Em entrevista ao Joio, líder e escritor indígena fala do legado de Bolsonaro – “uma lança enfiada na Amazônia” – e dos desafios que se colocam para Lula
por Tatiana Merlino, em O Joio e o Trigo
O terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, que se iniciou em 1.º de janeiro deste ano, terá “muito trabalho”, diz Ailton Krenak. Em entrevista concedida a O Joio e O Trigo em dezembro passado, antes da posse de Lula, o escritor e líder indígena disse que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) saiu do governo, “mas deixou uma lança enfiada na Amazônia, que é um lugar onde o agronegócio não tinha conseguido atracar”.
Atuante desde os anos 1970, Krenak teve uma participação importante durante a Assembleia Nacional Constituinte, em 1987 – ele ajudou na inclusão do “Capítulo dos índios” na Constituição de 1988. Autor de livros como Ideias para adiar do fim do mundo (2019), A vida não é útil (2020) e O amanhã não está à venda (2021) e de uma das cartas do livro Cartas para o Bem Viver (2021), é um dos mais relevantes pensadores da atualidade.
Por anos consecutivos, explica o escritor, “a gente viu o Brasil elogiando o PIB, resultado das safras e da venda de carne, exportação e importação e exportação de minério também”.
“Essas commodities, soja, gado e minério, fizeram a riqueza de muita gente, enquanto deixaram um prejuízo enorme para o Brasil, como país, como nação. A gente foi assaltado, foi um assalto monumental. Não é simples observar o dano que foi deixado nesses anos”, diz ele.
Krenak elogia a criação do Ministério dos Povos Originários e critica os indígenas da etnia Pareci, que produzem soja dentro das terras indígenas no Mato Grosso. “A Constituição diz que as terras indígenas são de usufruto exclusivo dos indígenas. Essas cooperativas trambiqueiras que estão associadas com os Pareci, eles estão roubando a terra indígena. Eles estão tirando a riqueza de lá de dentro, porque o usufruto é exclusivo. Será que a palavra usufruto exclusivo não diz nada?”
Krenak acredita que esse é um momento de esperança para o Brasil, “porque o mundo está sem esperança. Então, o que acontece é o seguinte: um raio de sol, um brilho qualquer numa paisagem tão obscurecida, ele produz muita esperança. Eu espero que o Lula continue dando um outro significado para a América do Sul no contexto das nossas relações com a Argentina, com o Chile”.
Confira a entrevista.
O governo Bolsonaro terminou, mas deixou um legado de políticas anti-indígenas, de destruição ambiental e de avanço do agronegócio. Você poderia comentar sobre os desafios que se colocam para o novo governo?
Ele deixa uma lança enfiada na Amazônia, que é um lugar onde o agronegócio não tinha conseguido atracar. O governo Bolsonaro, sucedendo imediatamente depois do Temer, eles conseguiram enfiar uma cunha na Amazônia, com o agronegócio, a pecuária e a soja, e toda infraestrutura que implica nisso, que vai ser difícil arrancá-los de lá. Aquele filme que a gente fez com o [diretor de cinema] Marcos Cólon, “Pisar suavemente na terra”, tem um episódio com o velho cacique Manuel Munduruku falando e apontando os limites do território deles, o lugar onde a Cargill está construindo um porto de embarque de soja, de grãos, lá no Tapajós.
Isso significa um tentáculo do agronegócio, muito bem estruturado, dentro da floresta amazônica, numa região em que até dez anos atrás a gente imaginava ser impossível que eles obtivessem autorização para estar. Eles não precisaram de autorização. Eles invadiram. E invadiram sob os auspícios do governo brasileiro. Com amplo financiamento e com recursos do BNDES.
Esses monstrengos foram se implantar lá com obras de infraestrutura bilionária, caríssimas. Dificilmente vai se convencer o governo que vai agora suceder o de Bolsonaro a desmontar aquela infraestrutura. Eles vão dizer, “bom, o BNDES botou 6 bilhões de reais lá”. Então o cálculo econômico e a conveniência política provavelmente vão deixar esses tentáculos enfiados no corpo da floresta, numa região que até 15 anos atrás era impensável haver uma plataforma extrativista tão brutal.
