta, mas como potencial criadora de participação social – com o fim de construir um sistema suficiente e qualificado que atenda as necessidades da população.

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