Então, muda o governo, mas para além do estrago que o governo anterior deixa, ele deixa também âncoras para quem quiser aprofundar a predação da biodiversidade. Há uma outra coisa grave que acontece junto a isso, que é a legalização de áreas públicas que esses caras estão ocupando. Eles estão ocupando terras da União, terras indígenas, unidades de conservação, onde conseguiram incidir seus registros, aquele cadastro ambiental rural, de forma ilegal, em cima de terras públicas. E estão avançando no registro dessas terras como propriedade privada, como particular. Isso é um escândalo. Só isso mereceria uma verdadeira devassa em cartórios e documentos fundiários na Amazônia nos últimos 15 anos para ver quem entrou lá de má-fé. E entrou sabendo que esse neoextrativismo era a bola da vez e que eles iam conseguir apoio público e político para poder se implantar numa região onde a prioridade deveria ser a conservação da biodiversidade. Numa região onde já estamos tendo o registro de mercúrio contaminando a vida nos rios. Tem lugares onde as comunidades indígenas não podem mais consumir a água nem pescar. O novo governo não vai ter só de recuperar a infraestrutura desmantelada. Ele vai ter que lidar também com a infraestrutura mal intencionada implantada para invadir a floresta.
Você tem uma luta, uma militância, de muitas décadas, desde sua atuação importante na Constituição de 88. É possível dizer que esses anos de governo Bolsonaro foram os piores anos para os povos indígenas desde a Constituição de 88?
Eu não gosto desses superlativos. Antes da Constituinte, nós tínhamos invasão de terra e nós tínhamos a ausência de uma legislação que obrigasse o Estado a respeitar os limites territoriais indígenas. A gente criou um capítulo da Constituição que estabelece essa obrigatoriedade da União demarcar as terras indígenas. Houve avanços muito importantes.
Nos últimos anos, a gente podia tomar como marco de referência para isso o elogio que o Brasil passou a ter por ocupar um lugar de destaque na exportação de grãos, quando ele conseguiu dominar o ecossistema do Cerrado e transformar o Cerrado numa monocultura de soja e outros grãos. E a pecuária passou a ser uma espécie de máquina de fazer dinheiro no Brasil, tanto que foi um dos setores profundamente envolvido com a sequência de eventos políticos que resultou na derrubada da Dilma e na prisão do Lula.
Quer dizer, é um crime organizado a partir da ocupação de novas fronteiras agrícolas no Cerrado e na Amazônia, em conluio com setores que eles chamam de produtivos, porque são setores da produção. Durante quatro anos consecutivos, a gente viu o Brasil elogiando o PIB, resultado das safras e da venda de carne, exportação e importação e exportação de minério também.
Então, essas commodities, soja, gado e minério, fizeram a riqueza de muita gente, enquanto deixaram um prejuízo enorme para o Brasil, como país, como nação. A gente foi assaltado, foi um assalto monumental. Não é simples observar o dano que foi deixado nesses anos. E que o novo governo não tem como restaurar as condições de vigiar e fiscalizar e, ao mesmo tempo, promover pesquisas e estudos que nos tirem desse pântano que nós estamos metidos. Vai ter muito trabalho. Eu não quero ser agourento, vai ter muito trabalho e pouca grana.
Em novembro passado, Carlos Fávaro [atual ministro da agricultura do governo Lula] se reuniu com o então presidente da Funai, Marcelo Xavier, e com indígenas da etnia Pareci, para falar do projeto do agro de monoculturas dentro de terras indígenas. Qual é a sua opinião sobre esse tipo de iniciativa? E como é possível conciliar a pasta da Agricultura e o agronegócio com os interesses dos povos indígenas?
O presidente da Funai, que esteve nessa reunião, Marcelo Xavier, ainda bem que ele vai ser demitido daqui a pouco [Xavier foi exonerado em dezembro de 2022], eu espero que ele seja investigado e posto na cadeia também para explicar a morte do Bruno [Pereira]. Para explicar toda aquela palhaçada que ele fez à frente da Funai. É ilegal o que ele está autorizando em terras indígenas. Ele pode ser processado por ter prevaricado e por ter agido de má-fé como presidente da Funai, autorizando atos contra o interesse das comunidades indígenas e botando em risco o patrimônio da União, porque as terras indígenas são patrimônio da União. Ele não pode tratar as terras indígenas como se fossem o quintal da casa dele. Desde que entrou na Funai, ele entrou para fazer palhaçada. Então vão considerar que essa reunião que ele teve não valeu nada. E é interessante que alguém tenha perdido tempo para fazer uma reunião com o presidente da Funai, que está perdendo o emprego.
Mas o Fávaro está cotado para ser o ministro da Agricultura [a indicação foi confirmada em dezembro].
Então, se ele se meter a abrir alguma linha de ação direta para cima das terras indígenas, nós vamos fazer uma campanha para derrubar ele.
Quando você fala que está fazendo coisas ilegais dentro das terras indígenas, você está se referindo aos projetos de monocultura…
Estava me referindo a continuar a agro invasão garimpeira em terra indígena, sendo que algumas das invasões são de pessoas que têm relação direta com gente da Funai, com pessoas que têm cargo alto na Funai.
Qual é sua opinião em relação a essa questão, desse desafio de conciliar o agronegócio e os interesses dos povos indígenas?
O presidente Lula falou mais de uma vez que garimpo, mineração, extração madeireira e agronegócio devem ficar de fora das terras indígenas. Por enquanto, estou levando a sério o que ele falou. Ele disse publicamente, mais de uma vez, que não vai admitir a ocupação das terras indígenas por interesses não indígenas. Isso é garimpo, madeireira, agronegócio ou qualquer outra atividade econômica que não seja aquelas que estão inscritas na Constituição. A Constituição diz que as terras indígenas são de usufruto exclusivo dos indígenas. Essas cooperativas trambiqueiras que estão associadas com os Pareci, eles estão roubando a terra indígena. Eles estão tirando a riqueza de lá de dentro, porque o usufruto é exclusivo. Será que a palavra usufruto exclusiva não diz nada? Ou algum espertalhão descobriu que exclusivo pode ser também dos consórcios de fazendeiros que criaram o equipamento, criaram a maquinaria, botaram lá dentro e pegaram os índios laranja para assinar? Ou nós vamos legalizar os índios laranja? Depois daquele Xavante que foi botar fogo no quartel da Polícia Federal, tá valendo qualquer coisa.
A participação de Lula na COP27 foi muito elogiada. Como vê o protagonismo dele no tema das mudanças climáticas?
Eu acho que ele foi um presente para esse momento político do mundo. E eu já disse que ele foi recebido lá como se fosse a aspirina do momento. Mas aspirina não cura câncer. Ela tira a dor. Se a gente está necrosado por uma política criminosa que deliberadamente desmantelou o aparelho público, não é o Lula que vai arrumar isso de uma hora pra outra. Eu entendo perfeitamente ele fazer malabarismo para compor com o Alckmin, para botar gente como esse Fávaro que nem sei quem é, para botar esse tipo de estrupício no governo, porque ele está fazendo uma barganha até ele tomar posse. Eu espero que depois de tomar posse ele decida quem ele quer manter no governo. É bom se lembrar que uma das coisas que a caneta do presidente pode fazer é demitir o ministro. Ou vai ter que aguentar essa peste o governo inteiro?
Eu espero que ele tenha a sabedoria política para atravessar o pântano que é esse Bolsonaro aí e que imediatamente depois ele chacoalha e fala com os caras. “Olha, isso aqui não é o caminhão do Bolsonaro. Quem tiver querendo ferrar o país faça o favor de descer.”
Eu não acredito que o Lula, depois de tanto sofrimento na vida dele, vai conciliar com uma corja que não entende o que ele está falando. Ele diz que o Brasil não precisa desmatar mais nada, porque a gente tem uma estatística de quantos milhões de hectares de terra que a gente tem são terras improdutivas. São fazendas imensas, fazendas que os caras não fazem nada. As terras não cultivadas. Então tá na hora de botar essas terras na roda. Os caras estão deixando um estoque fundiário imenso para trás para pegar terra nova. Eles querem desmatar porque podem tirar árvores, pode tirar madeira, pode tirar muita coisa e depois passar essa terra para frente, que é uma velha e manjada estratégia que aconteceu em Rondônia. Todo mundo que tinha um título de terra 50 anos atrás já passou para frente. E para a frente e para a frente. Duas, três transferências de terra, aqueles 80% que é licenciado e os 20% de conservação. Aquela área de reserva vai se reduzindo até não ser nada e você sabe disso. Então chega de malandragem. O Lula não é otário, abaixo o latifundiário!
Qual pode ser o papel do Brasil para conter o avanço das mudanças climáticas?
Todo mundo já está cansado de dizer que o Brasil é a bola da vez. Que nós temos uma responsabilidade muito grande sobre o bioma da Amazônia, apesar de a gente compartilhar a bacia amazônica com mais oito países. A Amazônia não é só brasileira. Tem a Colômbia, Bolívia, Peru, Venezuela, até o Suriname e as Guianas. Nós somos nove países-membros do Tratado de Cooperação Amazônica, o TCA, e esse tratado vai ser a próxima reunião do presidente Lula com os governos regionais da bacia amazônica. Quando eles vão discutir uma questão muito importante, que é o fato do presidente da Colômbia ter convidado os Estados Unidos e a Otan para ajudar na desintrusão da Amazônia colombiana de narcotráfico, de traficantes, bandidos de toda ordem. E eles já pediram ajuda dos Estados Unidos e da Otan. O Tratado de Cooperação Amazônica pode não concordar com eles. Pode achar que é uma intrusão estrangeira na Amazônia, que deveria ser governada por esses países-membros do Tratado de Cooperação Amazônica. Eu acho que, se a Amazônia é relevante, se ela tem um serviço ambiental global para o mundo, o mundo pode sim contribuir e pagar para que ela seja protegida e conservada, não importa se é a Otan, se é os Estados Unidos. O que importa é que ela precisa ser preservada. Se a gente tem concordância sobre isso ou não, é o que menos interessa. Porque as potências globais, se elas decidirem que vão ocupar a Amazônia, elas vão ocupar a Amazônia e fim de papo, não tem ninguém que vai reclamar disso.
Além de ser uma pessoa crítica, você também é uma pessoa que nutre esperança, como se vê em seus livros. Você acha que esse momento do Brasil é um momento de esperança? É um momento de colocarmos em prática as ideias para adiarmos o fim do mundo?
Não tem dúvida, porque o mundo está sem esperança. Então, o que acontece é o seguinte: um raio de sol, um brilho qualquer numa paisagem tão obscurecida, ele produz muita esperança. Quando o Nelson Mandela conseguiu se erguer na África e acabar com o apartheid, ele deu um outro significado para o continente africano. Eu espero que o Lula continue dando um outro significado para a América do Sul no contexto das nossas relações com a Argentina, com o Chile. Com os países andinos, onde o plurinacionalismo já é uma questão posta. O Chile fez uma proposta de Constituição plurinacional, onde os povos indígenas de lá seriam reconhecidos também como povos com autonomia. Eles não seriam tutelados pelo Estado chileno, como historicamente foi.
O Novo Constitucionalismo latino-americano lança uma esperança enorme sobre o momento político de ter um presidente esclarecido governando o Brasil. Só o fato de ele ser uma pessoa esclarecida já amplia as nossas alianças com o mundo inteiro. O Fundo Amazônia está de novo interessado em disponibilizar recursos para o governo montar um programa de desintrusão e conservação da floresta amazônica. Eu acho que, na verdade, o que o [Gustavo] Petro, presidente da Colômbia, está insinuando do lado de lá é muito parecido com o que o presidente Lula está fazendo aqui dentro. Ele está convidando a Europa para pagar a conta da conservação ambiental na Amazônia. A diferença é que tem muita gente que acha que os Estados Unidos são nossos inimigos. “Os Estados Unidos vão entrar na Amazônia, vão tomar a Amazônia”. Isso é coisa de gente ignorante, de gente tapada. Tão tapados quanto dom Pedro II, que teria escrito uma carta para não sei quem dizendo que os estrangeiros não podiam entrar na Amazônia porque depois eles não iam sair de lá.
Alguém já saiu de alguma dessas colônias que os portugueses e os franceses e todo mundo entrou nos últimos 500 anos? Claro que não. Colonizar é isso. Botar o pé e ficar. Então é muita burrice ficar achando que a cooperação internacional vai invadir a Amazônia. O que eles querem é que a Amazônia não seja predada. É por isso que eles ajudaram a derrubar o Bolsonaro. Ele é tão burro que botava fogo na Amazônia. E o agronegócio é burro também. E eles vão se ferrar porque a Europa e a China vão fechar para comprar produtos de origem ilegal da Amazônia. E se a gente disser que o agronegócio na Amazônia tem sangue, é o suficiente para a gente boicotar a produção desses caras. E não adianta eles ficarem esperneando. Eles já ganharam muito dinheiro. Como diz aquela canção do Gil: “Não se aborreça, moço da cabeça grande, Você vem não sei de onde, Fica aqui, não vai pra lá, Esse negócio da mãe preta ser leiteira, Já encheu sua mamadeira, Vá mamar noutro lugar.” O agronegócio tem que mamar em outro lugar, tirar o pé da Amazônia.
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Pensador indígena alertou sobre a perda de contato dos homens com a Terra durante a entrega do Relatório Parcial do “Tribunal Internacional de Direitos da Natureza”, reunidos no segundo dia da décima edição do Fórum Social Panamazônico (Fospa), que acontece em Belém (Foto: Cícero Pedrosa Neto /Amazônia Real).